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domingo, 21 de outubro de 2012

29ª dia - Passei a noite todo encharcado...Mas, por fim, até adormeci, sonhei e acordei a falar ...supondo que tinha chegado a terra...(..)Agora o mar está calmo mas ontem eu dizia-lhe: ó mar não me leves!...Não me voltes a canoa!...(..) Vi um tubarão grande! Enorme! Às voltas da canoa (..) Agora a minha preocupação começa a estar precisamente no local onde irei aportar...Não sei...


   Algures no Golfo da Guiné, 18 de Novembro de 1975


"Bem  sei que estou endoidecendo.
 Bem sei que falha em mim quem sou.
 Sim, mas, enquanto não me rendo.
Quero saber por onde vou"

-  Fernando Pessoa - 15-9-1934

Diário de Bordo "Passei uma tarde calma. Agora a minha preocupação começa a estar precisamente no local  onde irei aportar...Não sei...Será um local habitado?!...Pode ser desabitado...Enfim, o que me interessa é que seja terra, fundamentalmente, é que seja terra! Local seguro..." 

 Ainda não fiz referência à noite passada: passei uma noite todo encharcado! Envolvido num plástico mas por fim até adormeci e sonhei..Sonhei e tive uns sonhos muito esquisitos, acordei a falar!...Supondo que tinha chegado realmente a terra. Tive assim  sonhos muito esquisitos."- Excertos do diário do 29º dia



Tal como tenho  vindo a referir, o diário de bordo foi registado num pequeno gravador, defendido das ameaças do mar,  num velho contentor  do lixo (de plástico, imagem ao lado) que me fora oferecido por empresa portuguesa, em São Tomé - 
Germano Castela




De noite não choveu mas a ressaca do tornado de véspera, deixara o mar muito agitado, prolongara-se pela noite adentro e houve vagas que, ao vergastarem as bordas da canoa, se despenhavam e me encharcavam. Além disso, existem algumas rachas e sítios por onde entra a água - Deito-me por cima de um estrado de barrotes - O colchão de praia rompeu-se. Só quando a água me atinge as costas é que lanço mão do vertedouro,  devido ao meu estado de fraqueza. Por vezes, até me deixo ficar encharcado nessa salmoura.  - Se ao menos dispusesse do remo principal! Tenho de me servir de um improvisado (imagem acima e ao lado), feito de um tosco pau de um dos mastros suplentes e uns bocados de contraplacado arrancados à cobertura da popa. A maioria dos alimentos e apetrechos, perdi-os no violento tornado, logo na primeira noite.







Diário de Bordo  - 1 É manhã  do 29ª dia. Ainda não tive tempo de comer qualquer coisa. A manhã amanheceu brusca. De noite não choveu. Não há sol. Está um tempo enevoado e há um vento  no sentido de oeste este. 

Coloquei a vela para tirar partido deste vento, que parece estar a dar resultado. Veremos como é que será o dia de hoje....Aliás, já avistei contornos de África, desde ontem e se não fosse o tornado, com certeza que estaria já muito próximo, pois o tornado é que veio desfavorecer a minha aproximação.

Diário de Bordo  - 2 Devem ser aí umas 9.30 a 10 horas da manhã do 29º dia. Já tive que enfrentar mais uma trovoada; não muito violenta mas que me deu bastante trabalho. Agora volta a estar mais calmo, volta haver calmaria. Não há muito vento. embora o mar se apresente com uma ligeira ressaca...Veremos até quando isto vai durar...

 Diário de Bordo  -3  Deve ser provavelmente meio-dia do 29º dia. A manhã esteve bastante trovejada, choveu! A canoa ficou toda alagada!...Agora está enxuta e já volta haver uma certa calmaria. Não há vento. O céu está nevoado... Sinto fome!... Comi um bocado de tubarão mas sinto fome!...O tubarão sabe-me mal... Sinto uma certa fraqueza...


