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domingo, 11 de maio de 2008

RELATO SÉCULO ILUSTRADO 1976 - 38 DIAS Á DERIVA NO GOLFO DA GUINÉ - NO MAR DOS TORNADOS E DOS TUBARÕES -














Vivi durante cerca de 13 anos em São Tomé e Príncipe, onde realizei várias aventuras marítimas, em pequenas pirogas primitivas, uma das quais a tentativa de travessia oceânica ao Brasil, que acabaria num naufrágio de 38 longos e penosos dias: sozinho, por entre tornados e calmarias, nos mares do imenso Golfo da Guiné


Foi difícil essa minha provação. Debilitado, fisicamente, acabei por dar à Ilha de Fernando Pó: nos últimos dias mal me podia manter de pé, muito fraco, já quase no limiar das minhas forças. Nunca me pude abrigar nem da chuva nem do sol. Nem das sucessivas investidas das vagas. Completamente exposto aos elementos. Ficava deitado no fundo desse tronco escavado. Nem sequer dispunha da mais elementar cabine de abrigo. O baú onde guardava algumas coisas (incluindo a máquina fotográfica) era um caixote do lixo de plástico, igual aos que ainda hoje se vêem à porta dos prédios nas cidades

Foram momentos de extrema aflição, que me pareceram verdadeiras eternidades, durante 38 longos e difíceis dias, enfrentando tempestades, sucessivas, incluindo ataques de tubarões. Ainda cheguei a apanhar alguns de pequeno porte, enquanto tive anzóis. Mas, até estes, mais tarde, me haveriam de faltar. Ao sabor das vagas, num simples madeiro escavado, é difícil imaginar pior situação.


Porém, a imagem que ainda hoje continua mais nítida na retina dos meus olhos, é o pavor daquela noite negra e tempestuosa, quando o tornado me surpreendeu. Mesmo assim, com a canoa completamente desgovernada, em pleno mar aberto e ameaçador, não cruzei os braços e nunca me dei por vencido. Peguei num dos mastros e coloquei-o de través para garantir algum equilíbrio. Um dos bidões foi amarrado a uma corda e largado para servir de âncora flutuante. No dia seguinte improvisei um remo com um dos barrotes do estrado da canoa e pedaços da cobertura, a fim de conseguir dar alguma orientação. Mas de pouco me haveria de valer, face à fúria dos constantes tornados. Como bóia de salvação, utilizei o resto do estrado e adaptei-lhe um pequeno colchão de ar - Frágil recurso para forças tão descomunais 
 



Não tivesse já realizado duas viagens anteriores, igualmente em pirogas, entre São Tomé e Príncipe (três dias) e de São Tomé à Nigéria, durante 13, certamente que não teria resistido a tamanhas provações, depois de ter perdido os remos, a maior parte dos meus apetrechos e ter ficado, praticamente, sem alimentos e água potável.

De facto, para sobreviver, tive que beber água do mar e das chuvas durante vários dias sucessivos e alimentar-me de alguns peixes que pude apanhar e de algumas aves, que, pousando, para repousar, sobre a frágil canoa, com imensa tristeza minha, fui forçado a sacrificar.

