Jorge Trabulo Marques - Jornalista
Conheci
este homem há 37 anos - No dia 3 de Dezembro de 1975. Chama-se Teodoro
Obiang Nguema Mbasogo - É o Presidente da Guiné Equatorial.
Salvou-me de ser condenado pelo seu tio, o auto-proclamado Presidente Vitalício Francisco Macias
Nguema, que derrubaria em 3 de Agosto de 1979 - Depois de 38 longos dias à
deriva numa piroga, acostei numa praia deserta, orlada por vegetação
densa e luxuriante, de Bococo. Ilha de Bioko. Durante algumas
horas, ainda improvisei nas margens uma cabana para ali me deixar a repousar
por alguns dias; pois não me faltavam cocos e raízes de mandioca.
Mal me arrastava de
fraqueza mas sentia-me como se estivesse a viver as aventuras de um inesperado Robinson Crusoe - E, mesmo ainda hoje, não sei se
sentiria vontade de sair dali tão cedo. Porém, quando me apercebi de que havia
um carreiro, muito batido, que ali desembocava e que poderia ser sinal de que a
praia não era totalmente selvagem (de resto, pouco depois do nascer do sol e antes
de a abordar, já ali tinha visto, na pequena língua do negro areal, um homem à
cata de ovos de tartaruga) pelo que não tive outro remédio senão seguir aquele
mesmo careiro, que me levaria a uma finca - à sede de uma plantação de
cacau. Tal facto, ia-me custando a vida.
Tomado por espião e depois de
ter passado a primeira noite nos calabouços de uma esquadra, fui transferido
algemado para a cadeia central, o famigerado cárcere, no qual foram encarcerados, torturadas até à morte centenas de pessoas - Da minha miserável e nauseabunda cela, pessoalmente pude testemunhar os gritos lancinantes de sofrimento e de pavor de algumas dessas vitimas, ao serem espancadas pouco antes de serem enforcadas, o que acontecia todos os dias a partir de certas horas da noite.
Depois de ter sido encarcerado numa
das mais tenebrosas prisões de África, por ordens expressas do seu tio, o então jovem Obiang,
confessava-se extremamente intrigado com o insólito desembarque
clandestino de um português numa canoa e quis inquirir-me pessoalmente.
A referida
cadeia fora mandada construir no tempo colonial espanhol. Chamavam-lhe, naquela altura, a
Cadeia Central e situava-se junto à Praia Negra, da cidade de Malabo,
capital da Guiné Equatorial –, Tratava-se, efetivamente, da
famigerada Black Bech – "Dizer Black Beach é dizer a morte. Quando um prisioneiro chega a essa prisão, sua família começa a preparar o caixão. -"To say Black Beach is to say death. When a prisoner arrives at this jail, his family begins to prepare the coffin."
.Uns dias depois de ali ter sido encarcerado, fui conduzido ao edifício do
Comando da Polícia e das Forças Armadas (aliás, contiguo à cadeia) onde se
encontrava, Teodoro Obiang, sendo ele, então, o supremo comandante, que me mandou chamar ao seu gabinete -
Foi o primeiro gesto de cortesia que eu encontrei a nível das autoridades
policiais - Estou ainda hoje plenamente persuadido de que foi ele que me salvou de ser
condenado.
"Durante o chamado "reinado do terror", o ditador macias Francisco Macías Nguema liderou quase um genocídio (...) Nos últimos anos de seu governo, a Guiné Equatorial, chegou mesmo a ser conhecida como a "Auschwitz da África" - In Malabo
"Guineans believed their first president had supernatural powers. Using
the knowledge of witchcraft he inherited from his sorcerer father,
President Francisco Macias Nguema built a huge collection of human
skulls at his homestead to beat his subjects to submission" In FRANCISCO MACIAS NGUEMA. The mad man from Equatorial
A MENSAGEM SALVADORA DO MLSTP - com data de 27 de Setembro de 1975 - 67
dias depois haveria de me poupar a vida
A canoa foi carregada a bordo do pesqueiro
Hornet, em 15 de Outubro de 1975 ao largo da Baía Ana de Chaves. No dia 18, de
manhã, o pesqueiro fundeou ao largo da Ilha de Ano Bom- Próximo
daquela que ainda hoje é considerada. A
ILHA ESQUECIDA NO MEIO DO ATLÂNTICO Ao
pôr do sol, inesperadamente, a canoa foi arreada por ordem do comandante,
alegando que a canoa estorvava a pesca e que já não podia deixar-me na zona da
grande corrente equatorial, que me arrastaria a oeste ao longo do oceano. Penso
que, àquela hora, com a noite prestes a cair, o fez mais para me atemorizar e
me convencer a desistir.
Mas enganava-se:
eu já havia enfrentado vários tornados, noites escuras e tempestuosas e,
na minha mente, havia uma ideia longamente amadurecida e bem determinada: - Ir
novamente ao encontro da imensidade atlântica! Ir ainda mais longe, custasse o
que custasse!... Ninguém podia demover-me desse propósito e do significado que
lhe pretendia atribuir. - Estando o mar calmo, não havendo vento, dada a
proximidade da Ilha, havia pois o risco de poder ser assaltado...
