"Ninguém
sabe onde estou! Talvez me julguem a caminho do Brasil mas eu estou perdido
neste vasto Golfo!...Perdido!...Entregue ao meu próprio destino.... Se a canoa
se virar, ninguém me pode valer...Ninguém!....Os tubarões de vez em quando
volteiam ao meu redor....(...)Espero que esta gravação um dia venha a ser
ouvida...Espero que sim...Espero!... Excerto do 2º Dia do meu diário, após um violento tornado
me ter feito perder a maior parte dos apetrechos e mantimentos.
Algures no Golfo da Guiné, 11 de Novembro de 1975
Diário de Bordo 1 - Já é manhã do 22º dia. Passei uma noite
normal. Estive muitas vezes acordado. Não dormi assim muito mas não choveu.
Estive a ouvir a rádio até altas horas, até quase de manhã, sobre a reportagem
da independência de Angola. Portanto, hoje é dia 11 em terra.
Amanheceu uma manhã bastante agradável: o
mar não está assim muito agitado e o céu não muito encoberto. Apenas umas
nuvens de onde em onde.
Eu disse, ontem, que, quando não se
possuía uma boa vela, um perfeito domínio da embarcação, era preferível
deixá-la à deriva. De facto, cheguei a essa conclusão, mas, atendendo a que
devo estar muito próximo de terra e porque as correntes já não devem ter grande
força, talvez valha a pena pôr à prova os modestos recursos que disponho.
Não podia
deixar de me referir à companhia dos meus fiéis tubarões...continuam!...Isso é
infalível!... A dar aqui as suas voltinhas, a fazer a sua escolta à canoa.
SENTIA-ME
ARREDADO DE TUDO - O MEU CALENDÁRIO NO MAR ERA DIFERENTE DOS DIAS QUE CORRIAM
EM TERRA
Diário de Bordo 2 - São mais ou menos oito horas da manhã do 22º dia, ou
seja dia 11 em terra. Realmente experimentei a vela. Andei cerca de uma hora e
tal, mas praticamente já não havia vento. Há uma calmaria muito grande. Tudo
leva a crer que haja trovoada lá para o fim da manhã ou princípio da tarde.
Oxalá que sim; uma trovoadazita até faz bem para acelerar o andamento da canoa,
se não nunca mais saio daqui!... O problema é este: só há vento quando há
trovoadas. O pior é que nessas circunstâncias é difícil navegar, porque há que
ter toda atenção na segurança da canoa. Portanto, neste momento, limito-me a
aguentar os balanços da canoa e o calor, que está já a fazer sentir-se, até que
venha um bocado de vento, que, com certeza, virá acompanhado de alguma trovoada,
que está já a formar-se ali para leste. Aguardemos.
Diário de Bordo 3 - Quanto
ao meu estado de saúde, doem-me bastante as costas, o pescoço, tenho inúmeras
borbulhas nos braços e nas pernas e a vista muita cansada de olhar para o
horizonte e também dos reflexos do sol. De resto ainda não sinto qualquer
perturbação: mas tenho aqui medicina, uns comprimidos e algumas vitaminas.
Enfim, espero que não surja qualquer complicação no meu estado de saúde.
Estou ouvindo rádio, que uma vezes constitui realmente
o meu passatempo favorito, outras, enfim, é o silêncio, a solidão única coisa
que me agrada.
AO FIM DA MANHÃ, CONFIRMAVAM-SE OS MEUS
RECEIOS - Surge a tempestade: o que eram sinais de velada ameaça, subitamente,
transformam-se num afrontoso pesadelo - O mar!... O mar!... Quando se enfurece,
o mar é sempre igual em qualquer parte.
Diário de Bordo 4- Neste momento estou a enfrentar violenta
tempestade! Tive que lançar a âncora flutuante. A canoa correu sérios
riscos!...Nunca estive em tantas dificuldades como agora!… mesmo assim o tempo
acalmou ligeiramente, mas ainda continua a tempestade a sentir-se e arrastar-me
agora de este para oeste!… Está a retardar novamente a minha viagem!... Devem
ser aí umas 11 horas da manhã!…Estava uma manhã estupenda e, de um momento para
o outro, apareceu esta tempestade que ameaça a todo o instante virar a minha
canoa.
