COMO A MORTE CEIFOU POR COMPLETO UMA PEQUENA ALDEIA E SE ALASTROU POR QUASE TODA A ILHA - AS CONFISSÕES DO CRIMINOSO ZÉ MULATO E DO "HOMEM "CRISTO"- O HOMEM QUE FOI CRIVADO DE BALAS E SOBREVIVEU (relato
de um santomense que fora torturado - 20 anos depois - agora já lá vão 58 ).
Embora às trevas sucedam à luz e à morte
o crepúsculo dê
lugar às trevas,
há porém
crepúsculos,
que, por estarem
tão raiados de sangue,
tão matizados de
cores purpurinas
e de tão
intensas memórias
perduram
pelo infinito,
não se esbatem
nem morrem!
Entram pela
noite adentro, como sentinelas vivas!
Vão pelos dias e
noites adentro, vão por aí a fora
- Nem são a
porta da noite mais escura e apagada,
nem o fim da
janela aberta à mais bela claridade.
O Massacre do
Batepá, visto agora
à distância, no
espaço e no tempo,
mesmo tendo
ocorrido há mais de meio século.
Quem é que,
entre os que conheceram e sofreram,
quem é que,
entre os santomenses vivos,
poderá
esquecer tão aviltante adversidade?!..
Eu tinha oito
anos e estava longe,
muito longe, dos
horizontes
que marcaram
esse terrível sofrimento,
Frequentava a
escola primária....era um inocente.
Quem havia de
imaginar, que, dez anos depois,
haveria de ali
ir parar aquela martirizada ilha,
regada pela dor
e pelo sangue de
Escasseava
a mão de obra barata..
E
o governador planeava construir grandes edifícios
à
custa do trabalho forçado nas ilhas
e
mandou o ajudante de campo
armado
em soldado nazi a comandar
um
grupo de milícias para ordenar
o
trabalho obrigatório..
num
verdadeiro retorno aos primórdios
do ignóbil e duro esclavagismo,
até
que, numa remota aldeia perdida no mato,
algures
pela Vila da Trindade,
alguém
se encheu de coragem e reagiu
sobre
o fogoso e arrogante alferes,
que
teve a reação popular que merecia
e
à altura da leviandade
e
do desprezo como olhava a população
e
impunha a sua vontade .
A
partir daí o Governador Gorgulho - para salvar a face
dos
seus desmandos e prepotências,
e,
como os grandes erros, nunca vêm sós,
para
justificar uns cometia outros, cada vez mais graves.
passou
acusar os "rebeldes" de comunistas,
através
da imprensa e da rádio.
E
não tardou que os colonos - incentivados ao ódio à dita
"hidra comunista",
respondessem
ao apelo dos muitos boatos propalados:
"Há
notícias de que foram avistados submarinos soviéticos ao largo
e
descarregadas armas para apoiar a revolta dos negros insurretos
contra
a
integridade desta província ultramarina!" - Foram detidos
e
presos vários suspeitos. O governo promete firmeza
e
mão pesada aos criminosos!
Por
toda a ilha mobilizam-se milhares de voluntários."
-
E, quilo que poderia ter sido um caso isolado,
depressa
é rotulado de rebeldia comunista.
Face
a tais atoardas e falsos alarmes, as roças passam ao ataque:
empregados
de mato e dos escritórios,
feitores
e administradores - e até capatazes negros -
partindo em jipes de todas os cantos da colónia,
concentraram-se
na Trindade, e, fortemente armados, dirigem-se
através
dos caminhos do mato ao Batepá, descarregando tiroteio forte e
feio,
(naquela
e noutras aldeias) sobre as populações indefesas e pacíficas
-
mães com os filhos às costas, homens, mulheres e inocentes
criancinhas,
e
até porcos, cabras e galinhas -,
tudo
é imediatamente alvejado e varrido!
Tudo
quanto é vivo e apanhado pela frente, é vítima
das
maiores atrocidades e dos disparos mortíferos
das
velhas máuseres alemãs hitlerianas - herança do nazismo.
