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segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

36º Dia - Comi a ave que apanhei ontem! Cozia-a com um toco de vela de cera que ainda aí tinha. Tenho a costa de África já muito próxima para meu espanto!..(..) Mas já é noite!...Estou a velejar!... Estou-me a precipitar como um suicida... Não vejo absolutamente nada! Não sei se estou perto, se estou longe da terra!... Mas tenho fome!!... Não posso demorar mais tempo!...


Algures no Golfo da Guiné, 25 de Novembro de 1975





À medida que as forças me vão fraquejando, são mais os pensamentos  que me assolam de que as palavras que expresso para o meu diário. Embora com os olhos pregados nos contornos de  terra à vista, assim vai decorrer mais um dia perdido no mar, sem todavia a poder alcançar. Mais propenso a pensar de que a expressar as minhas emoções ou observações  para o modesto gravador,  que religiosamente guardo num simples contentor de plástico,  que em terra servira de caixote de lixo – Estou completamente desligado do resto do mundo. A bússola permite-me saber a direcção que tomo mas não sei onde estou. Vou ao sabor dos ventos e das correntes. Que nem sempre me levam pelo melhor rumo. O remo improvisado, continua a ser pouco ou nada eficaz. Não posso comunicar seja com quem for. Senão com a vontade de Deus. E também não tenho a certeza se me vê ou se me ouve. Mas eu existo, e,  a bem dizer, sou um náufrago. E o drama que vai no coração de quem anda perdido no mar, é intraduzível  em palavras - Aqui ficam, pois,  as que foram faladas (para o diário) e alguns dos pensamentos  que ficaram guardados na minha memória. 




 Diário de Bordo Já é manhã do 36ª dia! Esteve uma noite esplêndida!..Magnífica! Não choveu... A manhã apresenta-se  serena mas muito nublada!...Está aqui à minha frente uma serra muito alta!!...Muito comprida!!...Devo estar entre  os Camarões e a Nigéria...Mas ainda falta um bocadito...


O mar é um imenso tapete calmo, que cintila como um espelho de luz. . Manhã  radiante! Não corre a mais leve aragem... Nem um sopro sequer a agitá-lo. A canoa "São Tomé - Yon Gato" mal se move. Também ela parece querer repousar  das muitas pancadas, dos maus tratos que tem sofrido...  Que,  inexplicavelmente, tem suportado, com tanta indiferença e resignação...Como se levasse no seu bojo a carga mais preciosa deste mundo, que fosse imprescindível salvaguardar.


OLHA O CÉU E REZA A DEUS  TUA ORAÇÃO, QUE TÃO IMENSO E DISTANTE É, CUJO TETO É O TEU ÚNICO ABRIGO E O VASTO MAR O TEU ÚNICO CAMINHO EM TODOS OS SENTIDOS DO CIRCULAR HORIZONTE





Obrigado minha canoa!.. Sou um retrato desfigurado de mim mesmo mas não me sinto derrotado. Ainda não me levaste a terra mas antevejo esse momento de suprema felicidade... Sinto um encantamento inexprimível, inefável!... Porém, começa a sentir-se muito calor.....Mas, por agora, estou bem.....Dá-me a impressão que até   já  me sararam as feridas e me passaram  as dores do meu corpo. Estou mais tranquilo. Vejo que tenho aqui a terra, relativamente próxima. ...Oh, meu pobre coração!.. Tão maltratado tens sido!.... Depois de tanta angústia e de tanta incerteza,  como esta visão te descomprimi e tranquiliza um pouco mais!... 


 Diário de Bordo 2 Esta amanhã, a moral pode considerar-se elevadíssima! Comi a ave que ontem apanhei... Cozia-a com um toco de uma vela de cera que ainda aí tinha... E apanhei mais um peixito...Tenho aqui a costa de África já muito próxima... e montanhosa para meu espanto....


De facto, estava convencido de que a orla da costa  fosse mais baixa, como a da Nigéria, onde fui parar da outra vez... Mas não... É extraordinariamente acidentada ... Já pensei que fosse a Ilha de Fernando Pó...Mas não deve ser...Dá-me a impressão que se prolonga indefinidamente, formando como que uma imensa bacia que se destaca de uma enorme massa verde escura....Ora, se fosse uma ilha, provavelmente teria outra configuração... Porém, as nuvens que pousam nas suas montanhas, que ora cobrem ou descobrem os seus perfis, fazem-me uma certa confusão...Veremos, quando lá chegar...


 Diário de Bordo Serão neste momento, uma ou duas da tarde... Tem estado um calor sufocante!...Uma calmaria bastante inquietante!...Vejo perfeitamente  à minha frente a nordeste a costa de África!... Que se eleva numa enorme serra!  Toda coberta de vegetação, encimada por nuvens... 


Agora começa a correr uma ligeira brisa... Entretanto, vou ver se consigo velejar qualquer coisa...

Tento, mas em vão...A vela continua a pender, quase inerte, espanejando debilmente, a brisa é muito fraca...O sol bate-me em cheio... A água das chuvas que guardo no bidão de plástico,  tem uma colorarão amarelada, é mal gostosa, não me mata a sede. A garganta fica-me sequiosa, arde-me de secura...Os lábios gretam-se-me, devido ao calor que é abafadiço, escaldante, insuportável!..

O céu está manchado de azul e de branco.. E, sob aqueles vultos de névoas, descobre-se um verde escuro, luzidio .... Quando poderei  lá chegar?!... Tão próximos me parecem aqueles contornos, todavia,   fisicamente, tão  inacessíveis!


Que pena a força misteriosa das  correntes e as ninfas que regem o carinhoso bafo das  brisas me não  arrastarem para lá...O pano erguido no tosco mastro,  mal se mexe, não drapeja. Parece estar ainda mais  triste de que eu.


Sim, estou ansioso e preocupado. O tempo passa... As horas correm lentas mas vão seguindo o seu curso... Já não faz tanto calor mas mantém-se a mesma calmaria ... O sol declina,  já baixo e meio pálido a poente ... Não tardará a desaparecer... O crepúsculo, aqui é muito rápido...E, eu,   na iminência de já não alcançar a tão desejada costa de África... Depois vem a noite... ...Como será a noite?!.. Esta é sempre a minha maior incerteza... A interrogação que faço todos os dias  ao anoitecer... Mais uma vez tenho que deixar o meu destino à mercê dos caprichos dos ventos e das correntes... Oh!... esta vontade!.. Esta ânsia de aportar a  uma praia e pisar as suas areias, ouvir o sonoro marulhar das ondas (tão diferente do chape-chape no costado da piroga, que já quase  me enlouquece) a desfazerem-se na perpétua maresia sonora daquela beberagem espumosa... Oh, brilho divino!...Desejava que ao menos me aproximasses à luz do dia para que não fosse enrolado na rebentação ou atirado contra qualquer rochedo... Quando fiz a travessia de São Tomé ao Príncipe, eu, ao pôr do sol, estava aproximar-me de uma falésia. E vi que ao largo estava a formar-se um tornado. Não tive outro remédio senão afastar-me daquele precipício, voltar costas à rochosa e íngreme encosta. e enfrentar a tempestade. Se me apanhasse ali, não tinha salvação possível... Só Deus sabe os trabalhos que não tive durante aquela tormentosa noite!... Os relâmpagos rasgavam continuamente a escuridão, caíam faíscas por todo o lado. E, o plâncton, que a escuridão trazia à superfície, parecia deixar a espuma das vagas em chama, arder em fogo!