Diário de Bordo 5 -O mau tempo continua a fazer sentir-se!...
Não sei qual o destino onde vou ter!… É difícil neste momento fazer qualquer
prognóstico… É um tornado dos maiores que tenho enfrentado...E o pior foi
encontrar a minha canoa na posição pior de segurança, porque, a canoa, tem uma
posição em que pode enfrentar mais ou menos as tempestades...Tive que lançar a
âncora e um bidão de plástico que força com que a canoa fique ligeiramente de
proa à vaga…De qualquer modo, a situação continua melindrosa!... Agora não
chove mas está a fazer uma grande ventania e o mar está muito cavado!... Estou
a ser arrastado para Sul, portanto, estou a ser retardado!... As perspetivas de
chegar a terra, estão a ser cada vez mais morosas. É realmente uma situação
verdadeiramente dramática!... A canoa esteve há pouco à beira de se virar!...
Só por muita sorte, só por milagre não se virou!...
NESTES MARES, EM QUE OS
DIAS SE REPARTEM POR IGUAL COM AS NOITES, TUDO É SÚBITO E INESPERADO: Uma simples nuvem no horizonte num
claro céu azul e limpo, tanto pode significar o princípio de uma tempestade,
como de uma podre calmaria - Agora, as alterações climáticas estão
profundamente alteradas, em todo o planeta; não sei se, naqueles mares, para
pior ou melhor - Mas há 37 anos, eu vivia ali um longo e tormentoso drama
Ao sabor dos ventos e das correntes e balanceado para todos os
quadrantes.
Diário de Bordo 6 - Sinceramente, o tornado já passou... Está
agora a notar-se a ressaca... Estou bastante afastado da Ilha de Fernando Pó,
muito afastado!...Estou convencido que não vou ter a oportunidade que já
tive...Neste momento, não sei qual a minha posição; estou bastante para Sul!...
Não sei se voltarei a ter a oportunidade que já tive!... Afinal o que me
interessa é terra e eu parece que estou a brincar com o meu destino!... Não
pode ser!... Estou francamente perturbado neste momento!... Vou ver se consigo
conservar o máximo de calma!... Mas já estou saturado... Estou cansado... Estou
com fome!… Estou longe de terra! Agora estou muito mais longe do que já estive!
Mais afastado de terra e fatigado. Não estou desiludido ou
desesperançado. Pelo contrário, sinto-me mais forte e mais habilitado. O mar já
não é aquele lençol líquido rebelde e ondulante, a sua fisionomia está
moribunda e não demorará a quedar-se numa ténue e plácida superfície.
Diário de Bordo 7 - Duas horas já são passadas... Não há
vento. O mar tem uma ligeira ondulação: está mais ou menos calmo... Depois de
um grande susto e de momentos de grande aflição... Porque, de facto, a trovoada
foi violenta e ameaçou a cada momento voltar-me a canoa, não tivesse eu lançado
a âncora flutuante, aliás, que é um sistema que eu improvisei (com um bidão de plástico, amarado a uma corda e à proa
da canoa, na primeira noite em que fui assolado pelo tornado, forçando-a a
ficar de proa à vaga e que me fez perder o remo e o leme e alijar da maior
parte dos alimentos, para evitar ir ao fundo) mas cheguei à conclusão que posso
muito bem dar a terra, à costa de África... Quer dizer...se não houver vento de
sul para norte, não preciso de pôr a vela, porque a corrente me arrasta... Se a
trovoada surgir de sul, ponho a vela e a canoa evolui para noroeste...portanto,
para a costa de África. Cheguei também à conclusão de que, realmente, numa
tempestade, a embarcação não pode ficar completamente à deriva; se ficar com a
vela, furta-se às vagas e não se vira tão facilmente. Claro que a vela tem de
ser pequena, porque, se for grande, pode-se voltar...Por exemplo, neste momento
tenho a vela e a canoa está a evoluir para a noroeste...E é pena não haver um
pouco mais de vento... Portanto, eu posso muito bem ir dar à costa de África,
tanto à Nigéria, como ainda a Fernando Pó. Para ir a Fernando Pó, basta que eu
ponha a vela, quando houver vento de sul para norte; não preciso de remo
sequer; basta prender a vela; prendo-a e então a canoa desliza para nordeste
Neste momento, já estou mais otimista...