A
fúria assassina só terminou, quando,
em
escassos cinco dias,
rapidamente
todas as munições se esgotaram na ilha
-
Para trás, ficava um autêntico banho de sangue,
aldeias
totalmente queimadas e destruídas
e
inúmeros cadáveres estendidos
sobre
o chão fértil e verde da luxuriante floresta.
E
a paz , que ali reinava dantes,
dava
lugar a um autêntico cenário de horrores:
por
todo o lado havia a imagem e o cheiro da morte!...
-
E aqueles que conseguiram escapar, feridos ou vivos,
onde
quer que se encontrassem,
vertiam
agora lágrimas de dor e de luto, de desespero e aflição.
Rara
era a família santomense que não chorasse
um
dos seus mortos.
-
Porém, o macabro crime não tardaria também a atingi-los
da
forma mais violenta e cobarde.
Enceta-se
a caça aos "culpados" e outro cenário cruel
rapidamente
vai ter lugar.
O
governador ordena a matança de uma assentada
e
depois arrasa, em campos de morte e repressão,
outros
tantos milhares
para
justificar o injustificável:
o
abominável crime, as incomensuráveis arbitrariedades
Ouvi
as declarações e os desabafos de algumas das vítimas
que
sobreviveram ao massacre do Batepá
e
às prisões e torturas de centenas de mortes que se seguiram.
Por
fim, também ouvi o principal carrasco, cujo diálogo
registei
para um pequeno gravador . Recebeu-me na sua oficina, cá fora,
encostado
à sua carrinha. Mas não foi fácil falar com o corpulento Zé Mulato.
E
até me dirigi a ele com alguma relutância e medo, receando
que
pudesse ter a mesma atitude intempestiva
dos
colonos e me agredisse - Não o fez fisicamente
mas
as suas palavras soaram-me a balas,
a
extrema violência e a fusis!
Não
queria falar
e
vi que também estava zangado comigo: "Você é um parvo!!..
Tinha
obrigação de conhecer melhor o preto!!..
Eu
sou negro e analfabeto e sei bem o que sou: conheço a minha rês!!"
Mas
depois de o deixar desabafar,
lá
foi desfiando alguns dos episódios,
revelando
pormenores
do
acontecimento macabro
Sei
que não serei capaz de o recapitular.
Embora
me lembre, todavia, de tudo quanto me disse.
-
Sim, já me haviam relatado os seus crimes,
mesmo
assim não esperava tão inesperada confissão.
actos
de tamanha impunidade e crueldade!
Descritos
com tão flagrante e desbragada sinceridade.
Tão
crassa frieza, impiedade e desfaçatez
Cujas
palavras ainda me não saíram
completamente dos ouvidos,
tal
a impiedade com que as pronunciou
e a impressão com que ainda hoje
as recordo.
Mas
vou tentar - vou ver o que consigo.
Sim,
confessava-me ele num certo dia e com palavras de arrepiar:
numa
entrevista que depois não chegou a sair na Semana Ilustrada
Disseram-me
de Luanda que era muito chocante e não podia ser publicada:
"Em
Fernão Dias eu era o capataz
e fui uma máquina bruta a matar!!...
Era
eu quem mandava. Cumpria ordens!...
O que querem agora que eu faça?!..
Querem
que eu me mate
ou querem que eu me deixe matar por eles?!...
Agora
andam para aí a rondar-me a porta:
o primeiro que aqui entrar,
deixo-o
aqui degolado, não sai daqui inteiro nem vivo!...
Querem
que lhes dê o mesmo trato?!...
A
uns matava-os a soco, outros a tiro, à paulada ou à machinada!
Alinhava-os
ao longo da vala para não me darem muito trabalho.
Alguns
ainda gritavam lá dentro, mas calava-os imediatamente,
com
umas quantas pazadas de terra.
Nem
era eu que as deitava,
mas
a outra "empreitada"
que
vinha logo a seguir.