Acabei por ser arrastado pelas correntes até à Ilha de Bioko (ex-Fernando Pó ), já no limiar da minha resistência física, onde fui tomado por espião, algemado e preso numa cela de alta segurança, de reduzidíssimas dimensões, dispondo apenas de um balde para as necessidade e de um banco, sobre o comprido( que não tinha mais de metro e meio) para me deitar. A mando do então Presidente da Guiné Equatorial, Macias Nguema, um sanguinário e déspota ditador, que governava então o país sob duríssima mão de ferro . As cadeias abarrotavam de presos. As populações das cinco ilhas e do enclave, no continente, viviam sob um clima de verdadeira opressão e terror: muitos, para escaparem aos genocídio, refugiavam-se na selva ou fugiam para os países vizinhos.
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A única coisa que me impressionou foram as plantações de cacau, cujos cacaueiros estavam bem tratados e carregados de frutos - mas à custa de mão-de-obra escrava. Pois, todas as Fincas (denominação dada às roças) haviam sido nacionalizadas e só havia um único patrão e mau. Quando entrei na cidade, apercebi-me de um ambiente triste e pobre. Uma das montras, que ostentava algumas catanas e outras ferramentas agrícolas, era decorada com palha. Quem entrasse na cadeia central, dificilmente de lá sairia vivo - E era para onde me transportavam, sob a escolta de polícias armados de metralhadora, após haver passado a primeira noite num subterrâneo escuríssimo de uma esquadra local, para onde fui empurrado, às tantas da noite, na sequência de um penoso interrogatório, em que nem sequer me fora permitido que me sentasse - E eu mal me podia pôr de pé de tão fraco me sentia , pois já não comia e bebia águia potável, há muitos dias. . Tendo sido atirado ostensivamente para um monte de corpos de crianças e adultos, que na altura já dormiam e que só os pude reconhecer quando, pela manhã, abriram as portas desse tenebroso calabouço.

De tão espantados ficaram os meus companheiros, com a minha presença - mas, sobretudo, impressionados pelo estado de fraqueza em que me encontrava - , que houve logo quem me oferecesse uma tigela de papas de mandioca e também quem se preocupasse com a minha situação, perguntando-me: “Que fazes aqui amigo?!… És político?!…Toma cuidado!! Se “hablas” política, matam-te! Não te safas!! Te cortam o pescoço!”

Na verdade, o ambiente, quer da esquadra, para onde fora detido, quer para a cadeia onde me transferiam, era de morte, de esmagadora opressão e terror. A todas as horas soavam os gritos mais lancinantes de torturas e de execuções sumárias a sangue frio. E raramente se usavam munições, porque, estas, dizia-se, ficavam caras ao Estado, e este, sendo governado por um tirano, o que pretendia era oprimir e explorar o povo e encher os cofres das suas contas em bancos estrangeiros
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A alimentação nas cadeias ficava a cargo das famílias, pelo que, nos primeiros dias, quem me forneceu alguns alimentos foram, justamente, os presos, que, na escassa hora de recreio, subiam pelo muro e, agarrados às grades da janela que dava para o átrio, me davam palavras de conforto e dividiam comigo alguma da sua parca comida, quase sempre baseada na mesma dieta. Mas que me custava a ingerir, pese a imensa franqueza que me dominava, já que o meu estômago, há muito era um saco vazio e se desabituara de refeições.

Uns dias depois, para minha agradável surpresa, recebi a visita de um santomense, pessoa muito amável e generosa, que trazia consigo uma cestinha de frutos e alimentos, tendo passado a visitar-me todos os dias, enquanto ali estive preso, trazendo pela mão a mesma cesta e a tão preciosa solidariedade. Era o barbeiro pessoal do Presidente Macias - e, mal lhe haviam franqueado a porta de ferro da minha cela - , apresentara-se logo como sendo natural de São Tomé, dizendo-me que vinha visitar-me por ordem expressa de “Sua Excelência o Senhor Presidente da República, que o encarregara de saber quem eu era, se eu vinha mesmo de São Tomé e inteirar-se, pormenorizadamente, das razões pelas quais eu desembarcara, ilegalmente, numa canoa, para actividades subversivas, contra o Estado soberano da Guiné Equatorial”. - pois esta era a “ suspeita que “Sua Excelência” tinha a meu respeito Eu contei-lhe o que me tinha acontecido, tendo ele me referido que acreditava em mim, pois até já tinha ouvido a notícia da minha partida na Rádio Nacional de São Tomé e Príncipe.. Para provar que eu falava a verdade, e o levar a acreditar nas minhas pacificas intenções, pedi-lhe que lhe mostrasse a mensagem que me fora confiada em São Tomé, destinada a saudar o povo irmão brasileiro, quando aportasse nalgum porto da sua costa marítima.