Porém, enquanto a noite me não cobre pela cortina do seu espesso véu e me não turva meus  olhos ansiosos, os inunda de sons e  silêncios noturnos, evoco aqui  um poema de José Régio, creio que muito a propósito, num momento em que me sinto levado a vaguear por um imenso oceano  de pemubrosas dúvidas. 



P E N U M B R A

A pouco e pouco, vou chegando.
Não sei a quê. Sei que, na tarde ruiva,
Já quase só respira, brando,
O Vento que só raro, arrebatando-se, uiva.

Só raro! E talvez seja ingratidão,
Mas que saudade, sim, de quando, toda a noite,
Na escuridão
Me fustigava o seu açoite!

Nos seus uivos ecoavam meus clamores,
Toda a noite alarmavam de alaridos.
Enfurecia-se ele, ou eram meus furores?
Gemia o Vento, ou ou meus gemidos?

(...)
Desvendarei, por fim, o incerto clarear?
Distinguirei, por fim, o rumor subterrâneo?
Este ir chegando, enfim, sem chegar?
Entreverei o eterno, ainda que instantâneo?

Só sei que vou chegando, e a tarde é sossegada.
Sem armas, sem escudo ...
Chegando a quê? Talvez a nada.
Talvez a tudo.

José Régio

Extraído de  Canteiro de palavras 



Talvez à vida, talvez à morte, não sei..Não sei, efectivamente, onde vou chegando. Mas não ignoro, no entanto, que terei de chegar, urgentemente, a qualquer parte . Porque, o mísero estado em que me encontro, quase esgotado de forças,  dificilmente me permitirá que possa adiar a minha sobrevivência por mais tempo, que reuna forças  para  chegar  mais longe.


Por isso, procuro avaliar no lusco-fusco do entardecer, tento decifrar os passos que ainda terei de avançar ou de percorrer... Indago e perscruto, através da morosidade inquietante que me angustia e me arrasta,  o que me aguardará para lá dos confins da imensa e misteriosa planura cinzenta,  pergunto-me a que ponto do horizonte poderei ser levado..


 O tempo refrescou, a noite ondula negra em torno de mim. .Vogo sobre um  mar de trevas e o que eu vejo em redor é um manto de escuridão. Lá, 
no alto, surge o brilho tímido das primeiras  estrelas – E, quem sabe,  se talvez alguma  me sirva agora de guia e de protecção. Oh, sim... Mas, eestando elas, tão  longínquas? ....

Diário de Bordo 4 - Neste momento são oito horas da noite! Deverão ser cerca das oito hora das noite! Toda a tarde de manhã não houve vento!... Só agora é que apareceu! Estou a velejar!... Estou-me a precipitar como um suicida!.. Não vejo absolutamente  nada! Não sei se estou perto, se estou longe da terra!... Mas tenho fome!!... Não posso demorar mais tempo!...

A canoa voa velozmente, qual pássaro notívago. A vela mal se distingue por entre o emaranhado das sombras  que preenchem o vazio da noite, no entanto, noto que vai enfunada e que estica retesadamente a corda da escota.
Os meus olhos e os meus ouvidos mantêm-se ativamente sincronizados e jogam entre si o rumo que deve tomar a pequena quilha galopante da propa desta espécie de embarcação fantasma.  Assentado no fundo da canoa, recostando-me a uma das travessas, apelo a todas as minhas forças para segurar o tosco remo improvisado e dar o rumo em direcção à zona  onde deixei de ver os contornos de terra.  Não pude navegar de dia, quero aproveitar o vento que sopra de noite. Mas só vejo trevas à minha volta. Vultos negros, sombras disformes e confusas a preencherem o imenso deserto vazio que paira em torno de mim. Meus olhos fixam-se no pequeno círculo fosforescente da pequena bússola que trago no pulso em forma de balão. Nada mais enxergam que a pequeníssima agulha a oscilar tremulamente. Se ao menos descobrisse alguma estrela que me servisse de orientação. É assim que me oriento nas noites em que  posso navegar.  Mas a noite é cerrada e já as ofuscou. No entanto,  não quero desistir. Bem me bastaram as horas de espera e de calmaria ao longo do dia. Com a terra sempre à vista e nem um sopro de vento que me empurrasse para lá. As correntes levavam-me sempre ao lado, autêntico suplício de Tântalo. Tremenda ansiedade e sofrimento.  

 O céu continua carregado  de nuvens escuríssimas. Atmosfera densa. Pesadíssimo  e baixo o tecto que  quase me submerge....A canoa  galopa, vai galopando, vai  sulcando temerariamente  a negra vastidão,  qual pássaro noctívago de peito aberto ao desconhecido. Nunca, como esta noite, naveguei com tão porfiada  determinação. Nada me intimida. Ou vida ou morte.  Vou disposto arriscar  tudo. Mesmo a ter que correr o risco da canoa ser atirada para qualquer escolho, negro rochedo ou linha de rebentação.

Navego, talvez  há quatro ou cinco horas, vergado sobre o remo. Velejando continuamente às cegas, alheio a todos os perigos. Tão cansado já vou do esforço do remo, que tenho a sensação de estar possuído por uma certa vertigem,... Que não é a canoa que navega  à tona de uma vasta e negra planície, mas que sou eu que  deslizo e me precipito por uma  escuríssima colina abaixo.   Não faço  a menor ideia para onde vou, que distância  me separa de um porto de abrigo.  A única coisa de que me apercebo é o ressoar de um certo bruá, que parece vir dos confins da massa escura para onde me dirijo. 

 Os meus ouvidos funcionam como  um autêntico radar - São também os meus olhos. Procuram decifrar todos os ruídos dos súbitos movimentos, todas as ressonâncias, provenientes do  barulho das vagas que se enrolam e espumam nas proximidades,  as pancadas que se  abatem contra o costado,. Avaliam todos os sons, vão sincronizados com o rumorejar noturno do mar.