O
campo estava vedado de arame farpado
Mas
houve quem fugisse. Houve uns macacos que se puseram andar!!..
Por
isso, passei acorrentá-los para não se escaparem,
e,
às vezes, para não me maçar muito,
mandava-os
carregar água do mar em potes até se cansarem!..
E
tinham que andar ligeiros, dar a volta pelos coqueiros
e
a despeja-la ali de novo à beira da praia!
Dei
muitos murros e pontapés até se cagarem!
Depois
mandava-os abrir as covas
para
outros os enterrarem!
Não
tenho pena de nenhum dos que matei!
-
Foram uns milhares de "comunistas" à
vida!
Fui
duro!... Bem sei... Tinha de ser...
E
não me pergunte se estou arrependido,
não
senhor! Não estou!!.. - Outros amarrava-os à cadeira
dos
choques eléctricos:
"até
pulavam!...Até gritavam!...
Eram
uns tristes ... Coitados!...Passavam sede e fome!.. .
Andavam
magros como os cães!... Alguns caiam já mortos!..
Eu
sei...Foi duro!.. Eram meus patrícios!...
Mas
quem é que os mandava ser comunistas?!..
Houve
muitos que sempre negaram a morte do alferes
por
mais verdoadas que levassem!
Oh!
mas quando o cacete lhe caía nas costas!...
Ou
o chicote lhes zurzia na cabeça e no focinho!...
Não
havia língua que não se soltasse!
Abria-se-lhe
logo a boca p´rá verdade!!...
E
os desgraçados até me davam vontade de rir
quando
de repente confessavam:
."
- Perdoa-me Zé Mulato! Perdoa-me Zé Mulato!
Eu
sou comunista! Eu sou comunista!
Não
me mates!!Não me mates!!!
Estou
arrependido!
não
me meto mais noutra!!"
-
Era então quando lhe dava mais porrada!
Virava
pau em cima deles!... Pau até partir ou rachar cabeça deles!..
Ainda mais os espancava!!...
Comunistas?
- pergunto eu. Sabiam lá os tristes massacrados
o
que era o comunismo!- Nem ele próprio sabia.
Mas,
lá está... Zé Mulato era lesto e mau!
Portava-se
como todo o mundo fosse seu.
Cumpria
as ordens que vinham de cima
por
inteiro e ainda abusava!
Queria
lá saber do sofrimento alheio!...
O
verdugo era impiedoso e não hesitava!
"Depois
duns valentes choques eléctricos, aos mais renitentes,
desapertava-lhe
as fivelas, tirava-lhe os coletes e as correias,
soltava-os,
ficavam doidos e tontos, pareciam macacos esgazeados!
Atiravam -se direitos às paredes às cabeçadas!
Até
sangrarem-lhes os dentes!
Caiam
no chão e esperneavam!
E
eu depois lá tinha de acabar com eles,
com
uns pontapés na cara! - Esmagava-os!!...
O
negro é rijo!... Custa a morrer!
Eu
também sou da mesma fibra..
e
venha aí o primeiro
que
me queira dar alguma cacetada!
Senão
os matasse nunca mais morriam e se acalmavam!
Dava
em maluco!... Ainda ia ficar mais estragado do que eles!!..
Então
era gritaria a toda a hora e nunca mais se calavam!..
Mas Sô Zé Mulato tinha o perfil do carrasco ideal,
nem ia ficar louco nem minimamente se impressionava!
- E, pelo que me disse, até achava muita graça e piada -
Porém, a tal cadeira
- só de se ver - era mesmo real e macabra.
Sim, ainda vi a imagem cruel e fotografada desse abominável
suplício!
- Tive-a nas mãos mas não a pude publicar: o editor da Voz de São
Tomé,
(jornal do regime), essa e outras horrendas imagens não mas
facultou
nem ele as publicou - espero que estejam guardadas em
arquivo
- Um tal militar (um tenente fascista) encarregou-se de
limpar
os arquivos da PIDE e o que não interessava.