Achou que era uma boa ideia, levando-a mensagem consigo, tendo me sido devolvida, no último dia, pelo chefe da cadeia. Mesmo assim “Sua Excelência” ficou muito desconfiada e, não estando totalmente confiante nos relatos e no referido documento, só duas semanas depois é que ordenou a minha soltura. Mas não sem antes de me mandar ainda apresentar ao Alto Comissário da Polícia para mais um demorado e exaustivo interrogatório. Após o que este me levou à presença do então Alto Comandante da Polícia e das Forças Armadas, o General Teodoro Obiang Nguema, sobrinho do ditador - Actual Presidente da Guiné Equatorial, cargo que passou a exercer, três anos depois, ao depor o seu tio através de um sangrento golpe de Estado, acusando-o de traição e genocídio e ordenando a sua execução.

Devia ter, nessa altura, quase trinta anos, era ainda jovem . Recebeu-me no seu gabinete, com ar muito espantado por me ter metido num “canuco:” Mandou-me então sentar à frente da sua secretária, após o que me perguntou, num fluente castelhano (pois o território insular e continental foi colónia espanhola): - “Então que se passa contigo?! “Que vieste aqui a fazer?! - Porque te meteste num canuco?! És louco ou vieste a mando de quem?!!!“ - Bom, lá tive que lhe explicar as razões do meu infortúnio; lá tive que voltar a repetir os motivos da minha aventura, afirmando-lhe que aportara a uma praia, arrastado pelas correntes e as tempestades, como náufrago, depois de ter sido largado na Ilha de Pagalu (ex-Ano Bom), a bordo de um pesqueiro. Desfeitas as dúvidas, mostrou-se muito amável e ouviu atentamente o meu relato, recostado numa cadeira de vime, com ar descontraído e as pernas cruzadas sobre uma pequena mesa que ali havia, também de vime, que era baixa. Mostrando até espanto e admiração pela minha coragem.

Acreditou no meu relato e deu então ordens ao comissário-chefe para me conduzir de novo ao seu gabinete e averbar, no meu passaporte, o visto de que o “Ele titular de este passaporte queda autorizado para salir de Guinea Ecuatorial dentro del plazo de Quize Dias, a partir de la fecha Y por cualquier frontera” - No entanto, da mesma opinião já não partilhou, o Presidente Macias, que, horas depois ordenava que tinha que abandonar o país, nesse mesmo dia, de qualquer maneira: ou na mesma canoa( que aliás ficara toda partida, mal encostara na areia) ou no avião da Ibéria, que, nessa dia, escalava o aeroporto de Malabo.

Perante as ordens de Sua Excelência, e até de alguma surpresa do Comissário-Chefe da Polícia, que, sabendo que eu era técnico agrícola, já me havia convidado a ficar na Ilha, dizendo que gostava muito dos portugueses, mas que detestava os colonialistas espanhóis, que os haviam oprimido durante a colonização. Mas a verdade é que a vida, ali, não estava bem, nem para os espanhóis, nem para os portugueses, nem para ninguém, senão para a família Nguema.

Transportou-me então num jipe da polícia para o aeroporto, que me levou ao comandante do avião, ordenando-lhe que eu tinha que embarcar naquele voo. “Mas quem paga a viagem?!” - questiona, incrédulo, o comandante. Responde o Comossário que isso não lhe dizia respeito. Perante o impasse gerado, foi-me então perguntado se lhe podia indicar alguma pessoa em Portugal que se pudesse responsabilizar pelo pagamento do bilhete da viagem. E por fim lá se encontrou uma solução. algo curiosa

Na verdade, só fiquei tranquilo, quando entrei no avião. Porém, ao sobrevoar Malabo, não era sem motivo justificado que via do alto do céu, os dois panoramas que, durante muitos dias, me haviam fortemente atormentado: o mar, que então me parecia bastante sereno, parecendo um imenso espelho e aquela vegetação luxuriante da Ilha, que, apesar de encantadora, nem por isso me tranquilizara, uma só noite, um só dia.