Diário de Bordo - Volto a ver a Ilha de Fernando Pó no horizonte. O horizonte ficou descoberto depois da chuvada e avistei ligeiros contornos da costa de África.... Entretanto, depois da chuvada, estive a fazer uma limpeza da canoa. Deixei-a limpa, sem água  e pus a roupa a enxugar. A canoa, neste momento, está um estendal autêntico! Com tudo a enxugar!... A aguardar, com certeza, outra chuvada (sorrio), que entretanto é capaz de aparecer.

Apesar de todos estes trabalhos. De todas estas dificuldades, sinto-me otimista neste momento. Embora fraco e cheio de fome... Não consigo pescar. tenho deitado o anzol mas não pesco nada. Quando não precisava, eu pescava; agora não consigo. Mas estou otimista. Espero chegar a terra...Hei-de chegar a terra! Pois sinto uma esperança em mim; não estou desiludido...Apesar dos perigos a que me tenho exposto serem muito grandes...

 Os meus tubarões martelo continuam a guardar a canoa...Os outros, por enquanto ainda não apareceram.




Fui marinheiro mas também o poeta do sentir.
Quis sentir, com todos os meus sentidos e até à flor da pele
e à flor do oceano - olhos, língua, olfacto, estômago, veias e tacto,
na brisa marítima que respirei  e na própria água salgada que bebi,
no deslumbramento das tardes serenas e noites plácidas de luar
ou mesmo no assombro da fúria das tempestades que vivi
- sustos, inquietações que o meu coração ainda hoje perpetua - 
 todas as emoções possíveis e imagináveis - E entendi
que só  nos horizontes esbatidos da imensidão do mar,
perdendo-me livremente à superfície  das suas vagas,
no contínuo enrolar das soltas ondas, sobre a crista
ou no fundo da sua cava, as poderia sentir e encontrar.




Diário de Bordo  - 4 Serão neste momento umas quatro horas da tarde do 29º dia. A tarde tem estado muito serena. O mar apresenta-se ligeiramente ondulado. O céu coberto com uma ligeira neblina. No horizonte há nuvens que o limitam mas onde posso vislumbrar outros contornos da costa africana...Não totalmente, mas já se vislumbram perfeitamente, quer para norte quer para noroeste. Vê-se também a Ilha de Fernando Pó. Claro que só a parte mais alta... A Ilha de Fernando Pó (Bioko, situada na Baía de Biafra ) é muito alta. Tem picos com mais de 2000 metros de altura (Pico Basilé – com 3011 m de altitude). 


"Ah, quando nos fazemos ao mar
Quando largamos da terra a vamos perdendo de vista.
Quando tudo se vai enchendo de vento puramente marítimo,
Quando a costa se torna uma linha sombria,
Nessa linha cada vez mais vaga no anoitecer (pairam luzes) -
Ah então que alegria de liberdade para quem se sente.
Cessa de haver razão para existir socialmente.
Não há já razões para amar, odiar, dever.
Não há já leis, não há mágoas que tenham sabor humano...
Há só mar a Partida Abstracta, o movimento das águas.
O movimento do afastamento, o som
Das ondas arrulhando à proa,
É uma grande paz intranquila entrando suave no espírito."

Álvaro Campos (Fernando Pessoa)



Cada um à sua maneira -  Os sonhadores chegam a ser revolucionários - Não é assim ó grande Che?...  - "Lutam melhor os que têm belos sonhos."- Tu com os teus, eu com os meus

Diário de Bordo Passei a tarde a ler...Claro que tenho fome, evidentemente, mas procuro esquecer esse aspeto, ouvindo rádio...Música africana... Estou a ouvir rádio, enfim... a divagar.