Entrevistei
sobreviventes
e publiquei fotografias que
me valeram - por duas vezes -
todos os pneus do meu carro à
navalhada,
-
isto já depois de uma tentativa de ser abalroado na estrada,
posta
uma forca de corda pendurada por colonos à porta de minha casa,
ainda
voltei a ser alvo de muitas cenas de ódio
e
afrontosas patifarias! - Uma ocasião invadiram o Palácio,
e,
quando me viram, eram milhares de colonos à pedrada atrás de mim:
salvou-me
o facto de ver uma porta aberta e subir pelas escadas
e
me esconder no telhado - Felizmente houve quem assistisse
à
perseguição e visse o meu esconderijo: um santomense,
pela
calada da noite, chamou-me
e
levou-me para o seu humilde casebre,
algures
fora da cidade,
onde
me tratou dos ferimentos
e,
durante duas semanas, me acolheu generosamente.
Quando
voltei à minha modesta casa - um simples quarto alugado
num
edifício de escritórios, o seu estado era irreconhecível:
partiram-me
tudo - roupa rasgada,
máquina
de escrever destruída,
de
inteiro não ficara nada..
Falei
com o "Homem Cristo", o único sobrevivente
que,
entre três dezenas de aprisionados,
numa
cela de polícia, irrespirável, minúscula e apertada,
logrou
resistir e pôde escapar-se a uma saraivada de balas!
Pois,
de manhã, o carcereiro ao abrir a porta
munido
de uma arma, vendo-o a fugir,
apresou-se
a carregar sobre ele toda a metralha
crivando-o,
quase completamente, com dezenas de disparos.
Mostrou-me,
em sua casa, as calças completamente esburacadas
por
onde cada bala fizera a sua perfuração,
desde
os pés, às pernas e quase à cintura,
fora
os disparos que o atingiram noutras partes do corpo.
Confesso
que fiquei incrédulo: nem queria acreditar
no
mistério assombroso que teria estado na sua salvação.
Mas
a verdade é que ele estava vivo
e
estava ali à minha frente.
Era
de carne e osso como eu.
Era
um ser humano. Não se sentia nem inferior nem superior a nada.
Nem
era nenhum espírito de outro mundo, duende ou fantasma.
Interrogava-me
de como teria sido possível resistir
ao
despejar de carregadores de balas, suportar tanta metralha
e
ficar vivo?!...- Oh, sim.. Pobre homem!... Foi um milagre!
Estou
a imaginar o sofrimento
e
a enorme aflição por que passou
na
sua atormentada mas tão espetacular fuga!
-
Claro que foi um homem de sorte!... Apesar de fortemente baleado,
foi
um felizardo ter sobrevivido! - Um verdadeiro milagre que o salvou!
-
Por esse motivo, por essa razão,
passaram
a chamar-lhe o "HOMEM CRISTO"
Eu
vi a franzina figura desse CRISTO!
Desse
pequeno grande homem, corajoso, simples e humilde.
e
o mais surpreendente de tudo é que ele parecia
não
alimentar o menor rancor, ódio ou mágoa
de
quem quer que fosse!...No seu rosto
transparecia
confiança e uma espécie de luminosa claridade!
-
E até sorria, quase com infantil ingenuidade
quando
olhava para as calças e me dizia:
"Veja
a sorte que eu tive!... Veja como as balas
furaram
as minhas calças, atravessaram
as
minhas pernas e não me mataram!..."
Espantoso!
- Todas estas palavras
expressas
com tão claríssima serenidade!
-
Sim,
apesar de tudo, as malditas balas - que tudo perfuram - foram suas
amigas,
deixaram-lhe
as pernas ensanguentadas e quase partidas
mas
não o deixaram estendido e o atiraram para a sepultura
(tal
como os demais companheiros que morreram horrivelmente asfixiados)
Ele
estava ali à minha frente,
embora
cheio de cicatrizes,
mas
ainda bem lúcido e vivo!