Saíra de lá no dia 4 de Dezembro de 1975, com destino ao aeroporto de Barajas, em Madrid. No bolso, levava apenas umas magras 50 pesetas que me haviam sido oferecidas por um professor espanhol, no momento do meu embarque: “Pegue lá para quando chegar à minha cidade!” E era precisamente com esse dinheiro que eu contava pagar ao taxista, a quem pedi que me transportasse para o centro da capital - Não fazia a menor ideia que ficava ainda longe, porém, o homem. ao ver-me com aquele aspecto, tão queimado e magro, sensibilizando-se com a minha situação, acabou por me conduzir gratuitamente, tendo-me levado a um albergue de uma instituição religiosa, que me prestou o seu generoso acolhimento, podendo mesmo lá ficar por vários dias, se quisesse. E até lá encontrei um bom amigo, que me deu também uns trocos, proveniente de uma dádiva de sangue e que me garantia onde ir levantar alguma roupa oferecida.

Três dias depois, optei no entanto por me apresentar na Embaixada de Portugal, convencido de que tinha ali a porta aberta para facilmente poder regressar ao meu pais - Mas não foi bem esse o acolhimento que encontrei: pelos vistos, deixava de ser o perigoso espião, que acostara à Guiné Equatorial, acossado de participar nalguma eventual conspiração para derrubar o regime, e passar a ser considerado o desprezível marginal, ou o perigoso delinquente. Pois foi assim que fui recebido e que, a muito custo, lá me pagaram o bilhete de comboio até Lisboa. Nem mais uns trocos sequer para uma “carcaça“. Por isso, ainda estou a lembrar-me daquela senhora que, ao ver-me a olhar, fixamente, a montra de uma pastelaria, junto à estação de comboio ( onde me aproximei, enquanto aguardava a hora da partida ), sim, ao ver-me com ar de fome e talvez com os mesmos olhos da criança que olha para uma guloseima(pois ainda não me tinha recomposto das duras privações no alto mar) me perguntava, com uma expressão de visível bondade e compaixão: “Usted quiere uns bolitos?!… E nem sequer esperou pela minha resposta: foi logo comprá-los e carinhosamente mos ofereceu. Gestos que não esquecem e que me fazem acreditar que, a solidariedade e amor ao próximo não são palavras vãs e que há sempre quem esteja disponível a sacrificar-se pelos outros ou por um ideal, pondo de lado os seus próprios interesses pessoais, em prol dos mais desfavorecidos, do bem comum ou da humanidade.

Já lá vão uns anos volvidos que regressei à capital do meu país - Depois de ali partir, uns doze anos antes, do Cais de Alcântara, para um estágio numa roça de São Tomé - Ilha, onde, bem cedo, seria confrontado com muitas decepções e com uma realidade colonial que estava longe de imaginar. Mas seria, justamente, tudo isso, as vicissitudes ali vividas, que acabariam por me apaixonar ainda mais pela beleza e pela boa gente daquelas ilhas, a entregar-me, de alma e coração, na peugada de um abnegado contributo para o esclarecimento da suas origens, da sua verdadeira história e identidade: que o obscurantismo, o olhar viesgo e opressivo do domínio colonial clivou e distorceu, nunca se interessando por aprofundar outras hipóteses, adoptando sempre a visão que mais se ajustava aos seus próprios interesses e mitos.


Por isso mesmo, tendo reflectido que algo não batia certo, que algo havia de errado no que descreviam os compêndios escolares, não hesitei em lançar-me mar fora, usando as mais primitivas embarcações que há memória, aquelas que eu imaginava que teriam sido usadas pelos primeiros povos que aportaram nas ilhas, despertados pelo voo migratório da aves, atraídos pelo natural fascínio que ultrapassa distâncias e barreiras - Qual poder magnético invisível ao olhar, mas perceptível ao instinto e a outros sentidos, bastante mais apurados, quando coabitam próximos e em estreita comunhão com a Mãe-natureza.