Depois daqueles momentos de grande aflição, em que vi quase a canoa virada e
tive que me deitar para um dos lados, porque a canoa esteve mesmo... Havia
vagas grandes, alterosas!…Entretanto, lancei um plástico agarrado à âncora (a âncora flutuante), isso fez força, esticou a corda e
evitou que a canoa se virasse... A canoa, correu realmente o risco de se
virar!... Ora isso não pode acontecer de maneira alguma... Aliás, uma pessoa,
nestas condições, a cabeça tem que estar sempre a pensar!... Sempre a
improvisar... Não podemos cruzar os braços perante o perigo...Temos que ter
sempre ideias novas para fazer face a novas situações... Este é um predicado
muito importante... Pois nunca se pode uma pessoa dar por vencida!...Pode
chatear-se, saturar-se, enfim, desanimar um pouco, mas por vencida nunca se
deve dar!... Eu, apesar de tudo, apesar de já estarem 22 dias passados, aqui
nesta situação, verdadeiramente dramática, muito difícil, eu não me dou por
vencido!... Eu sei que hei-de ir dar a terra, custe o que custar!... A menos
que a canoa se parta, mas isso não há-de acontecer
Diário de Bordo - Um pormenor curioso: tem piada que
tive uma manhã bonita, uma manhã de sol!...Estava eu a ler um livro: “A Funda”
de Artur Portela Filho, quando comecei a ver nuvens escuras e a ouvir um
murmúrio, um ruído enorme: vi logo que era vento!... Pois, mal dei aqui uma
arrumadela à canoa, surgiu logo essa trovoada, e de que maneira!
O
céu por cima da minha cabeça está praticamente desnudado. Mas não tem aquele
tom luminoso de um puro azul, que me inspira alegria. Está encoberto por
uma fluidez baça, por uma película levemente brumosa e prateada. Porém, em toda
a periferia do horizonte, notam-se altos cúmulos. Estas nuvens têm aspetos
muito giros mas algo misteriosos e inquietantes que não me inspiram absoluta
tranquilidade. Porventura, reservam-me alguma surpresa desagradável....Vivo
numa verdadeira inconstância de altos e baixos...
Diário de Bordo 8 - São neste momento perto das quatro horas
da tarde, sensivelmente. Agora há uma paz!... Há um silêncio...O mar está
calmo, sereno!... Um verdadeiro contraste com o mar que há bocado estava..O céu
tenuemente enevoado, o sol mal se faz sentir....Sinto-me absolutamente
desprezado neste momento!
Sinceramente, estou saturado! Saturado,
porque não estou a navegar, a fazer da canoa aquilo que eu quero...Estou à
mercê do mar, dos ventos, das correntes, das trovoadas!... Sou para aqui aquilo
que os ventos e as correntes quiserem!...Estou farto de vislumbrar o horizonte,
em busca da desejada costa africana!... Vejo lá longe Fernando Pó...Se calhar
tenho de ir para lá, porque, senão às tantas, nem para lá nem para outro
lado!...
Sinto ao mesmo tempo uma réstia de esperança...
Há bocado vi que a minha canoa podia-se ter voltado de um momento para o
outro!... Correu sérios riscos!...Eu não perdi a esperança, apesar de
tudo...Tenho tido bastante sorte, também....
Não há ninguém...Nem um barco de pesca,
nem um barco!... Não vejo nada!… Nem aves, tão pouco... Nem peixes!... Apenas
os tubarões, azuis e os martelos, continuam em volta...Mais nada!... A água tem
uma cor escura!...Não sei que dizer mais... Esperar, até quando?!.. Esta
ânsia!... Quando eu posso pisar terra firme?!...Quando?!...