Todavia,
a testemunhar
e
a gritar aos céus e a Deus,
tão
gritante tirania
e
maldade!
-
Curiosamente, o saber perdoar aos seus algozes,
não
alimentar deles rancores nem ódios,
dar
a vida pelos homens de boa vontade,
não
ver inimigos em qualquer rosto
e
ser infinitamente bom e amoroso
é
também a imagem, legada
do
coração prenhe de uma infinita bondade,
exemplo
pacífico e de caridade,
sim,
é precisamente o que transparece
da
vida e da morte, o coração generoso
de
Jesus Cristo - o crucificado
Na
verdade, o desprendimento, o amor ao próximo,
o
ser humilde e saber perdoar
é
o que define as virtudes e as qualidades
dos
grandes espíritos - E
o HOMEM CRISTO,
era
um desses raros espíritos
que
o bom povo,
onde
nasceu, viveu e cresceu,
tão
cedo o esquecerá.
Também
vi chagas vivas em alguns sobreviventes
tal como as que foram provocadas pelos pregos
e
as pontas de lança nas mãos e nos pés
do filho de Maria e de José -
iguais às do Cristo crucificado.
Causadas
pelos argolas de ferro agrilhoadas nas pernas
dos
que foram brutalmente espancados
e
barbaramente seviciados e acorrentados
-
Vi e reconheci, estupefacto, que, passados 20 anos,
e
por força da maresia, da humidade e do sal,
durante
o logo e brutal cativeiro a que foram expostos,
ainda
existiam feridas que não tinham totalmente sarado:
e
não só eram bem visíveis como expunham bem as marcas
deixadas
pelas correntes e as argolas,
como
se o hediondo massacre
tivesse
ocorrido de véspera!
Mas,
Sô Zé Mulato estava consciente da suas maldades
e
conhecia bem as vítimas.
E
o que mais o incomodava não era o sentimento de culpabilidade!..
Que
parecia não ter nenhum: mas saber que houve sobreviventes
e
estar desgostoso por não os ter matado a todos!
Eu
vi esse desejo, esse requinte, esse ódio bem patente, no seu
semblante! -
Não
suportava que lhe falasse dos que dele se queixavam:
dos
que estavam vivos e haviam resistindo às suas atrocidades.
Vinha
logo com as mais insólitas acusações!... Que resumia, repetidamente,
nesta
mesma expressão: "Esses pretos não prestam!,"São todos uns
aldrabões!"
No
seu ponto de vista,
os
criminosos eram eles! - Zé Mulato o bonzinho.
Ele
sabia que era mau, mas, por vezes, contradizia
a
confissão: "Eu nunca fiz mal a ninguém!
Eu
cumpria as ordens que me davam!!.."
Porém,
logo a seguir, recriminava-se,
não
do que fez mas do que não chegou a fazer.
Por
não ter levado ainda mais longe
a
sede assassina dos seus instintos!..
Na
verdade, no perfil do grandalhão e insensível do Zé Mulato:
-
De alto a baixo daquele seu enorme corpanzil - só havia maldade! -
Que
o passar dos anos ainda mais azedara e não erradicara.
A
escolha para capataz não foi obra do acaso:
O
regime colonial foi buscá-lo à cadeia
onde
cumpria pena grave
por
ter salsado e esquartejado
à
machinada a sua infeliz companheira.
Pelo
que depreendi, o colonialismo-fascista
-
para levar a cabo com eficiência o plano de atrocidades -,
estava
perfeitamente consciente dos riscos e do que fazia:
historicamente,
é o grande réu e culpado
do
vergonhoso e ignóbil massacre do Batepá.
Pois
não podia ter escolhido
maior
assassino e vilão,
maior
sanguinário e bandido!
Após, o 25 de Abri, reabriram-se processos e reviu-se o caso:
Procurou-se ressarcir-se algumas das vítimas.