Por três vezes, largando por aquele vasto oceano a fora ( duas delas clandestinamente), desprovido de quaisquer meios de comunicação sofisticados, sem qualquer possibilidade de contacto com o mundo exterior, expondo-me a todos os riscos, a todas as contingências e adversidades, movido pela firme vontade de demonstrar que as teses que os manuais coloniais defendiam, não serviam, nem o passado histórico do seu povo, nem o mérito e a coragem dos seus heróis, dos seus bravos marinheiros, e muito menos dos povos colonizados. Sim, fi-lo, não por menos amor ao meu país, mas por amor à verdade histórica! Nunca recebi prémios; nunca ninguém publicamente distinguiu os meus actos, nem tão pouco espero que isso, alguma vez, venha a acontecer - Digo-o, sem falsa modéstia e com plena sinceridade, tal como o poderei testemunhar através dos documentos e das várias imagens que aqui apresento. Que mesmo assim estão longe de darem uma pálida ideia dos muitos riscos a que me expus, das muitas lutas que travei com a fúria dos elementos, e da incompreensão e repressão de que fui alvo, em todas as terras onde aportei: como já referi, quer na Nigéria, quer na Guiné Equatorial, e sobretudo pela PIDE, após a minha travessia ao Príncipe, quando regressei a São Tomé de avião e dois agentes, que me esperavam logo à saída do avião, me agrediram a soco e me atiraram para um jipe, conduzindo-me às suas instalações, onde fui submetido a um exaustivo interrogatório - Pois pensavam que eu ia fugir para o Gabão e me ia alistar ao MLST - Uma vez que, na Roça, eu estava muito mal visto por “dar confiança e ser amigo dos pretos” e não os “tratar abaixo de cão“, que era como o administrador da Roça Uba Budo, queria que os tratasse.

Como me recusei a acatar as suas instruções colonialistas, o patrão da Roça, mandou-me de castigo, com mais um trabalhador cabo-verdiano, para a zona da cobra preta, ao sul da Ilha - na Ribeira Peixe, junto ao Caué - onde cai uma quantidade pluviométrica enorme, numa área de cacauzeiros abandonados, que já não era há muito aproveitada, coberta por um alto capim e infestada pela terrível cobra venenosa. O serviçal (como então eram classificados os contratados) marcava-os com água de cal, que trazia numa caldeira pela mão e eu apontava-os. Não havia dia algum em que não tivéssemos que fazer uso do machim para evitarmos a mordedura fatal da dita serpente. Foi a partir dessa altura que eu me comecei a interessar pela vida dos pescadores santomenses, a aprender a navegar nas suas pirogas e questionar a origem dos seus ancestrais. Por conseguinte, apesar das muitíssimas vicissitude suportadas, não estou arrependido das posições que tomei e das aventuras em que me arrisquei.

Mas o tempo passa depressa e já lá vão uns bons anos após a minha chegada à estação de Santa Apolónia, em Lisboa, apenas com a roupa que trazia no corpo. - Isto, já depois, de uns meses antes, e ainda naquela mesmo ano de 1975, ter sido repatriado da Nigéria - felizmente, só de avião e sem ter que sair dos aeroportos - Viagem paga por aquele país, pese o facto de também me terem detido pela mesma desconfiança: suspeita de envolvimento em espionagem ou actividades subversivas. .

E, desde então aqui me fixei, nesta cidade das sete colinas, contra o que seria porém o meu desejo: que era o de voltar a tentar a travessia. Pois estou crente de que, se tivesse sido largado na corrente equatorial, com ou sem tripulante a bordo, que a canoa, inevitavelmente, seria arrastada para a outra margem do oceano. Mas a vida e os objectiveis de cada um têm os seus imponderáveis, os seus acasos e a suas contrariedades ou voltas. Por isso, com muita pena minha, nunca mais lá voltei - mas jamais ficarei tranquilo, enquanto ali não regressar. Sou jornalista e aqui tenho praticamente residido, salvo as habituais fugas que reservo ao meio onde nasci. Mas sempre com o meu coração, repartido entre a minha aldeia e aquelas lindas Ilhas de São Tomé e Príncipe.