É, todavia, cada vez mais complicado segurar o remo, o vento é forte e inconstante e vai-se-me tornando difícil  saber qual o verdadeiro rumo que  estou a tomar. Há muito desisti de olhar para a bússola. Ora navego para um lado ora navego para outro. Tento evitar que  a canoa fique completamente à deriva ou atravessada à vaga. Estou fisicamente esgotado e no limiar da minha resistência. A  par da fraqueza,   invade-me uma enorme sonolência, a que não quero ceder. 

Finalmente, encarando  a noite e todos os perigos, sem desfalecimento, sem pregar olho, dou-me conta dos primeiros alvores da madrugada. -  O vento afrouxa, a vela fica panda e, para minha maior decepção,  a claridade do novo dia, faz-me descobrir que, em vez de me ter aproximado dos perfis e recortes  daquelas encostas montanhosas, que vira de véspera, afinal, constato de que nada me servira tamanho esforço – Fico com a sensação de que estou noutra posição, ainda mais ao largo.  Exausto, aproveito então para me deitar um pouco sobre o fundo duro e encharcado da canoa e descansar – Agora, completamente alheio ao que desse e viesse.... Na esperança, porém,  de que o novo dia  me conduza a bom porto. 






sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

35ºDia - Acordei com o barulho de uma enorme baleia aqui próximo da canoa.(....) que está cheia de água!...(..) Há uma fraqueza geral em mim.. Não sinto nada no estômago... É um saco de fole...Mas o espírito permanece forte...A confiança é inabalável.

Algures no Golfo da Guiné, 24 de Novembro de 1975



Diário de Bordo 1 Já é manhã do 35º dia. Acordei com o barulho de uma enorme baleia aqui próximo da canoa....De noite trovejou... Choveu um pouco mas passei-a normalmente. Claro, quase sempre acordado

Sim, tal como  desabafei para o meu registo gravado, que guardo no contentor de plástico  que se vê na imagem (a outra do lado, é a cauda de uma das baleias avistadas acordei mais cedo e assustado, com o barulho de enorme balanço,  Acordei estremunhado. Ato contínuo, ergui-me a ver o que era, supondo que tivesse sido apanhado pelas ondas da quilha ou da esteira de algum barco. Mas o  rugido e o cheio  nauseabundo a peixe , fez-me  logo pensar que era um enorme  cetáceo que tinha vindo à superfície a respirar, que se levantou abruptamente a escassos metros  da proa. Expelindo um bafo tremendo, que parecia ter emergido das profundezas  mais fundas dos abismos. Não sei como a não a escaqueirou. Deu uns valentes esguichos e até ainda  me molhou com uns espirros . Apanhei em cima de mim uma espécie de chuva miudinha,  mas a tresandar a uma podre maresia. 
Ainda o vi mergulhar e desaparecer. Levantou-se, deu uns sopros e umas borrifadelas, seguidas de alguns rugidos  e mergulhou outra vez, da mesma maneira e no mesmo sítio onde se levantou - Mais parecia um mostro pré-histórico, que subitamente havia emergido do fundo dos tempos ou um negro e volúvel submarino vivo, que, depois de errar no seu alvo, se ergueu com a cauda assente nas águas e o focinho nos ares, estrebuchou, guinou, mergulhou e desapareceu.

Não é a primeira vez que  se levantam junto à canoa. Mas desta vez, corri o risco de ser abalroado.  Foi mesmo muito rentinho.... Tive muita sorte!... Mas elas são cautelosas e eu até gosto de as ver - Deus as proteja dos assassinos que as pescam e de forma tão bárbara; se calhar veio por curiosidade para  ver que estranho  corpo era o da canoa, que tem o costado como a barriga dos  peixes. Ainda por cima de um  azulado claro  - Um gesto amável dos pescadores do Hornet, nos dias que passei a bordo do pesqueiro americano, de São Tomé a Ano Bom, onde fui largado - Foi pena não ter sido na corrente equatorial, um pouco mais a sul,  mas, enfim, estava escrito que deveria ser este o meu destino. . Estava pintada de alcatrão, pelo pescador santomense, que a talhou num tronco da floresta  - Se tivesse mantido a mesma cor, certamente que não teria sofrido tantos ataques dos tubarões, atraídos que são por tudo quanto se movimente, brilhe ou branqueie. Não sei se é por esta mesma razão que à volta da canoa, há  quase sempre peixes das mais variadas espécies -  e sobretudo muitos  tubarões pequenos. Felizmente que os perigosos gigantes, solitários, que a atacam, são mais raros. 



 Solitário e sem destino, sob um céu cinzento e deserto de uma manhã  brumosa, envolta por um horizonte encoberto  por densas névoas e por saturadas neblinas,  povoado  por silenciosos e enigmáticos sortilégios - Ó abençoada claridade das madrugadas, que sucede à cerração impenetrável das trevas, às longas horas de espera,  aos infinitos momentos de angústia e resignação! Afável serenidade, confiança e audácia  do meu ser, que me iluminas e abraças!... Vagueando esfomeado, transitório e frágil à superfície de um ondulante e vastíssimo manto de lívidas ondas,  que os turvados céus tingem e confundem, vogando à superfície  de um mar brumoso e infindo. 

Não choro o meu abandono, porque, apesar da  incerteza que me domina, vogando à deriva na vasta solidão que me rodeia,  dentro de mim não há lugar nem para  a derrota nem para o desespero; ainda vibra o silêncio que acalenta e não esmorece.  Subsiste   a intacta e vital vibração  da  esperança que não falece, que transforma o sofrimento em vitória. Porém, oh, Deus!... Vós, que até agora me acompanhais, lá do alto, que certamente olhais  os imensos caminhos da  minha náutica e errante aventura, sabereis, com certeza, a dor que   vai  dentro da minha alma!...   O quanto está   debilitado e  enfraquecido o meu corpo, quanta incerteza  vai o meu coração! E qual o peso do calvário por onde me arrasto e vou sendo arrastado.



Constantemente torturado pelas minhas  angustias, sinto que física  e psicologicamente me encontro  noutro mundo. Não, não, este não é o mundo de quem vive com os pés assentes em terra. Flutuo continuamente à flor do abismo, dentro de uma urna muito frágil, que ora se ergue ora vai a cambalear, mas nem é isso que ocupa mais os meus pensamentos, pois já estou familiarizado, mas a fraqueza que me invade. No entanto, mesmo no limiar das minhas forças, se a minha canoa resistir, tenho a certeza que eu não vou desistir de lutar... Estou resignado  a suportar, com infinita paciência, todos os reveses e adversidades da minha triste sorte. Resignado, sim, mas não me vou render; o que eu não quero é  sofrer ainda mais. Só cruzo os braços quando me deito, quando me estendo no fundo da canoa e junto as mãos ao peito. Porque, eu sei, que, em cada alvorada,  há o renascer de um novo dia, de uma noite que se extingue e a luz  apaga,  uma nova promessa e uma renovada esperança..  