Porém, por mais boa vontade que houvesse
- eu não acredito que tivesse havido -,
não há dinheiro algum, seja qual for a palavra justiça
- seja lá, em qualquer ponto da Terra, seja onde for,
que possa justiçar e redimir
o sofrimento, a morte, o luto e a dor
de tão horrenda e
inqualificável carnificina
Não,
não me arrependo de nada!..
Rematava o Zé Mulato, ao
questioná-lo: sem alterar
o
semblante odioso e carregado,
sem
esboçar o menor remoque de consciência,
sem
alterar a mesma dura frieza
com
que começar a desbobinar
o
rol das atrocidades que havia cometido.
Sem
exteriorizar o mais leve sentimento de arrependimento,
sem
manifestar o menor pudor ou vergonha,
sem
alterar o tom de voz e o mesmo ar de insensibilidade,
de
quem faz mal, provoca a dor o sofrimento e a morte
e
parece passar completamente à margem de tudo isso.
Arrepender-me?!...
Era o que me falava!!..
O
que lá vai, lá vai! O que passou, passou!...
O
3 de Fevereiro de 53 já não é de hoje! (1)
Eu
não olho para trás quando vou ao volante do meu carro!...
-
Olho em frente!!...
Eram
ordens, meu senhor!.. Ordens do Governador!
Eu
cumpri as ordens! Era meu dever cumprir as ordens!...
Tudo
quanto fiz foi em serviço!
Não
tenho culpa de nada
e
nada tenho contra o Gorgulho Governador!
Não
sinto remorsos de coisa nenhuma.
Não
houve nenhum massacre!
Eu
era apenas o capataz!
Não
era mais nada!
Será
que a alma desse vil assassino, desenvergonhado algoz
-
ele que abandonou a cidade disfarçado
de
fato-macaco azul e entrou no avião à socapa,
(deixando
para trás a oficina da carpintaria para buscar refúgio na
metrópole:
na
terra do pai mas longe da sua pátria),
-
sim, esse vilão, que também já lá está -
ele
os outros que foram tão algozes como ele e lhe deram as ordens,
poderão
algum dia ter ponta de perdão, descansar
tranquilamente
de tanta maldade!
Descansar
sem remorsos no outro mundo em paz?!...
Deus
é grande! Pois é... mas não morre!
E
a morte dos que cedo partem não é menor!...
A maioria dos colonos portugueses eram explorados pelo regime
colonial - mas não estavam preparados para aquele voltar de página histórico -
Além disso, alguns excessos obrigá-los-ia a abandonar as ilhas. Ainda cheguei a
fazer alguns alertas, junto da Associação Cívica para esse facto - Mas os
radicais achavam que era preciso varrer com todos os colonos. Foi um erro
irreparável.
AS
ROÇAS
As
roças foram privatizadas e dizem que já não são o que eram.
Mas
ainda bem que já não são o que foram - Pois a memória
que
ainda hoje me ressoa das roças
é
a da prepotência, da afronta violenta e da escravidão!
E
comenta-se também que o melhor que resta delas são os nomes - Sim,
não
vejo mentira nenhuma: - cada nome evoca ainda hoje uma carga muito simbólica:
os
nomes de santos que ali nunca existiram,
os
nomes de lugares que ficavam muito longe
e
os estados de ânimo ou de alma
que
só com "Milagrosa" "Caridade",
"Ilusão",
"Esperança", "Amparo", "Esperança",
"Perseverança",
"Generosa" "Fraternidade"
e
uma grande "Aliança", seria possível
constituir
a "Eternidade" de um "Novo Brasil", uma "Boa
Entrada",
num
"Monte Café", num "Rio do Ouro", numa "Colónia
Açoriana",
numa"Nova
Olinda", " numa "Ribeira Peixe"
numa
"Água Izé", "Ponta Figo", "Uba Budo", em
"Vila Real",
ou
abrir um"Novo Ceilão", em "Bombaim"
na
Índia e por aí adiante: por mais
rezas,
rogas e preces que se fizessem
a
"Santa Catarina", a "S. Miguel, a "Santa
Adelaide",
a
"São Nicolau" e a "Santo António"
Por
mais nomes sagrados, exóticos e pomposos que ostentassem,
elas
representam ainda hoje a herança mais brutal e violenta
da
escravatura e da mais desumana e perversa exploração colonial
Fala-se
de que foram entregues a familiares e amigos
e
aos amigos dos estrangeiros e seus amigos e afilhados.