Entretanto,
tenho aqui o meu pequeno aparelho com o qual , quando tenho um bocadinho de
disposição, me vou entretendo a ouvir música (ligo o pequeno rádio, aliás, à Rádio Nacional
de São Tomé) - Neste momento está a dar música .Ouve-se
aqui perfeitamente apesar da distância. Hoje tem estado a transmitir muitos
trechos de música africana. Hoje é o dia da Independência de Angola. Um dia de
festa para muita gente e para mim um dia tão triste!
NEM
SEMPRE O NÁUFRAGO PODE DISPOR DA COMPANHIA DOS SONS DE UM PEQUENO RÁDIO –
ESCUTEI-OS, POR VEZES, ENQUANTO AS PILHAS, NÃO SE GASTARAM, DEFENDENDO DA VIOLÊNCIA DO MAR NO INTERIOR DO MEU BAÚ, UM VULGAR CAIXOTE DO LIXO
E foi
desse modo que pude acompanhar o memorável acontecimento da celebração da
Independência do Povo Angolano. Mas foram também os sons musicais africanos,
esses sons pungentes de sofrimento, de alegria, amor e nostalgia, que falam
sempre ao coração, e até os que escutava de Portugal, através da EN, que ora me
conduziam a estados de paz e de tranquilidade, ora me comoviam, fechando-me ainda mais no
meu silêncio ou rompendo-o, em lágrimas e com as mil dúvidas e interrogações
que então me assolam
Diário de Bordo 9 - Aqui...isolado há 22 dias!...
Meu Deus! O mar às vezes é tão belo! Tão maravilhoso!...Outras vezes...Há uma
solidão!... Eu não sei já o que sou, afinal! O que sou, afinal, eu?!...Sinto
fome!…A alimentação tenho-a racionado!.. A água, há bocado, devido a atenção
que tinha que manter, descuidei-me!.. Agora só tenho um bocadinho... Vou-me
remediar e terei que beber água do mar...Meu Deus!...Até quando?!...
O
tornado deixara-me muito cansado e enfraquecido. Na noite anterior mal pegara
no sono. À medida que se aproximava o fim da tarde - e ali, o sol ia pôr-se às
cinco e meia - sentia-me invadido por uma profunda tristeza. E, nesse dia,
chorei. Não direi que me sentisse derrotado mas estava muito triste. Muito
abatido...É verdade que, no dia anterior, chegara a ter no horizonte a Ilha de
Fernando Pó. Mas estava ainda longe, porque, se estivesse muito perto, não
conseguiria distinguir se era uma linha da costa ou uma ilha. Pois a ilha ainda
é grande. Mas deu para ver que era realmente Fernando Pó – a Ilha de
Bioko. Mas, a verdade seja dita, eu não desejava ir lá parar: receava que fosse
preso; o regime era intolerante. Infelizmente foi para onde acabei por
aportar.
Entretanto,
até lá, os tornados, haveriam de me balancear para os vários quadrantes do
horizonte, sem todavia me arrastarem para qualquer recanto da costa. - Num fim
de um dia de grande abatimento e solidão mas que, ao contrário de outros dias,
me deu para exteriorizar longamente os meus sentimentos para o pequeno
gravador. E até para verter as minhas lágrimas. Agora já com o
pequeno rádio desligado:
Diário de Bordo 10 - Mas, oh mar!... Foste tu que me
chamaste, afinal?!... Ou eu que sou louco?!.. O que foi afinal?!...Eu sinto
qualquer coisa em mim!!... Qualquer coisa em mim!!...Não sei!.. Oh Deus!...
Porque é que estou aqui, afinal?!...Mar!... Vastidão! Vastidão!... Só
vastidão!!... Silêncio!...Lonjura!!... Só mar!... Mar!... Mar!... Mais
nada!...Absolutamente mais nada!!!... Só mar!...Mar!...Eu e a minha canoa!...
Só mar!mar!...
Oh mar! Fala!...Fala!!... Diz-me se posso
chegar a terra!!....Quando?!... Hoje?!.. Amanhã?!...Nunca?!... Responde! Oh
mar!....Agora tudo calmo!... (já não se ouvem os sons do pequeno rádio, que
desliguei) Daqui a bocado, outra vez... Outra luta!.. Não me dá tréguas...Umas
vezes assim, sereno!.. Outras tempestuoso!...Mas que será isto?!...