Parcas têm sido  as minhas palavras para o meu diário de bordo,  tal como no dia de ontem, porém, imensos os meus pensamentos, inarráveis os tormentos que assolam o meu coração


Geralmente, só adormeço de cansaço, quando a madrugada já vai entrada. Raro acontece antes da meia-noite. Por um lado, é o grande desconforto de ter o estômago vazio e o fundo da canoa ser duro e estar encharcado. Pois o colchão (de praia) há muito rebentou e de nada me serve, Por outro lado, são os muitos pensamentos, a imensa incerteza de que a canoa não resista. .É o que mais me preocupa.  E também  tenho muito receio  de ser abalroado - Sim, já vi alguns barcos no horizonte e já uma manhã um cargueiro passou muito próximo de mim - E eu agitar a minha capa, agitar e apitar  e ele a passar ao meu lado, como um monstro....É talvez ainda maior o desapontamento e a crueldade, que quando se mostra um rebuçado a uma criança e se lhe nega, ante os seus olhos ávidos e espantados.... É intraduzível a tristeza e a deceção que se apoderou de mim... Senti-me então a criatura mais abandonada  e triste deste mundo....E mais me convenci que só podia depender de mim, da minha força de vontade.

Além disso, de noite nunca sei para onde as correntes me arrastam..  E as correntes são quase como os ventos, nem sempre tomam o mesmo  sentido. Por vezes, até me parecem pequenos rios. São correntes dentro de outras correntes. Receio que me aproxime da costa e seja atirado contra a rebentação de algum penedo.. Tenho o sono dos gatos, à mínima coisa, acordo. Ainda não consegui dormir uma noite inteira. Ou porque chove ou porque, mesmo sem chover,  as constantes pancadas e balanços das vagas na canoa, atordoam-me, perturbam-me o descanso. O chape-chape deixa-me a cabeça num frangalho - É um  autêntico martírio! . Porém, a manhã já raiou, embora sombria e  com ameaça de trovoadas, por agora, cá vou indo,  levado, não sei para onde. 

Se olhar para a bússola, sei a direcção que a canoa toma, mas os ventos e as correntes fazem-na mudar constantemente.  . Tanto pode ser empurrada para norte, sul, leste ou oeste. Se não fosse isso, já tinha dado a qualquer ponto da costa.  Vou para onde me empurrar o vento e os caprichos das correntes. .Eu sou um zé ninguém e a minha canoa uma tábua flutuante...  Estou muito cansado de tanto olhar para o horizonte e para a bússola... Lá ponho a vela, quando o vento é favorável, mas com muito esforço... Ainda se tivesse um remo apropriado, mas o que improvisei, é demasiado tosco . Por isso, vou-me entregando à mercê de Deus...Aqui no mar sinto um grande apelo às minhas raízes cristãs. A fé é um bom suplemento de energias . E estou convencido que tenho um olhar divino a estender-me a sua bênção. Mas em terra eu não sou assim tão crente.

Também já tenho  avistado muitos golfinhos. Nadam em fila lado a lado, uns dos outros. Lá vão à sua vida, e eu continuo na minha. Uma noite resolveram brincar comigo. Fizeram do casco o seu arco. Como estava muito escuro, deixavam um rasto luminescente...Exprimiam uns grunhidos, muito estranhos, saindo do fundo das águas, como  foguetes da escuridão, deixando um rasto luminoso. Era cambalhota atrás de  cambalhota por sobre a canoa.  Até parecia um foguetório. . Receando que algum caísse dentro da canoa e ma partisse, dei umas apitadelas com o apito que trago sempre pendurado no pescoço e  desapareceram. Se calhar vieram-me acordar-me para a vida. , Foi numa daquelas noites muito tristes, em que me sentia muito fraco  e  deprimido. Mas agora já estou mais acostumado a viver com a minha fraqueza. Não tenho comido nada. Tenho estômago, mesmo duro e encolhido. Quanto arroto, parece que até me vem à boca, o gosto às minhas vísceras.  Vá lá que não me tem faltado água das chuvas. Houve uns dias em que não choveu e só bebi água do mar. .. Bebia de vez em quando  aos golinhos para não me fazer mal e também para não me desidratar. Não havia uma nuvem no céu e nem  uma aragem corria... Eram calmarias atrás de calmarias,,  Que tormento o meu!. Antes apanhar água das chuvas em cima do corpo, de que não chover e morrer de sede.

Numa tarde, era tanto, tanto  o calor que me queimava a garganta, quase me sinta  sufocado (sim, este é um mar equatorial, em que o sol sob a pino e os dias e as noites são sempre iguais) que lasquei um pedacinho da borda da canoa, que estava húmida e fiz uma espécie de chiclete. ... Meu Deus!... No mar a  fome é dolorosa, mas a sede é ainda  pior  - É uma tortura insuportável!  - E, todavia, tanta água à minha volta!...Que suplício!... Eu lá ia bebendo uns golitos de água salgada, mas ficava sempre com sede. Não é a mesma coisa que a das chuvas ou água potável. Serve para amenizar mas pouco mais dava que ir molhando os lábios e humedecendo a garganta.  . Mesmo assim, ás vezes lá ia fechando os olhos, tomando-lhe o gosto e bebendo um pouco mais. 

Curiosamente, agora que estou com o estômago completamente vazio e encolhido, estou mais resignado. Sentia-me menos adaptado, quando tinha água e alimentos, até cheguei a chorar. Não de desespero mas por algo estranho a mim, misto de uma imensa tristeza a e abandono. Agora, não sei porquê, não choro, secaram-se-me  as lágrimas. Se Deus me levar, que seja essa a sua santa vontade. A sepultura  está sempre aberta ao meu lado.  Não vou dar trabalho  a ninguém.  Mas a fome  é  realmente um suplício  terrível! .E, então,  dormir de estômago vazio e encharcado, pior ainda!... Ainda se ao menos pudesse repousar!.... Bebo água e arroto, com um sabor desagradável vindo do estômago.  Costuma arrotar quem tem a barriga cheia, mas eu aqui arroto por ter a barriga vazia.  É o meu saco de fole  a implorar-me comida e eu não ter nada com que matar a fome. Ainda se ao menos conseguisse pescar alguma coisa. Fico debruçado sobre a borda da canoa, momentos infindos, tentando apanhá-los à mão, mas agora nem isso já consigo. Já não sou tão lesto.