Diário de Bordo  - 5 É portanto o fim de tarde do 29º dia. Passei uma tarde calma. Agora a minha preocupação começa a estar precisamente no local  onde irei aportar...Não sei...Será um local habitado?!...Pode ser desabitado...Enfim, o que me interessa é que seja terra, fundamentalmente, é que seja terra! Local seguro... Porque, em terra, há sempre muitas possibilidades de sobrevivência...Aqui, estou exposto  às tempestades... O que realmente me põe a vida em grande perigo...Portanto, estou com a moral bastante elevada, apesar de não comer...Tenho ali um resto do tubarão mas já cheira mal...Não estou desmoralizado de maneira  alguma. Estou até bastante e otimista.

  
Diário de Bordo -  Eu ainda não fiz referência à noite passada: passei uma noite todo encharcado! Envolvido num plástico mas por fim até adormeci e sonhei..Sonhei e tive uns sonhos muito esquisitos, acordei a falar!...Supondo que tinha chegado realmente a terra. Tive assim  sonhos muito esquisitos...


Neste momento olho para o mar...Vejo o olhar para o mar sereno. Calmo! A cor é uma cor bronzeada. Agora não o receio ...Ontem eu estava realmente muito preocupado! Dizia-lhe: ó mar ! Tu não me leves! Ó mar não me voltes a minha canoa!..Eu quase falava com o mar...Realmente, ontem, o mar estava pavoroso.

À medida que o tempo ia passando, as vagas fortes iam avançando contra a canoa!...Eu via que a canoa, apesar dessas impetuosidades não se virava! Eu ia ficando mais tranquilo!...Mas sempre à espera!... À espera que alguma vaga mais alterosa, com maior força, me pudesse voltar a canoa...Eu não tinha qualquer hipótese!...Vi um tubarão grande! Enorme! Ás voltas da canoa. parecia que estava adivinhar que a canoa se ia voltar!...Mas isso, felizmente, não sucedeu! Não sucedeu!... Porque, eu apesar de tudo,  também mantive a minha calma! Fiz tudo por tudo por enfrentar a situação...Sim, realmente, uma pessoa nestas condições, nunca pode cruzar braços!...O nosso cérebro tem que estar sempre a pensar! Sempre a pensar!...Sempre a pensar em novas coisas!... Em poder  dispor dos modestos recursos precários que tenhamos connosco.. Essa deve ser a preocupação dominante.


 Diário de Bordo  -6 Já se pôs o sol, do 29º dia. Finalmente, estou muito satisfeito! Em dois ou três minutos, acabo de pescar dois peixes! aqui debaixo da canoa...Arranjei outro anzol e consegui, num ápice, pescá-los! Vou pois assá-los, com um bocadinho de álcool que disponho...Já não preciso do tubarão...O tubarão está estragado e já o posso deitar fora.É da maneira que já não vou passar dieta!...Ah! eu tinha aqui o estômago a bater horas!...

Diário de Bordo  -7  Neste momento é já noite. Aparece ali a lua-cheia à minha frente!...Mas, tenuemente, visto  fazer uma certa neblina... Confesso que estou satisfateissímo! Os dois peixes souberam-me que nem um pato!...Comi a carne deles crua e gostei! Gostei realmente!...E cheguei à conclusão que é melhor crua de que assada em álcool. Os dois peixes deviam pesar aí 200gramas. A carne era saborosa! Tinham a pele muito dura e foi preciso esfolá-los primeiro. Portanto, o novo anzol resultou. Aliás, eu insisti várias vezes, pois os tipos, cada vez que lançava o anzol, iam à procura da isca, comiam-na e não fiavam lá... Finalmente caíram!







A noite apresenta-se plácida! Absolutamente serena! O mar é um mar chão! Não há vento nenhum. Mas também não há calor...Corre uma ténue aragem apenas...Eu devo estar muito próximo da costa de África...Estão a reluzir os contornos...Por este andar, amanhã devo estar muito próximo, a menos que apareça alguma trovoada a puxar para outro lado....Mas não deve haver esta noite ou amanhã, com certeza, porque hoje não fez sol. Hoje o dia esteve brusco...Portanto, não houve evaporação... É capaz de não haver nenhuma chuvada! E, se houver, é muito fraca...Normalmente as trovoadas seguem-se a quando há períodos  de sol... Aparece logo uma trovoada.