Peregrinando pelos arredores da minha aldeia |
QUANDO A DESEJADA
COSTA DE ÁFRICA?
Ó meu Deus!
Ajudai-me! Ajudai-me!... Continuai alimentar a minha esperança!... Apenas uma
coisa eu sinto!... O meu peito, o meu coração está livre de tudo! Ninguém
me incomoda!...Ninguém me chateia, me pede satisfações!... Não tenho que dar
satisfações a ninguém!... É a única vantagem que tenho... De resto...é o
silêncio!... Silêncio!... Silêncio, apenas!... Silêncio!... (as lágrimas
toldam-me de novo meus olhos)
Oh meu Deus,
ajudai-me!... Ajudai-me!... Não tenho medo não!!... Mas não sei quando!... Esta
incerteza... Vastidão!....Vastidão!...Mais nada!... Oh pessoas!... Onde estais
para falar convosco?!...
Diário de Bordo 11 - Quando me
decidi regressar a São Tomé, depois de ter desprezado, inclusive, emprego no
barco que me levou de canoa até Ano Bom, eu pensava demorar dois dias!....
Finalmente encontro-me há 22 dias.. Se tivesse ido para o Brasil, eu sabia que
ia demorar dois meses, três meses. Eu estava mentalizado para isso. Eu iria,
com certeza, com o leme, com as velas; iria ter domínio na minha canoa...Quando
me decido pelo regresso a São Tomé, foi porque sabia que não podia fazer a
viagem: a canoa estava com rachas, desequilibrada. Por outro lado, não era
possível levá-la para as correntes. Portanto, estava mentalizado já para
regressar a São Tomé. Entretanto, passaram dois, três, quatro, cinco
dias!..Hoje?!....Amanhã?!... São 22 dias passados!... Umas vezes de
indescritível alegria, prazer!... Outros de angústia, de aflição! De Verdadeira
aflição!... Esperando a cada momento que uma onda me galgasse!
Eu vejo aqui em
volta peixes que nunca vi na minha vida !...Sinceramente, não sei as suas
intenções!...Sei que se caísse, cairia num domínio que não é o meu!...Estaria
irremediavelmente perdido!... Cá ando, não sei até quando...
Mas tenho
algumas culpas!...Eu poderia estar na Ilha de Fernando Pó, mas por teimosia
minha decidi ir para a costa de África...Entretanto, as dificuldades estão a
surgir... maiores do que eu previa!... E sabe-se lá se uma coisa ou outra eu
poderei encontrar....Mas...Meu Deus!...No fundo de mim, no íntimo, alimento uma
fé, uma esperança!... Até porque, se não tivesse a certeza de chegar a terra,
naturalmente que já teria ficado noutro sítio qualquer...Porque eu já enfrentei
tantas dificuldades, tantas tempestades!... Tantos maus momentos, que até agora
tenho-os vencidos a todos!...Oxalá continue a poder resistir-lhes
-TARDE MORNA VAI MORRENDO – O sol, qual disco
vermelho, ora a despontar ora a sumir-se por entre encastelamentos de nuvens
escuras, desce vagarosamente a oeste sobre a curvatura do horizonte, espalhando
tonalidades pálidas na leva ondulação, que mal se faz sentir. O ambiente que
agora se espelha, bastante mais calmo – Mas oh que contraste com o mar
revolto e encapelado do princípio da tarde! - É no entanto a imagem
de uma imensa desolação e desamparo, mas, ao mesmo tempo, de profunda
serenidade, inspiradora de deslumbradas e nostálgicas divagações. Onde as
palavras aspiram à plenitude, os sentimentos procuram harmonizar-se entre o
coração e a planura horizontal.
Diário de Bordo 12 - Fim de tarde do 22º dia. Que nome hei-de eu dar a este silêncio?!.... Um princípio de tarde agitado... E um
fim de tarde morno, triste!...Em que até o sol brilha menos... Em que até o sol
está menos luminoso, menos radiante!…O mar mais escuro... O céu mais
cinzento... O horizonte mais limitado, mais circunscrito...Não é tão vasto!...O
mar! uma vastidão!... Uma planura!... Apenas uma ligeira ténue brisa!...Umas
pequenas ondulações!... Como que rugas de um manto imenso... Cinzento!..