 Quem vai à praia sabe o apetite que traz de lá quando volta a casa. O mar desgasta muito. Enfim, cá  me vou acostumando a viver com a minha fraqueza e com a minha fome.. Estou mais resignado... Vou-me  entregando pacientemente  ao meu silêncio e à  minha solidão. Claro, que não me sinto vencido. Vou lutando com as minhas forças, conforme posso.  Vivo num estado em que é o sentimento da própria tristeza que me alimenta e  me conforma. Sim, sem desespero e sem blasfemar contra ninguém, alimento-me de marezia e de tristeza.  Se calhar até desgasta mais a alegria de que a resignação.  Naquela noite, em que os golfinhos me visitaram, eu estava mesmo muito abatido!".. E não me queria deitar... Receando que me desse alguma coisa de noite e não mais acordasse.    Será que vieram acordar-me e despertar-me para a vida?!...É bem possível..  E  a baleia?!... Não terá sido a mesma coisa?!....Vá lá malandro!... Acorda lá que já são horas de te levantares....E, de facto, há terra à vista. Resta saber se lá chego hoje e não sou afastado para longe, como já me tem ao acontecido.

O horizonte está brumoso. vejo para lá, de uma densa neblina, uns recortes escuros. Não sei bem o que será. Umas vezes parecem-me nuvens escuras e encasteladas, , outras vezes fazem-me lembrar  perfis de montanhas. Oxalá seja terra.





Diário de Bordo 2 Tenho a impressão que estou realmente próximo da costa africana...Parece que já vejo os seus contornos...Simplesmente, neste momento, não há vento!...Há umas nuvens espessas, sobre mim, que cobrem completamente o céu... Tudo faz prever que venha a chover...

Estou com muita fome!.... Bastante fraco!... Sinto realmente uma fraqueza muito grande...no corpo... Dor de costas, dor de estômago... Mas estou a ver se aguento, com toda a paciência, estes sacrifícios todos...
.
Sou uma espécie de Lázaro bíblico. O meu corpo está cheio de borbulhas e de pústulas da água salgada. As unhas de alguns dedos dos pés já me caíram. Tenho a boca e a gengivas numa chaga. Levando-me e pego no leme (improvisado) com muita dificuldade, 

Trinta e cinco dias  nesta trágica  odisseia é realmente muito tempo, para não dizer que é uma eternidade. Não sei, não faço a menor ideia até quando poderei continuar a resistir a este duro e tormentoso desafio.






A cor do mar  ondula lânguido e oleoso. Mudou nitidamente de um azul escuro para um esverdeado sujo. Ora isto pode ser na realidade sinal de que já me encontre próximo da grande embocadura do Golfo onde as águas vêm concentrar toda a espécie de despojos, sedimentos e porcarias. E os fundos nesta zona são relativamente baixos. Por isso, pelo aspeto da água do mar, que, aliás, agora até passou para uma tonalidade quase turva e cinzenta, devido à ameaça de chuva, é natural que já tenha voltado a aproximar-me da plataforma continental, onde também se situa a própria Ilha de Fernando Pó. Pois, desta ilha ao continente, ainda vão 30 km. Desconfio que aquela mancha, que de volta e meia vejo aparecer e a sumir-se no horizonte, sendo perfis de terra, deverá ser o Monte dos Camarões, que, se não estou em erro, tem mais de 4000 metros de altitude.

Mas, por agora, não posso fazer qualquer conjetura; estou a meio da manhã. Talvez lá para o fim da tarde o céu se descubra melhor. Agora é muito difícil. O tempo escureceu bastante. E não deve tardar a despenhar-se uma carga de água sobre mim.

Não sopra vento algum. Mas a atmosfera é um balão saturado de humidade. Quase não respiro ar mas água. O mar está brando e melancólico. Sinto-me triste vê-lo assim. Gostava de o ver  com outra cor e transparência. Com aquele azul escuro e límpido ou quase de um roxo aveludado, que é o mar das grandes profundidades ou então num azul mais claro, com a crista das ondas espumando e refletindo uma luz quase irreal,  quando o sol está a pino, ao meio-dia e os raios solares o atravessam, lá  do alto e bem aprumo.


Porém, para maior tristeza minha, até parece que já nem cor tem. É muito desagradável ver assim o céu tão espesso e carregado, o mar tão  feio e cinzento. Pois, à fome  que me devora, junta-se-me ainda uma maior angústia. E apreensão de que não  tardem por aí mais uns quantos trabalhos. Pois à chuvada à vista. 

E, de facto, com o refrescar do tempo, veio a chuva acompanhada de ventania e de fortíssimas bátegas. Com o tecto do céu escuro e carregado, nem era de esperar senão mais uma carga de água. A que me exponho sem hipótese de abrigo. De pouco me serve a capa que envergo. Cubro a cabeça com um plástico mas a chuva é demasiado forte. Cai em  grossas gotas sobre a mim e não cessa de martelar a minha canoa e à minha volta, num barulho que ameaça abafar até o próprio marulho das vagas, que se estendem por toda a vastidão, já totalmente mergulhada por uma  cortina  diluviana  e cinzenta.




Continuo a beber água das chuvas, misturada com água do mar. Não tenho anzóis para pescar. Mal me posso mexer, mas lá tenho que pegar no vertedouro para escoar a água que rapidamente se veio juntar à  salmoura já existente, que chocalha constantemente no fundo da canoa. Que não cessa de entrar pelas pequenas rachas e de se avolumar. Sinto-me fraco mas  também já nem sei até que ponto esta banheira ainda possa resistir. Se quem vai ceder primeiro, serei eu ou é a canoa que se vai abrir e voltar. Este tempo chuvoso, rouba-me as fracas energias que ainda vão dando  vida ao meu tão maltratado corpo. Estou enregelado, sinto-me entorpecido dos pés à cabeça, ensopado de água até aos ossos. A chuva não pára de cair e as horas arrastam-se lentas, ensopadas, penosas e desgastantes.

No entanto, mesmo desconhecendo a quantas ando, o dia segue o seu curso – Nada que se comparem às horas noturnas.  Mesmo decorrendo chuvosas e em gélida cadência, não têm a mesma cor das horas mortas de uma infinita  noite escura. Avançam alheias ao meu tormento, mas nem por isso se desligam do próprio compasso do tempo.  Um dia no mar, mesmo brumoso e chuvoso, nunca se pode comprar ao tumulto de um  mar agitado, rodopiando e tumultuando sob um céu espesso e cavernoso, imerso de solidão e liquefeito de  trevas.  Serão umas quantas da tarde, não sei. Já parou de chover mas estou todo partido. Não faço a menor ideia. 