Sente-se palpitar o coração do Oceano
Que pela lua tem um coração humano.
(...)
E nas correntes d'ar que as ondas arrefecem
Vibram as sensações que os nervos estremecem

Teixeira de Pascoaes

Daqui a pouco vou-me deitar no fundo da canoa... O estômago é que não ficou assim muito bem...Estou satisfeito mas o estômago, com esta dose de carne, que não estava habituado... Tenho ainda ali um bocado do tubarão, que já está estragado, mas só o guardo para iscas para apanhar outros peixes, porque já não presta; já não está muito bom....Estou mais animado, visto estar próximo de terra e também por poder dispor  de peixe aqui à volta de mim.

Diário de Bordo  -7 Acredite-se, eu que já tinha  dado tantas voltas à cabeça...Tinha inventado tantos processos!... Pus um anzol num pau. Experimentei tanta coisa e não resultou...Finalmente, lá encontrei um outro anzol mais pequeno e a coisa com esse anzol deu mesmo efeito. E ainda bem!... E que o mar fosse sempre assim...Com esta calma, com esta aparência tranquila...Ah! era muito agradável!... Mas o mar de vez em quando mostra a sua face!...O mar tem muitas faces...Uma face serena!..Suave!...Ondulante!..Depois, grave!...Violenta! Tempestuosa! Essa é que é a face mais dura!...Escura!... Torrenciosa!... Agora a  noite no mar ... mantém-se  plácida... A canoa, claro,  desequilibrada, está sempre a tombalear, o que é bastante chato, visto ter esse defeito. Se não fosse isso a coisa era melhor.

Há um pormenor muito importante que ainda não rezistei: é  que eu tenho medicamentos a bordo..Tenho vitaminas... Claro que isso não dispensa a comida mas dá muito jeito. E isso graças à boa colaboração  do Dr. Epifâneo da Franca. Que me resolveu  realmente um grande problema...Até para a água doce...Quer dizer, eu apanhei água das chuvas.. Ele tinha-me arranjado um preparado químico, com o qual podia fazer água potável. E isso deu resultado. E ainda bem que contei com essa preciosa ajuda.

"Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender-
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada..."

23-8-1934

Fernando Pessoa






"Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar". Sofia de Mello Brayner Andersen


MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!


  Fernando Pessoa


Frases a reter:

 Teresa Rita Lopes tem uma relação íntima com o mar. "Trabalho a olhar para o mar, não sou capaz de trabalhar sem o ter à minha frente."

 Com a crise que Portugal atravessa, para a escritora, "o mar é o que nos resta" e diz haver necessidade de arranjar não só novos barcos mas também pôr novamente as pessoas a pescar, porque "quem vive perto da água não passa fome". A escritora apela a que "cultivemos o mar", pois este é muito especial. Em diversos poemas de Teresa o mar é a personagem principal. DN .. "Cultivemos o mar"

 Júlio Isidro acha que o mar já foi, em tempos, muito bem aproveitado. Mas, na "história recente, houve indicações superiores para que os portugueses voltassem as costas ao mar. Diminuíram as frotas pesqueiras e os portugueses passaram a ter uma zona de pesca e de navegação bem menor".Para o apresentador, num ano em que "100 mil portugueses foram embora do País" o mar existe só para ser "atravessado para outros mundos. Cada português está a tentar descobrir um novo mundo para si".-Novos mundos - Economia - DN
EU E O MAR - JÚLIO ISIDRO,



segunda-feira, 15 de outubro de 2012

28º Dia - Grandes vagas alterosas entravam dentro da minha canoa!... Um tubarão grande, daqueles perigosos, rodeava-me de um lado para o outro!... Foi para mim uma tarde angustiante e aflitiva!...Sem comer!... Aqui ando não sei para onde!...