As aventuras do mar em que envolvi, essas, é certo, poderiam ter-me custado a vida - Pois estive mais próximo do outro lado de lá, do que aquele em que agora estou. E creio que só não resvalei de todo para o precipício, que tive sempre à minha beira e por baixo dos pés ( e até nele chegasse a mergulhar, voltando-me da frágil piroga ao Príncipe, quando, às tantas da noite, o sono me surpreendeu ) sim, e não fiquei lá porque Deus - essa força omnipresente, que protege especialmente os espíritos audazes e escuta o seu apelo -, assim o não quis.

Mas é precisamente a consciência de tudo isso, de que o homem não está só no Universo, de que ele tem um destino e uma missão a cumprir, e ainda das muitas provações a que voluntariamente me submeti, e a que sempre resisti, das muitas lembranças que guardo, que hoje sou levado a acreditar ter valido a pena. A sentir um alento espiritual muito forte, que me tranquiliza e me faz estar de bem comigo e a encontrar uma melhor compreensão da existência, do sentido da vida.










CREIO QUE NÃO HAVERÁ IMAGEM MAIS TRISTE E DESOLADORA QUE AQUELA QUE O NÁUFRAGO DESCOBRE QUANDO, EM PLENO MAR TURVADO, NOITE SINISTRA E CERRADA, SENTE QUE NADA MAIS LHE RESTA SENÃO ENTREGAR-SE, COM INFINITA PACIÊNCIA, AOS DITAMES DO SEU DESTINO, APELAR À SUA RESISTÊNCIA E CONFIAR-SE À VONTADE DE DEUS

Sei que bastaria uma vaga, uma única vaga mais furtiva!.... E eu estava sempre, sempre, à mercê dessa vaga!... Num abrir e fechar de olhos desapareceria no seu agitado torvelinho!... Que imagem então a minha, meu Deus!... E como todas as minhas coisas andavam ao deus dará sobre o fundo daquele estreito tronco escavado! Como foi possível ter resistido durante tantos dias?!...E então quando os relâmpagos incendiavam o mar e tudo era ameaça e afronta em meu redor, o próprio ar, saturado e húmido que respirava e até mesmo as negras nuvens que se adensavam e escureciam os céus, pareciam afundar-me na imensa amálgama!...

Já lá vão uns bons anos volvidos. No entanto, todos aqueles longos dias e noites vividas, estão ainda bem presentes na minha memória, e penso que dificilmente alguma vez o esquecerei.

Debilitado, fisicamente, acabei por dar à Ilha de Fernando Pó: nos últimos dias mal me podia manter de pé, muito fraco, já quase no limiar das minhas forças. Nunca me pude abrigar nem da chuva nem do sol. Nem das sucessivas investidas das vagas. Completamente exposto aos elementos. Ficava deitado no fundo desse frágil madeiro. Nem sequer dispunha da mais elementar cabine de abrigo. O baú onde guardava algumas coisas (incluindo a máquina fotográfica) era um caixote do lixo de plástico, igual aos que ainda hoje se vêem à porta dos prédios nas cidades
Foram momentos de extrema aflição, que me pareceram verdadeiras eternidades, durante 38 longos e difíceis dias, enfrentando tempestades, sucessivas, incluindo ataques de tubarões. Ainda cheguei a apanhar alguns de pequeno porte, enquanto tive anzóis. Mas, até estes, mais tarde, me haveriam de faltar. Ao sabor das vagas, sozinho, em pleno mar equatorial, munido apenas de uma simples bússola, é difícil imaginar pior situação.