Entretanto, o horizonte clareou, desfez-se da brumosa neblina em que se havia encoberto desde o meio da manhã e, embora cinzento, estende-se agora por um círculo, claramente mais amplo e afastado. O mar é agora um espelho lânguido, morno e calmo. Não se vêm os peixes em redor da canoa. Até parece que a vida se extinguiu. Ainda hoje não vi um raio de sol, contudo, paira em torno de mim uma estranha beleza e quietude. Tudo se confunde e dissipa num extenso manto de harmoniosa placidez e calmaria.






Diário de Bordo 3 - Sim, realmente, já não tenho a menor dúvida de estar numa enorme baía!... Baía ladeada de altas montanhas!... Que ora estão escondidas ora ligeiramente descobertas!... Mas quase sempre escondidas...



Estou exausto!... Estou fraco!... As forças cada vez fraquejam mais... A canoa está cheia de água!... O fundo está cheio de água, devido às constantes chuvadas que caíram esta manhã... Mas eu hei-de aproximar-me de terra... Eu sinto isso...

Estou completamente exaurido!...Não sinto nada no estômago... É um saco de fole... Há uma fraqueza geral em mim...mas o espírito permanece forte...A confiança é inabalável.... Eu sei que estas palavras que tenho pronunciado têm sido poucas... Tenho-me remetido num autêntico mutismo...
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São aí quatro da tarde. O tempo mantém-se sereno... Pouco vento. Tenho andado à deriva visto o vento ser muito fraco.

Apanhei Há bocadito  um peixe  à mão. Foi para mim uma festa!... Estou mais satisfeito agora.... Evidentemente que o comi, crinho!... Mesmo quase vivo... Soube-me também!.. Ah! o meu estômago andava tão vazio!... Assim ficou melhor!...


Pensamento do dia EU E O MAR - José Luís Peixoto, escritor
Para José Luís Peixoto, a melhor forma para se tirar bom partido do mar consiste em "observá-lo, desfrutar dele, contemplá-lo e, se possível, escrever sobre ele".









domingo, 25 de novembro de 2012

Dia 34º - Deitado no fundo da canoa...Não tenho comida... Sinto uma grande dureza no estômago

Algures no Golfo da Guiné, 23 de Novembro de 1975




A fraqueza é imensa e deixa-me bastante debilitado. Tenho-me mantido num profundo silêncio - Foi um  dos dias em que não meti nada à boca e  falei muito pouco para o meu gravador.

 Somente ao fim da tarde, tive a coragem de abrir o meu baú (um contentor de plástico do lixo), onde o preservo da violência do mar e senti vontade de dizer algumas palavras.  Remeti-me a um profundo e resignado mutismo: sem lágrimas mas também sem nenhuma alegria. Sem desespero mas possuído de uma enorme angustia a perturbar-me a alma.  Com o sentimento de um enorme desconforto, em todos os aspetos: sem poder dormir, cheio de fome e no meio de um mar bravio, fortemente batido pelas vagas. 
 
Até por volta da  meia-noite o mar manteve-se calmo, com uma ligeira brisa do sul, mas eu  sentia-me muito ansioso e não conseguia adormecer, receoso que pudesse ser atirado para qualquer zona da rebentação da costa, embora confiante de que ao menos pudesse passar um resto de noite com alguma tranquilidade. Mas, subitamente, voltei a sentir o ímpeto da corrente de oeste para leste,  acompanhada de  forte ventania - E jamais tive um minuto de descanso.

As vagas sucediam-se umas atrás das outras, erguendo-se como  alterosas muralhas cor de ardósia, parecendo quebrar a frágil piroga, que não parava de balançar e de sofrer enorme solavancos, ameaçando rolar e engolir-me  num violento turbilhão de espumosas e ferventes massas escuríssimas.

 De volta e meia, algumas das espadanadas cristas, rebentavam ao meu lado, lançando-me fortíssimos jatos de água e encharcavam-me completamente. Por mais que pegasse no vertedouro, não lograva suster  o seu afluxo, que não parava de marulhar e de se acumular.  Por isso mesmo, não conseguia arranjar sequer um palmo enxuto, sobre o qual pudesse deitar-me e  ter alguns minutos de descanso.. 

 Sim, impossível dormir. Impossível um sono reparador. Lá tive pois que me recolher, ao longo de mais uma noite interminável, entre a esperança, o desassossego e o temor, encolhido e enrodilhado à minha capa, junto a uma das travessas e a meio da canoa, numa prostração de quase resignada indiferença. Sempre que podia, mergulhava os olhos continuamente na densa e turbulenta negridão, que parecia nunca mais ter fim. Mas de lá, dos confins da escuridão, não me chegava a luz de qualquer farol, assomo de recorte, nem o mais ténue sinal de vida. 





 NASCER DE SOL MARAVILHOSO – PENA QUE  A SUA LUZ DEPOIS DE IRROMPER  FOSSE TÃO BREVE...

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 Finalmente, o vasto manto negro e ondulante que me envolvera ao longo de horas infinitas, embora persistindo com a mesma agitação, muda a  cor da sua face. Aos primeiros alvores da manhã, passa de um cinzento-escuro a uma imensa toalha que ondula com tons de chumbo e de prata, refletindo as densas nuvens que começavam a clarear a oriente, onde, através de alguns rasgões, surgiria por fim a tão desejada luz! – A bendita luz do astro solar,  que é sempre um reforço de ânimo e de esperança para quem anda perdido na vastidão do mar

Sem dúvida, um nascer do sol, esplendoroso, que me trazia algum reconforto, que vinha soltar-me da fatalidade que parecia ensombrar cada vez mais o meu destino.  Uma autêntica explosão de um rubro esplendor, que irrompia do fundo das tormentosas águas, que imediatamente se refletia no meu espírito e vinha  aliviar-me  de uma profunda depressão e abatimento – Pena que, tão sublime aparição, fosse tão breve, de tão curta duração.   Pois, quase com a mesma rapidez  que se abriu e me saudou, assim voltou a ocultar-se por detrás dos espessos novelos de nuvens  que cobriam o céu de ponta a ponta do horizonte, em todo o vasto e azulado círculo.



MANHÃ CHEIA DE BRUMAS E CHUVOSA - TARDE SEM CHUVA MAS TAMBÉM MUITO  AGITADA, BATIDA POR RAJADAS DE ÁSPERO VENTO 

Mar aberto e turbulento. Sobre o qual o vento não cessa de descarregar a sua ira, enfurecendo também as águas.  Atiçado por constantes rajadas e que nem sempre vêm da mesma direção. Fustigando-me asperamente o rosto! Levantando as ondas em loucos redemoinhos, sacudindo a canoa num vertiginoso balanço! Erguendo-a perigosamente! Fazendo-a ondular e deslizar por vertentes descomunais!  Dificultando-me o equilibro, quase tolhendo-me de qualquer movimento livre, obrigando-me a um inaudito esforço – sobretudo para conter a invasão da água,  que entra pelas rachas e daquela que é atirada pela rebentação e crista das vagas mais alterosas 

Ainda não vislumbrei qualquer contorno de terra e também não tive coragem de colocar o mastro e a vela.Com o remo improvisado, é muito difícil navegar. Por isso, vai à deriva, vai ao sabor do vento das vagas! Não sei para onde me leva  - Está sendo arrastada para leste com a força das correntes mas não sei onde possa ir parar e se poderá resistir ao forte impacto do constante chape chape que ressoa no costado.