Algures no Golfo da Guiné, 17 de Novembro de 1975

Diário de Bordo  - 5 "Não sei onde me encontro...Não sei para onde vou!... Mas tenho ainda uma réstia de esperança... Tenho fé em Deus! Que realmente chegue a terra!... É o que posso dizer neste princípio de noite..." 

Diário de Bordo  - 7  Sinceramente!... Vou-me deitar!... Vou ver se descanso qualquer coisa, daqui a bocado...Mas, sem comer nada?!...Com estômago completamente vazio... (..) Ah, mas eu quero é viver! É viver! E mais nada!... Eu quero viver!... A vida é tão bela!... A vida... ai... (não resisto que as lágrimas me corram pela face) Só no meio das dificuldades é que uma pessoa, realmente, avalia o que é a vida!...
 ..


(foto do autor deste site, algures nos mares Golfo)


Diário de Bordo  - 1  Deve ser uma da manhã do 28ª dia. É noite e está luar!...Até agora o tempo tem estado bom. Mas o  mar está muito agitado,  com uma  uma calema muito forte! E eu ainda  nem me deitei nem cruzei os braços, vou a velejar. O que me obrigo a uma atenção redobrada. A canoa balanceia bastante! E eu já ergui  a vela mais pequena para dar outro equilíbrio à canoa.

  Há umas formações de nuvens lá ao largo...Esperemos que entretanto não chova 

Em meu redor é o mar! E é noite de luar!... No alto do cósmico arco, e já muito acima do ponto onde se ergueu do fundo das águas,  brilha um impressionante disco lunar, cuja claridade se espalha por uma imensa superfície espelhada de infindos brilhos de prata e por infindas pregas de enrugada extensão, ora  cintilando, ora desmaiando, mas cá em baixo o seu brilho vem somente tornar ainda mais visível  a face conturbada da infinita solidão que me submerge. Pois, de tão longínquo, não desfaz por completo as negras nuvens que pairam em torno do obscuro horizonte  que me envolve, que continuam  a revelar-se, como olhos de assombrosa   e velada ameaça!..
 . 


Sim, alta vai a noite e alta brilha a lua e eu não durmo! -  Ondulam nervosas águas e, por tão agitadas, adio o meu repouso;  nem tão pouco posso dormir nem descansar. No entanto, completamente alheia à minha incerteza,  a canoa lá vai subindo e descendo a cova e a dobra  de cada onda do imenso manto tumultuante. Sei a direção que toma mas não faço a mínima ideia onde estou nem para onde vou.


Sozinho, apreensivo e triste, lá vou   balanceado pela noite afora, velejando ansioso, proa apontada ao desconhecido. Tosco pano içado em tosca vara de mato a desafiar os ares destes turbulentos mares. Atento e vigilante. Atormentado pela incerteza, pela fome e pela sede- sim, a água que recolhi das chuvas, é pobre. Sem comer e sem poder dormir,  lá vou velejando,  impossibilitado, mais das vezes, de o fazer. Derivando, indo arrastado, ignorando o destino para onde me conduz o movimento incessante deste ondulante e lívido manto líquido.

(pescador de São Tomé - foto do autor deste site)

Mas, oh Deus, a lua, descoberta ou encoberta, lá segue imperturbável o seu percurso -   Jamais força alguma a desviará a impedirá  de mostrar à Humanidade e a toda a Criação,  as várias faces do seu rosto. Mas, o meu destino, como será?!... Sozinho e abandonado,  debaixo da sua luz,  ao sabor dos caprichos do mar e do vento, para onde me levará a noite?!... Qual o  meu  caminho?!... .. Quem me responde?!... 