Os dias sucediam-se às noites, sem água potável e sem alimentos, por entre tornados ou calmarias, e, posto perante esse difícil drama, nada mais me restava senão lutar pela minha sobrevivência. Numa dessas noites longas de angústia e de incerteza, quis o destino que fosse então surpreendido por um eclipse lunar total.

Lembro-me que foi no mês e no ano da independência de Angola, 11 de Novembro - ainda tinha pilhas no meu radiozinho e deu para ouvir esse ambiente de festa. Eu estava, porém, distante e bem divorciado de tudo isso. No entanto, como andava à deriva, de modo algum era das imagens mais belas que se me deparavam. O próprio mar, que pouco antes cintilava em miríades de brilhos com a luz do luar, pouco a pouco, foi-se tornando num vasto manto de luto, desolador cenário que então ainda mais acentuou a sensação do meu abandono e a minha tristeza. Subitamente, de todos os confins começou como que a pairar um silêncio pesado e fúnebre. Nem uma voz, nem vivalma! Escuridão! Só escuridão!... Não há palavras... Naquela altura, só as longínquas estrelas poderiam testemunhar a minha presença ou ter piedade de mim... Porém, estavam tão longe!...Tão longe!!... Que, nesses eternos momentos que se seguiram, até me pareceu que o próprio Deus se havia esquecido de mim... Embora no fundo do meu coração, a esperança e a sua luz nunca deixassem de brilhar bem dentro do meu peito... E, de facto, revendo-me agora à distância dos anos, ali perdido nessa imensa planície de trevas, de todo o mundo abandonado e esquecido, não posso deixar de pensar que é na adversidade que melhor poderemos compreender a nossa extrema fragilidade mas também a possibilidade de nos superarmos, nos engrandecermos, revelarmos a nós próprios muitas das faculdades que ignorávamos ou que nem sequer imaginávamos, sim, e ao mesmo tempo, nos darmos conta da Verdadeira Grandeza e Dimensão de Deus
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UM MAPA DE SONHOS Á FLOR DO MAR
 
Estas fotografias não são apenas o registo mecânico de uma aventura no meio do mar.
Elas são pontos de relevo num mapa de sonhos.

E – também – roteiro dum teimoso repúdio ao conformismo e à indiferença.
Tudo isto sem deixar de ser – em paralelo – um testemunho das situações limite
em que um homem defronta os desafios da Natureza com as hesitações da sua condição
aliadas apenas ao ânimo da sua vontade.

Imagens recuperadas dum naufrágio subitamente colocado ao contrário pela rápida transformação duma derrota em vitória, esta exposição é o lugar mágico do reencontro com a serenidade dos sonhos perfilados.Ou seja – suspensos no quotidiano mas prontos a soltarem-se ao encontro de todas as travessias...
José do Carmo Francisco
22.06.94.

2 comentários :

João Sousa disse...

Sr. Jorge,
Acabei agora de ler, confesso que não de forma completa, seu artigo. Ele é extenso, espero lê-lo com mais atenção nos próximos dias.
Não sei bem que dizer. Ler algo escrito por si é uma vertigem. É difícil parar. Admiro a sua coragem embora, confesso, nunca tentaria fazer algo como isto que acabei de ler. Mas é fascinante esta dúvida que o assaltou: "será que foi assim como nos contaram?..." Portanto, a busca pela verdade, o que realmente aconteceu, essas são coisas que o têm movido ao longo da vida não é?
Muitas felicidades. Espero continuar a ler coisas a seu respeito. Que Deus o ajude.
João Sousa

canoasdomar disse...

Caro João de Sousa - Obrigado por palavras tão amigas e calorosas. Sim, mesmo hoje me admiro como foi possível realizar tais aventuras - Mas quis Deus que assim acontecesse - Costuma dizer-se que a sorte protege os audazes, julgo ter sido esse o caso - Deus esteve comigo e com a minha coragem - Agora vale a pena viajar na memória e recordar tão aventurosos tempos. Um abraço amigo