Profundo!... Muito profundo!...
Olho para a minha canoa, que vejo?!... Tudo desarrumado!.. Dois
plásticos: um com meio litro de água, outro vazio...Outro com algumas coisas
dentro... As minhas pequenas roupas, estão a secar sobre as bordas da canoa...A
canoa tombaleando...Ligeiramente... Levemente!... Sem fazer qualquer ruído,
como que a enquadrar-se neste silêncio!... Neste mesmo quadro para não
destoar...Quadro?!... Que nome eu daria este quadro?!... Não sei!...Agora,
neste momento, o sol começa a despontar entre nuvens escuras!... À minha
retaguarda sobressai um reflexo luminoso... de miríades!.. Um reflexo
brilhante!... Lá!...Um peixe deu um salto. Outro voou!...
Para lá do oeste, nuvens escuras!... Mais escuras!...E o sol a surgir no
meio delas como uma aparição!... Mas num brilho não tão radiante, não tão
radioso como por vezes, o é!...Há um rasto luminoso atrás de mim!... Que ele
provoca, como que a apontar-me, como que a dar-me uma réstia de fé, de
esperança!...Tudo o mais é cinzento!... Tudo o mais é abandono!...Apenas o
reflexo, este reflexo!...É doirado e prateado!.. Cheio de anéis de ouro!... A
única coisa que brilha é o sol!... Esta réstia de luz que se estende dele até
mim!...Tudo o resto é cinzento!... É abandono!... É
esquecimento!...Vastidão!... Lonjura!... Distância!...Numa circunferência
imensa!...Sem limites... Sem espaço!... Sem dimensão!....
SOB
A CALMA E O SILÊNCIO DO ENTARDECER… Momentos para ouvir alguns sons
africanos... Que se perdem na magia e tranquilidade da vasta planície oceânica.
Reina uma atmosfera serena e agradável.
Respira-se um ar puro e tépido. Sinto-me absolutamente calmo, nada me perturba.
Como se explica que, estando eu perdido no oceano e longe das vistas de
qualquer outra presença humana, consiga superar ou esquecer, tão rapidamente,
os momentos mais atribulados?... É um segredo que só o mar conhece ou quem,
vogando à sua superfície, sinta profundamente todas as suas convulsões ou
calmos espasmos. Não se consegue explicar por palavras. O meu espírito goza, de
facto, neste momento, de uma quase sublime serenidade. Os sons que ouço
fundem-se e refundem-se como ondas vibratórias, em sentimentos de verdadeira
magnificência, plenitude e beleza.
Diário de Bordo 13 -
Estou ouvindo música no meu pequeno aparelho... Música africana!.. Estou num
local africano... próximo de África, onde os sons, são sons apenas!... Não há
outros ruídos!...Estes sons chegam-me aos ouvidos, com pureza!... Com
agradabilidade!....Com expressão!... Sinto-os!...Não ouço mais sons, senão
apenas aqueles que são transmitidos pelo rádio...O som, aqui, é mais
agradável! É mais musical. É muito mais expressivo!...Sinto-o!... Vêm até
mim!...Vêm ao meu peito!... Diz-me qualquer coisa!... É melodia!... É qualquer
coisa que me diz!... Que me trás!... Que me alimenta!!... É alimentação... É,
como que, comida!...
ENTRETANTO A NOITE CAI – E, NAS REGIÕES EQUATORIAIS,
CAI QUASE ABRUPTAMENTE – TAL COMO A CORTINA QUE ENCERRA O FIM DE UM ATO NUMA
PEÇA DE TEATRO - NÃO HÁ CREPÚSCULO – A noite cai repentinamente e quase
nem se dá por isso. É pois a hora de prestar atenção a outros sons e de
perscrutar, atentamente, o que vai além do já quase ensombrado e escurecido
horizonte
Diário de Bordo 14 - A
Ilha de Fernando Pó está quase a confundir-se no horizonte...Está mais
distante, mais cinzenta!...Sinto agora um ruído!!... Virá ele agora perturbar o
meu silêncio?!... Agora tudo é mais sombrio, mais cinzento!… Nem o sol
brilha!...Escondeu-se!... As nuvens esconderam-no!...Virá ele perturbar o meu
silêncio?!... E depois disto o que virá?!... A noite, daqui a pouco, surge...