Em
parte, não me admira que assim seja: na ilha do Príncipe, como em São
Tomé,
todos
são parentes, uma grande família.
O
país é pequeno, o povo é solidário e todos se conhecem - O colonialismo
era
guloso e opaco por excelência,
só
se reconhecia a ele nos tais almoços e jantaradas
e,
de bons exemplos, não se herdou nada.
Não
há um espelho de virtudes que sirva de referência.
E
a ser verdade, que as roças estão desfiguradas,
o
mais certo é que não terá sido esse o melhor caminho escolhido
-
Mas também, em Portugal , depois do 25 de Abril,
houve
procedimentos parecidos:
Também
se destruiriam herdades
e
se cometeram muitos erros,
houve
algumas barbaridades.
Mas,
em democracia (agora já nem sei bem o que será)
com
os erros caminhando, se aprende a caminhar
E,
em ditadura, cometem-se tantos desmandos, erros gravíssimos!
Todavia,
que justiça há?... E quem serve?.. E o que se aprende?!...
Pois
é, mas quem é que de boa memória se esquecerá,
que,
no tempo do patrão da roça, só o negro era senhor da fome,
-
de toda a fome nas ilhas! Da muita fome que existia!
-
Ratazanas que se comiam! - Vi-as eu comer aos serviçais!
E
o senhor grande patrão, sempre de barriga farta!
Ele
não comia do armazém o peixe podre e o bicho do feijão,
carregado
nos porões dos barcos de Moçâmedes
-
que depois era guardado em lugares ainda mais húmidos e putrefactos
para
distribuir em enormes filas ao desgraçado serviçal -
Não
senhor! Barriga de patrão era barriga fina, muito especial!
Barriga
de negro não engordava e andava sempre muito encolhida e magra!
E
a morrer em pé de tuberculose, malária e diarreias.
-
Oh quão elevada era a moralidade infantil! - Dos 70 mil habitantes
que
se contavam naquela na altura, hoje já são quase duzentos mil.
Claro
que também havia alguns negros (funcionários públicos)
que
não tinham tantas razões para se queixarem
-
Mas era uma pequeníssima minoria,
privada
igualmente de quaisquer direitos cívicos.
As
roças ocupavam a superfície das ilhas - E o administradores
que
representavam os patrões, com a sede e residentes em Lisboa,
eram
os senhores donos do cacau e do café - os donos absolutos do mato!
Estão
irreconhecíveis, as roças, é?!... Já não são como dantes?!..
Não
deveriam estar! Mas que estejam!.. -Lá haverá de chagar o dia
em
que é forçoso que a terra esteja bem cultivada!
-
Com os erros também se aprende
e
só não erra
quem
não faz nada
Entretanto,
que importa
tal
heresia, desleixo ou tal opção !
As
ilhas, pertencem aos Santomenses
e
às Gentes do Príncipe! Que importa que digam:
sejam
pertença dos “angolares, sejam dos “forros” ou dos “moncós”
O
país é soberano e livre do seu destino! – A terra jamais será regada
como
antigamente, pelo suor, sangue, lágrimas e os braços magros da
escravizada gente!
A
12 de Julho, é dia da Libertação Total!..
É
desfraldada a bandeira nacional!
Ao
toque do hino que agita e vibra muitos corações,
trazendo
à lembrança memórias antigas,
memórias
da escravidade, os nomes dos cantores,
artistas,
poetas e escritores!
Dos
heróis e mártires, dos libertadores da Pátria!
-
Episódios de luta e de morte!
-
"O Homem pode ser destruído mas não derrotado!