Estou muito fraco. Mal me posso levantar: tenho-me limitado às tarefas mais indispensáveis. A pôr a roupa a secar e a despejar a água que se acumula no fundo da canoa. Mas tudo isto é exaustivo!..  Exige-me um inaudito esforço e eu estou muito fraco!.. . Disponho apenas de uns três ou quatro anzóis. Mas não tenho iscas; não vale a pena lançar a linha e o anzol. .


Muitas vezes, prostro-me de  joelhos junto à borda de canoa para ver se apanho algum peixe à mão. Há sempre peixes de todos os tamanhos à volta da canoa e acompanhá-la. Alguns vêm  à cata das lapas que nascem no costado. Mas quando estendo o braço para os apanhar, escapam-se-me; são mais rápidos de que eu!  Mais das vezes acabo por desistir e deito-me no fundo da canoa para poupar as minhas forças – Pois, mesmo atolado numa autêntica salmoura, tenho necessidade de descansar.  Nem que fosse sobre um tapete de pregos.  - Até porque não consegui dormir em toda a  noite.

A fome é terrível! É terrível!... Não sentir nada no estômago, é um sofrimento, muito doloroso!... Valha-me ao menos este ar puro que respiro. Quando me levanto, tenho a sensação que é apenas o ar que me alimenta. Fustiga-me o rosto mas entra-me  pela boca e pelo nariz em rijas lufadas, ásperas, violentas, mas muito  revigorantes, que me desentorpecem o corpo.

Sim, respiro o vento e o mar. Não tenho nada na barriga. Por isso, deito-me no fundo da canoa, com os braços cruzados, simplesmente porque me faltam as forças para me manter em pé mas não é por me sentir derrotado.. Não é porque me tenha rendido à luta!... É para ver se conservo prender-me à  vida. Quero viver. Estou fraco, muito fraco!...Mas "Viver também cansa". E a fome mata. É cruel!...O meu corpo cambaleia de fraqueza, cheio de dolorosas borbulhas da humidade. Tenho os dedos das mãos  e os pés muito gretados. A unhas dos pés irreconhecíveis da água salgada. As costas numa chaga. O estômago  fortemente encolhido... Os olhos muito doridos... Ó Meu Deus!... Serei ainda um ser humano?!... Até quando este sofrimento?!...


 




SINTO UMA GRANDE DUREZA NO ESTÔMAGO...


Diário de Bordo 1 É já o fim de tarde  do 34º dia. Mais um dia que passei... praticamente deitado sobre o fundo da canoa... Com os braços cruzados, pois não tenho outra solução.... O mar continua com bastante ressaca... O vento agora não é muito forte.... Mas a única solução que tenho é realmente deitar-me no fundo da canoa, até para não gastar energias... Para não fazer muito esforço físico.

Não tenho comida... Sinto uma grande dureza no estômago... Uma grande dor nas costas!... Todo o meu corpo me dói... Há uma fraqueza geral em mim...

De manhã, vi muito ao longe a chaminé de um barco....mas bastante afastado! O mar contínua muito bravo!... O equilíbrio é realmente difícil...

Estou apenas com três comprimidos e água das chuvas... Mais nada no estômago... Tenho um apetite voraz...Neste momento eu comia não sei o quê!...

Um pormenor importante que notei é apenas da água... que têm uma cor esverdeada... Mais escura de que o habitual....Agora as correntes mudaram de direção. Estou sendo arrastado para sul... Agora já não é de oeste para este... 

E  ANOITECE...

E cai a noite...Escurece o céu e também escurece o mar. E mudam as correntes e  os ventos.... Agora ainda mais intensos... Sempre o eterno capricho dos ventos e das correntes.... Para onde me levará esta força descomunal?!... Que poder ou entidade sobrenatural  rege ou poderá opor-se a estas forças indomáveis que tumultuam e rodopiam em torno de mim numa zoada enegrecida e da mais confusa desordem?... Forças da Natura que, em vez de se acalmarem com a solidão noturna, recrudescem de violência... 

Recebo lufadas de ventos de todos os lados. Todos os sons  tornam-se ainda mais audíveis  mas simultaneamente confundíveis num único ressoar. Este é o silêncio dos ruídos que submergem até as longínquas estrelas e que o sol, ao despedir-se, não quis levar consigo e abandonou do seu giro. Não se sabe, se o que ressoa  é o bramido das vagas ou o silvo do vento. Todavia, sob a incomensurável concha negra dos céus, no meio de toda esta imensa sinfonia de sons, surdos, abafados, polvilhados pelo ressoar  e o marulho bravio  das espumas, há uma vida humana solitária que resiste . 

Sei, no entanto, que mesmo que gritasse, ninguém ouviria os meus gritos - Serei porventura a mais desgraçada e abandonada criatura que se pode ser na vida. Mas eu quero viver. Viver até à mais débil energia, até ao último sopro de vida. Há, porém, uma realidade, incontornável,  que eu não posso ignorar: a morte está sempre ao meu lado. Umas vezes mais terna e sedutora, ofuscada  pela beleza das manhãs e tardes calmas e deslumbradas, quando as águas se aquietam, brilhantes de escamas  fugidias de pérolas e de rubis. Outras  sob o disfarce de crepúsculos de oiro, tingidos por aguarelas e transparências de vitrais ou até sob a capa da luz branca de luas enormes e nostálgicas que vagueiam e espreitam, lá do alto, por entre grossos novelos de nuvens, em límpidos céus de veludo, com lábios sedutores de um brilho de inigualável ternura, namoro e mistério. Ou, então, como agora, com a sua face mais hedionda, completamente desfigurada e atormentadora,  possessa e atiçada pela crina de ventos soltos e endiabrados.

 HAVERÁ FIGURA MAIS PRÓXIMA DA IMAGEM DA MORTE DE QUE A  DE UM NAVIO PERDIDO NO ALTO MAR, FUSTIGADO POR UMA NOITE NEGRA E TEMPESTUOSA?!...OU DE UM HOMEM SOLITÁRIO VAGUEANDO ESQUECIDO AO SABOR DAS ONDAS E  VENTOS TUMULTUOSOS E NOCTURNOS NO SEU MINÚSCULO ESQUIFE?!..
 ..