A que  enseada de águas calmas, límpidas e profundas, a que  bom porto de abrigo ou praia de areia fina,  a minha  canoa, poderá tranquilamente acostar? Ou a que íngreme escarpa,  promontosa arriba, rochosa falésia, poderei vir a  ser  atirado e despedaçado?!... E, depois, o que poderá acontecer-me se pisar a  tão desejada floresta, luxuriante e fértil, carregada de frutos silvestres, chão viçoso e perfumado,  a  tão ansiada terra firme?!..  
  




(largada da Praia das Neves, em São Tomé - para o pesqueiro Hornet, afim de me deixar na corrente equatorial)



Como irei ser recebido?!...Apiedando-se de mim, deste miserável náufrago,  acolhendo-me, humanamente, ou intrigando-se com o  meu aspeto, magro, atormentado,  queimado e olheirento, de criatura vinda de outro mundo?!... 

. Recebendo-me com desumana desconfiança e hostilidade, como perigoso invasor e foragido?!.. Vendo em mim o ser pacífico, que ousou enfrentar sozinho as procelosas ondas dos tornados ou o vil estranho,  o  suspeito,    desembarcado de barco  espião ou pirata?!...

Dez dias depois, conheceria a resposta -  detido, algemado, encarcerado!... Mas, agora, era a noite, mais uma longa noite equatorial,  um longo e exaustivo desafio - E, cada noite, nestes mares, não é uma noite, como  outra qualquer, mas a  sombria eternidade, a sempre misteriosa e antiquíssima noite, que, a cada momento,  vai mostrando, aos meus olhos, ansiosos e perscrutadores, as mais diversas máscaras e fantasmas, com que se cobre ou revela.

 "Vem, Noite antiquíssima e idêntica. / Noite Rainha nascida destronada, /Noite igual por dentro ao silêncio, Noite /Com as estrelas lantejoulas rápidas /No teu vestido franjado de Infinito.

(...)Vem soleníssima,/ Soleníssima e cheia / De uma oculta vontade de soluçar, /Talvez porque a alma é grande e a vida pequena, /E todos os gestos não saem do nosso corpo, /E só alcançamos onde o nosso braço chega, /E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa, / Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos, /Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados. /Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes. 
  
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados. /Vem, lá do fundo / Do horizonte lívido, /Vem e arranca-me / Do solo de angústia e de inutilidade / Onde vicejo.
(...)  Alvaro de Campos (Fernando Pessoa)




 



CONTINUO SEM PESCAR E A GUARDAR O TUBARÃO, JÁ ESTRAGADO. - BASTANTE ME CUSTA  SACRIFICAR AS MINHAS ÚNICAS COMPANHEIRAS QUE VÊM PERNOITAR NA MINHA CANOA ...MAS, OH MALDITA  FOME! A QUE CRIME ME LEVASTE!..

Diário de Bordo  - 2 - Apanhei há bocadito uma ave...Uma avezita...Sinceramente, custa-me fazer isso...Até porque pousam aqui todas as noites...Mas a verdade é que a necessidade me obriga... Há fome!...Portanto, tenho que me valer destes recursos....

Diário de Bordo  - 3  Os trabalhos que acabei de executar, são trabalhos muito melindrosos... É preciso fazer umas ginásticas para se proceder a isto e evitar  que se caia ao mar...Realmente está uma calema bastante forte e a canoa balanceia muito!... Está sempre a ser vergastada e a balancear!... O vento não é muito mas o mar está muito cavado!...

Diário de Bordo  - 4 Devem ser aí 7 da manhã do 28ª dia. A situação é muito enervante!...O mar continua agitado!... Ao amanhecer surgiu uma trovoada violenta que deixou o mar muito cavado!... A canoa anda para aqui a balançar  de um lado para o outro e torna difícil o meu equilibro....O tubarão dá um pivete dos diabos!... Está a cheirar mal!... Tenho  tentado pescar e não consigo pescar nada!... Há aqui uma série de peixes parasitas que mal lanço a isca vão logo comê-la!... Simplesmente, não ficam lá presos, porque o anzol é demasiado grande.