Praticamente, não consegui sair do mesmo sítio e sempre com os olhos na pequena
ilha que tinha ali bem próximo, receoso que alguma canoa saísse de lá.
Até porque as últimas palavras que ouvira do alto do convés, foram bem
esclarecedoras: "escapa-te daqui o mais depressa que puderes, senão
te roubam!!"... Já com as primeiras sombras do curto crepúsculo e
após um giro em torno do horizonte, o referido barco aproximou-se de mim
e voltou a carregar-me a piroga, prometendo largar-me no dia seguinte. Às
tantas da noite, já com o pesqueiro de novo fundeado ao largo e envolvido por
enorme agitação, varrido de proa à popa, pela já habitual
tempestade noturna da época das chuvas, que o assolara já nas anteriores
noites, sim, depois de muitos dos tripulantes virem junto de mim, tentando
persuadir-me a ficar a bordo com eles ("Jorge! Não vês, como
está o mar?!... Vais morrer!!.. Fica connosco!.." ) o imediato veio falar comigo para me
apresentar na cabine do Comandante: quis dissuadir-me a desistir da
viagem, convidando-me a trabalhar a bordo. Não tendo aceite a sua
proposta, obrigou-me assinar um termo de responsabilidade.
Na manhã seguinte, a "Yon
Gato", é finalmente arreada ao largo de Annobón, com rumo de retorno a São
Tomé - Mal o sol equatorial raiara, como que emergindo do fundo do
vasto manto azul circular: à voz de "canoa
ao mar"! Lá fui sozinho à minha vida, rumo ao Norte, munido apenas
de uma simples bússola! Desiludido por não ter sido largado um pouco mais a sul
e a oeste, lá parti, de regresso a São Tomé, pelo desconhecido oceano a fora, a
pensar em refazer nova viagem e com o apoio marítimo de alguém que não me
traísse! - . Após um dia de navegação normal, com vento pela popa e à vela -
mas sempre perseguido por duas canoas para me roubarem os alimentos, dada
a extrema penúria vivida naquela ilha - surge o inevitável temporal: um
violento tornado, ao princípio da noite, vindo do sudeste, uma súbita
rajada de vento seguida por uma enorme vaga, apanha-me desprevenido e ainda com
a nova casca de noz, mal acabada de experimentar, solta-me o leme
(que lhe adaptei - e só por milagre também eu não fui atirado, com a cana do
leme, para o seio daquela escurissima confusão, que só a curtos espaços os
relâmpagos iluminavam) deixa-me a piroga atravessada à vaga e desgovernada,
varrendo-me os apetrechos e forçando-me alijar da maior parte de viveres para
aliviar o lastro e não ir ao fundo
- Lá foram mandados ao mar três bidões de
água potável e as latas de conserva oferecidas a bordo do
Hornet. Apressei-me a enrolar a vela e a colocar o mastro (suplente) de través
para lhe conferir alguma estabilidade e a lançar o 4º bidão de plástico, meio
de água, preso a uma corda para fazer de âncora flutuante de modo a forçá-la a
estar de proa à vaga.. O colchão insuflável, coloquei-o à proa com a lanterna,
sobre o estrado) para o que desse e viesse, sim, era a única boia que dispunha
e eu não sabia ainda muito bem como a canoa iria resistir e se comportar..
Escusado será dizer que a noite fora pavorosa!...Não há palavras para a
descrever..De manhã improvisei um remo com um barrote e uns bocados que
arranquei da cobertura, junto à popa..Sim, nunca cruzei os braços, nunca me dei
por vencido: foram infinitos os momentos em que a vida esteve sempre
presa por um fio. Mas havia que lutar.
Era o
começo de um longo e exaustivo tormento . Encontrava-me no Atlântico Sul , em
pleno mar alto, a 350 km da costa oeste do continente africano
e 180 km a sudoeste da ilha de São Tomé. As chuvas constantes da primeira
semana, com o horizonte sempre encoberto, impedir-me-iam de avistar São Tomé.
Mais tarde avistei a Ilha do Príncipe e Ilhéu das Tinhosas, mas, a falta de
remo adequado, não me permitiram a aproximação. Por fim, a 27 de Novembro,
acostei numa praia de Bioko (ex-Fernando
Pó) .Onde fui preso e encarcerado por suspeita de espionagem.
"MENSAGEM DO POVO DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE, PARA O POVO BRASILEIRO" - Que não chegou ao destino (dois meses após a independência) mas continua perfeitamente actualizada.
"A recente independência nacional de S.
Tomé e Príncipe, e a consequente libertação do nosso povo do domínio colonial
português, reforça a afinidade dum passado histórico comum com o Povo
Brasileiro, e daí, a razão de ser de uma irmandade que importa reviver,
sempre que possível, para se reforçar.