 




A bem dizer, a morte é a minha companheira de todas as horas. Convivo, lado  a lado com a sua vertigem, seja atraente ou aterradora, vagueio à superfície do abismo da sua imensa sepultura. A qualquer instante poderei desaparecer e  quase sem dar por isso. Basta que os dedos engalfinhados das suas poderosas mãos, que a noite cobre com golas rendadas e franjadas de luto,  me surpreendam a dormir ou até em qualquer instante da minha penosa vigília. Mas, se tiver de morrer, se for chegada a minha hora,  paciência!... Também não é caso para desesperar. Antes de me meter nesta aventura, equacionei todas as hipóteses: de viver e de morrer. Estou preparado para tudo; para o que o der e vier. - Só desejo que ao menos me acolha no seu leito, como um dos bravos, dos que  não lhe viram a cara e lhe dão luta, e, sendo assim, só lhe peço que ao menos seja um pouco mais complacente e me livre da terrível agonia dos miseráveis afogados que impiedosamente já sufocou e tragou nestes mesmos mares. 

Mais a mais, se eu partir para o lado de lá, ninguém vai saber como e quando a morte me chamou. Ninguém vai ter de cavar a minha sepultura, pois tenho-a, aqui ao meu lado, sempre aberta. Não, não posso receá-la... Pois haverá maior solidão do que aquela que agora que me envolve?!...Do que aquela em que  estou profundamente mergulhado?!... Haverá maior martírio do que aquele que eu vivo nestas horas, dolorosamente incertas  e  infinitas?  Que me arrastam, não sei para que confins desta  imensa e tumultuosa negridão!

 A morte?!... Como posso eu  temer a sombra da minha própria sombra se nem sequer a enxergo?... Que diferença fará a minha triste figura das sombras soltas, do confuso tumulto que campeia à superfície da conturbada planura que a espessa noite impele, transfigura e oculta?!... Noite  sobre a qual vogo e ninguém me distingue e nem eu vejo o fundo do madeiro que piso!... Que contraste haverá de mim e das trevas  que ondulam por toda a parte e têm como coberto o negrume de um espesso e pesado céu?!...Oh, sim!. Haverá maior solidão do que aquela que povoa o meu coração de mil sobressaltos, angústias  e de incertezas?!... Sim,  que me confunde e esmaga sob o teto da mesma assombrosa atmosfera em que vagueio, sem rumo e pedido!.. 

Oh, como posso eu virar as costas à  Soberana Morte, se ela me chamar?!... Até porque, se o mar me levar, meu corpo, nunca ficará  tão sozinho como agora se encontra....Há uma cova continuamente aberta, que já recebeu milhões de vidas e não se importa de continuar a receber ainda muitas mais vidas!  - Que foi a sepultura  dos milhares de escravos que, nestes mesmos mares, agonizaram horrivelmente, nos escuros porões dos barcos negreiros ou foram atirados vivos para o tumulto das ondas!.. A morte quando bate a porta, não distingue o escravo do escravizador, do pobre do rico. Levou corsários e piratas, criminosos algozes, sem escrúpulos, que não chegaram a ser mais valentes com as tempestades de que com   as suas vítimas. Não poupou e não se condoeu  de corajosos e  intrépidos pescadores, pilotos e marinheiros. Oh quantas vidas, por aqui  já não terão parecido, na vastidão do "Grandíssimo Golfo", nestes mesmíssimos mares de outrora, do passado e do presente!... Mares eternos" Mares de sempre! Mares de inesperados tornados e perigosos tubarões!



Na verdade, já lá vão algumas horas depois que o sol se pôs, e eu continuo sem me poder deitar. Sinto-me exausto e possuído por um desejo irresistível de dormir. Estou para aqui enrodilhado como um miserável trapo. Abrigado  debaixo de um toldo para me defender dos  espirros das ondas, porém,  do que eu não consigo proteger-me e defender-me, é da água que entra através da rachas. Há a que aflora pelo sítio onde assenta o mastro e também ainda a que atravessa as rachas que estão acima da linha das águas. Só que, acima dos 40 cm submersos, os 20 cm que restam, é muito pouco. Entra lentamente mas, como não pára de entrar, vai-se avolumando. E eu não disponho de bombas para a escoar; tenho que o fazer eu com o balde ou com a espátula.

 Apetecia-me estender ao comprido, pois é assim que eu faço nas noites mais serenas, e quando não chove, tal como são estendidos os cadáveres nos caixões - Sim, esta canoa é um caixão flutuante. Não é feito de várias tábuas mas num só madeiro. Mas estou a ver que não vou conseguir. Sofre constantes balanços. As ondas estalam no costado com fortes chicotadas. Por mais que escoe a água, o fundo continua num autêntico charco. De volta e meia, lá tenho eu de me ajoelhar para a escoar e espreitar o ambiente lá fora. E é o que vou fazer agora. Não deve faltar muito para a meia-noite. Mesmo sem horas, sinto o seu peso. E de noite já reajo às mesmas horas, como um autómato. Não para verter a água que faz da canoa uma banheira, pois só a baldeio quando me cobre as costas - E agora não estou deitado, mas quero saber como tempo está lá fora.

Está a molinhar. Vejo relâmpagos a rasgar o negrume das distâncias. Com o barulho das ondas ainda não ouvi o trovão, mas não deve tardar a fazer soar por aí a sua orquestra.  Meu Deus!...Este mar não me dá tréguas nem descanso!.. Pelo que vejo, espera-me um resto de noite, ainda mais confuso e atribulado.  Uma noite, açoitada  por um vento furioso, que parece não se acalmar. Vejo as habituais manchas luminescentes, aqui e além no ondulado negro das ondas, brilhos confusos e terríficos, vindos de mil direções, e certamente também das profundezas,  que refulgem, que reluzem e tremeluzem de onde em onde. Que aparecem e desaparecem. São as manchas do plâncton  e certamente da fauna marinha das profundidades que o persegue às horas mais escuras e sinistras,  que aflora à superfície.  Quando fiz a travessia de São ao Príncipe é que eu fiquei arrepiado. Era simplesmente pavoroso ver as ondas em vez de a branquear de espumas, vê-las franjadas de lume. Com explosões que faziam lembrar um mar em chamas. Até a pá do remo parecia sair de um mar a arder. Ou saída da corrente do magma de um vulcão explodindo e cuspindo a sua lava. Estas imagens são muito comuns nos mares tropicais. Agora já  estou habituado a esses estranhos brilhos. Não é isto que me assusta ou preocupa. Mas a chuva que apanho no corpo e as tempestades noturnas que só vêm dificultar ainda mais a minha segurança e sobrevivência.