Estou  realmente saturado!... A canoa deve ter andado bastante, devido à violência das vagas mas não vislumbro qualquer contorno de terra!...Isso é para mim bastante chato, porque já era altura de estar próximo de terra... Estou para aqui esfomeado!...Enfim!...

As correntes mudaram nitidamente. Estão-me a levar para norte, nordeste. O que vai atrasar a minha chegada a terra...Por este andamento, até é possível que já não chegue à Nigéria mas aos Camarões.

 
ASSOLADO POR UM VIOLENTO TORNADO DURANTE O DIA, ACABEI POR NÃO FAZER MAIS QUALQUER REGISTO NO PEQUENO GRAVADOR, QUE GUARDO  NO MEU BAÚ DE PLÁSTICO, UM VELHO CONTENTOR DO LIXO - AO TORMENTOSO DIA, VAI  AGORA SUCEDER A INCERTEZA DE UMA LONGA E TORMENTOSA NOITE DE VIGÍLIA

Diário de Bordo  - 5  Fim do 28º dia. É noite!... Meu coração está profundamente triste!...A manhã esteve realmente bonita mas a tarde foi tempestuosa!...Veio uma violenta tempestade que me pôs em sérios riscos a canoa!... Só não a virou talvez por milagre de Deus!... Só isso não aconteceu talvez por milagre de Deus!...

Grandes vagas  alterosas entravam dentro da minha canoa!... Um tubarão grande, daqueles perigosos, rodeava-me de um lado para o outro!... Foi para mim uma tarde angustiante e aflitiva!...Sem comer!... Aqui ando não sei para onde!...

Ao princípio da tarde avistei terra!...Avistei contornos da costa de África!... Mas o tornado surgiu!...Surgiu a tempestade!...Está a retardar com certeza a minha chegada a terra!.... Meu Deus!... Cada vez as dificuldades são maiores!... Mas a verdade é que tudo tem limites!.... Espero que a noite seja um bocadinho mais repousante!... O mar já está mais calmo!... Embora ainda cavado... A ressaca ainda se está a notar!


Diário de Bordo - A verdade é que eu não posso estar tranquilo!.. De maneira nenhuma... Todos os dias tempestades!...Todos os dias trovoadas!... Eu também não sei até que ponto a minha canoa resistirá.... a  estas condições todas... Não sei onde me encontro...Não sei para onde vou!... Mas tenho ainda uma réstia de esperança... Tenho fé em Deus! Que realmente chegue a terra!... É o que posso dizer neste princípio de noite... Noite escura!...Tão escura como foi a tarde... Enfim... seja o que Deus quiser..

Diário de Bordo  - 6  A canoa tem um grande defeito: está desequilibrada!.. E eu costumo...quando surge um tornado, fazer com que ela fique virada para o lado que está mais pesado. E desta vez havia todas as possibilidades  de a canoa se virar!.... Isso não aconteceu por muita sorte!...Só quase por milagre é que não aconteceu... Este quase mesmo a voltar-se.

Diário de Bordo  - 7  Eu acho que um homem nunca deve desesperar... Mesmo vendo a morte à frente dos olhos....Mas, sinceramente, já são 28  dias passados nestas condições...Tão difíceis!...Espero que a confiança não me falte.... E a calma para continuar a suportar tantas dificuldades e tantos perigos!...

 Sinceramente!... Vou-me deitar!... Vou ver se descanso qualquer coisa, daqui a bocado...Mas, sem comer nada?!...Com estômago completamente vazio... Pois não tive tempo de preparar qualquer coisa... Aliás, o que tenho aqui é unicamente um bocado de tubarão, mais nada!... (estragado)... Ah, mas eu quero é viver! É viver! E mais nada!... Eu quero viviver!... A vida é tão bela!... A vida... ai... (não resisto que as lágrimas me corram pela face) Só no meio das dificuldades é que uma pessoa, realmente, avalia o que é a vida!...

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.
Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!
 (..)
Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo.
.