Silenciosa ou tormentosa?!... Sinto que a canoa vai vagueando pela acção das
correntes.... A correntes, que são invisíveis, mas que têm força!... Continuam
a impeli-la...Agora para Norte!...Há bocado veio de Norte para Sul, impelida
pela trovoada...Agora volta para Norte!...E assim ando, assim navego...
Daqui a pouco é noite....Depois é tudo
escuro!...Ficarei metido na minha canoa, deitado no fundo dela...De vez em
quando, vigilante!...Observando o horizonte, a ver se vejo...Ah!, porque eu
quero a costa de África!... Eu quero a misteriosa costa de África que custa a
mostrar-se!... É o que me interessa!...
HORA
DE BALANÇO DO DIA: Pouso o gravador para uma breve pausa. Tranquilamente
e a meditar nas palavras que registei. Que parecem ainda ressoar-me aos ouvidos
numa animadora e reconfortante esperança. Tanto mais que os ruídos que julgava
ter ouvido há pouco, afinal não terão passado de ecos dos sons do rádio,
como que a repercutirem na minha mente ou como, se porventura, ecoassem
dos confins do espaço. Depois é altura de fazer o balanço: do que
ainda me resta e do que o mar me levou, questionar as desilusões e de acalentar
novas esperanças. E de me lembrar da carta marítima oferecida pelo cantor
francês Antoine
Diário de Bordo 15
- Não trouxe carta nenhuma para me orientar. Aliás. tenho um esboço, uma cópia
de uma carta marítima de correntes e ventos, entre a África e o Brasil, na
faixa do equador e na qual estão apontadas as Ilhas de Ano Bom, São Tomé e
Príncipe e Fernando Pó (Bioko). Mas isso é uma coisa muito rudimentar, não é
muito pormenorizada. Uns traços apenas, algumas indicações muito ligeiras. Essa
cópia foi-me oferecida pelo cantor francês Antoine, quando passou por São Tomé,
no seu veleiro, com o qual anda a dar a volta ao mundo. Farto-me de olhar para
esse bocadinho de papel vegetal
e chego à conclusão de que realmente estou próximo. Muito perto!....Porque será
que custará então a descobrir?!... Essa é a interrogação que eu tenho.... Da
outra vez, quando fui para a Nigéria, ao fim de treze dias eu estava
lá!....Claro que tinha leme, podia navegar com a canoa conforme queria. Podia
conduzi-la pela orientação mais desejada. Agora não o tenho mas já tenho
utilizado a vela, e, com o
remo que improvisei, a canoa já tem andado bastante!... Já são 22 dias
passados... Claro que venho de mais longe!... Mas já era tempo de chegar à
costa de África.
Disponho de duas bússolas a bordo: uma que posso fixar na
canoa, a outra que trago permanentemente no pulso...Este é que é o meu relógio,
é o que me interessa... São os pontos que me interessam!... A direção norte
interessa-me...A nor-noroeste, também...Neste momento, as horas para mim não
contam... Conta apenas a direção que a canoa leva e mais nada!... E é para esta
bússola, que eu trago sempre no pulso, que eu olho permanentemente...De resto,
as horas para mim não contam!
MAIS UMA NOITE LONGA – SIM, DURANTE A
NOITE, AS HORAS CONTAM – E, POR VEZES, NÃO SÃO HORAS MAS ETERNIDADES!
Diário de Bordo 16 -Já é praticamente noite do
22º dia. Apenas se vê no horizonte uma língua de fogo a assinalar o
crepúsculo....O Céu apresenta-se completamente coberto de nuvens cinzentas, um
bocado espessas para sudoeste, o que indica que iremos ter chuva esta noite, de bom
lado... Quer dizer, de sul para norte...Se vier com esta direção, favorece. E
vou dar uma arrumação à canoa a fim de ver se passo mais uma noite...
"Porque será que meus olhos tanto necessitam
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