Há
festa na cidade! - Juntam-se foliões nas vilas,
nas
pequenas aldeias, junto às praias
ou no interior do mato!
Nos
terreiros, exibe-se o danço congo, desfila
o
socopé ou bilanguá e o tchiloli
ao compasso de flautas, de ferrinhos
e caixas,
junto
a tufos de bananeiras, de coretes,
cercados ou casas de madeira!
O
ambiente do sol equatorial é de fornalha, os verdes das árvores vibram
e
misturam-se às cores garridas dos trajes e vestuários!
Em
todos os rostos, há muita satisfação, transborda alegria e muita animação!-
E,
à noite - pela noite a fora - pela noite mais escura adentro,
algures
no mato, noutras ramagens mais densas e discretas, haverá ainda Puita
com
os tambores a rufar até ao frenesim dos corpos,
até
ao êxtase e à sensual loucura!...
-
Na verdade, só eu me sinto infeliz e choro lágrimas de saudade!...
Vivo
muito longe. Só a memória poderá agora ser a minha valia...
Não
estou ao pé da minha querida terra adotiva! -
-
Pois, como poderei eu alguma vez esquecer-me
dos
meus verdes doze anos ali vividos?!...
-
Ó ave do Paraíso! - lindo ossobó cantando a chamar a chuva na floresta!
Ó
nostalgia das Pérolas do Atlântico! - Formosas Ilhas do Golfo da Guiné!
Ó
Cascata de S. Nicolau, lá no alto da montanha verde, quase a raiar o Pico,
coroada
por nuvens escuras ou por densas névoas brancas, lá nos visos
da
Roça Monte Café!...
Ó
Angra Toldo, Lagoa Azul, Praia das Sete Ondas,
Praia
Lagarto e Praia Gambôa junto ao aeroporto!
Ó
Ilhéus das Cabras e das Rolas!
Ó
Praia do Pantufo, Água Abade e lavadeiras do Água Grande!
São
João dos Argolares, Trindade, Neves e Santana!
Ó
largada dos pescadores a toda a pressa nas suas frágeis canoas, a abandonar
a
palhota na orla copada e ramalhuda! - Mas depois não se sabe
ao
certo se um tornado os não levará e se já não poderão voltar ao
azul esmeralda
das
cristalinas águas das suas lindas praias, bordejadas por frondosos palmares
em
tons verdejantes, sacudidos por ventos e maresias em vibrações de fogo
POVO
GOSTA DE SE DIVERTIR, VEM PARA A RUA E FAZ A FESTA - MAS AGORA O QUE O
POVO QUER É INDEPENDÊNCIA ECONÓMICA E ESTABILIDADE GOVERNATIVA - -
.SÁ CUÁ CU PÔVÔ MÊSSÊ”.
Dia
de S. Avião e do Sum Padre sob o pálio à frente da procissão
da
festa S. Lourenço nas ermidas de Santo António no Príncipe
ou
de outros milagreiros santos e santas a sair da igreja da sé
e
ao redor da Baía Ana de Chaves na graciosa cidade!
Ó
eterna mas efémera vida!.... Ó minha juventude!...
Como
o tempo passa!....
-
Ó Alda da Graça Espírito Santo!...
Sim,
mais de que a grande Musa e a Mãe das ilhas!
Ó
grande inspiradora poetiza da beleza! - A grande irmã da dor
e
do amor
do
sentimento amargo
e
mui dolorido sofrimento colonial das Ilhas!...
Que
também já nos deixaste! ...Oh, como te recordamos!...
-
Ficaram os teus versos, é certo!... -
Ainda
foi ontem...mas já existe
uma
profunda saudade.
Ó
virtuoso pianista Viana da Mota!...
Oh,
e quantas vezes as teclas
do
teu piano não terão sido as radiosas pétalas
nas
doces e gloriosas manhãs e dos poentes rubros,
as
cores vivas e os múltiplos verdes e matizes
vertidas
da verbe e do espírito
do
seu talento mestre!...
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