Assim, aproveitando a travessia atlântica do
camarada Jorge Trabulo Marques, que servindo-se de uma simples canoa, vai
percorrer o mar, de S. Tomé ao Brasil, evocando a rota por que, na era
retrógrada, os escravos eram conduzidos para as plantações da cana
do açúcar, o povo de S. Tomé e Príncipe, representado pela sua vanguarda
revolucionária, o MOVIMENTO DE LIBERTAÇÃO DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE (MLSTP),
saúda fraternal e calorosamente, o povo irmão do Brasil" - Excerto
No dia 3 de Dezembro de 1975 quatro anos antes de Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, ascender ao poder., havia-me
chamado ao seu gabinete para saber a razão pela qual me havia metido num
"canuco" e desembarcado ilegalmente numa das praias, pois o seu tio
suspeitava que eu fosse um espião ao serviço do imperialismo
americano para recolher secretamente informações e me juntar aos inimigos do
povo - Claro, que na cabeça de Macias, não encaixava a ideia de que um
europeu pudesse meter-se numa piroga para fazer uma aventura, que não fosse a
de ter sido largado (nas proximidades) por um qualquer navio de guerra
inimigo do seu regime.
Se não se desse
a circunstância - como explicarei mais adiante - de possuir uma mensagem
do MLSTP ao Povo Brasileiro, mas sobretudo graças à generosa e humanitária
compreensão de seu sobrinho, Teodoro Obiang, sim, dificilmente teria
escapado ao fuzilamento. Mesmo quando fui libertado, o seu sobrinho
autorizara-me a permanecer na Ilha e até a aceitar o convite (que me havia
feito o seu Comissário) para trabalhar nas fincas, dado ser técnico agrícola e
ter experiências das roças. E ele gostar "muito do trabalho que os
portugueses, ali haviam desenvolvido nas fincas" - Só que, o ditador
Macias, continuava desconfiado e ordenou a minha imediata expulsão - Estava
autorizado a sair mas não podia permanecer
No passaporte ficaria escrito que tinha quinze dias para partir
de qualquer fronteira, mas não foi isso que sucedeu. E a minha sorte foi que
nesse dia havia o avião da Ibéria, quando não teria que sair a nado - O pior é
que ninguém queria pagar-me a viagem. E o avião não podia levantar voo
sem mim. Foi um dilema para o comandante, que só foi resolvido duas horas
depois da hora prevista da partida - Mas isso dá outra história.
SAUDAÇÃO ESPECIAL AO POVO DA GUINÉ EQUATORIAL
Teodoro Obiang é um dos líderes africanos, com a maior
longevidade no poder. Não é minha intenção vir questionar a situação
política da Guiné Equatorial. Não pretendo fazer aqui essa análise. Mas
agradecer, uma vez mais, ao Presidente Obiang, ter-me salvo de ser condenado
pela loucura assassina de Macias, seu tio, quando me enviou para a cadeia da
morte.
NEO-COLONIALISMO NÃO DESARMA - AS ILHAS DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE TAMBÉM
ERAM O ALVO DA GULA NEOCOLONIALISTA
Segundo noticias, então veiculadas pelo "O Sunday Times de Joannesburgo noticiou (...) a
tentativa dum golpe de estado em Guiné Equatorial era só uma parte dum plano
maior para tomada de poder neste país, em São Tomé e Príncipe e Príncipe
e no DR CongO". São Tomé alvo de ataque por Espanha?
Mais uma vez, as potências
externas em vez de contribuírem para o desenvolvimento do processo
democrático dos países africanos, optarem pelos jogos de poder. Foi assim que
começou a guerra do Biafra. Muitos dos mercenários, que tomaram parte no
fracassado Golpe de Estado, encontram-se ainda detidos na prisão da Praia
Negra, conhecida Black Beach prison
..
CONFIRMARAM-SE OS MEUS RECEIOS PARA
NÃO APORTAR NAQUELA ILHA
7 de Novembro, 1975 -
Ao 18ª dia, de facto, não tinha a menor dúvida: eu via perfeitamente os
contornos de uma grande ilha – E só podia ser Bioko , antiga colónia espanhola,
“descoberta” , em 1471, pelo navegador português, Fernando Pó - Pareceu-me que não estava muito longe
desta ilha, e, talvez, se eu naquela tarde, erguesse a vela, possivelmente os
ventos e as correntes me arrastassem para lá, mas tive medo que me prendessem e
hesitei – Tendo, porém, acabado por
ali acostar, 20 dias depois, ou seja, ao 38º dia, já no limiar da
minha resistência física, onde fui tomado por espião, algemado e preso. Antes de transcrever o que
registei no pequeno gravador, referente ao 18ºdia, vou aqui recordar o drama
que ali vivi.
Na verdade, após ali ter ido parar, depois dos longos
38 dias de solidão no mar, muitos dos quais sem comida e bebendo água das
chuvas ou água salgada, só
vim a saber que era a Ilha de Bioko (ex-Fernando Pó), quando me pus a
caminho pelo mato adentro, até à sede de uma Finca (roça). Ali fui bem
recebido, porém, quando o sargento da Polícia chegou, tudo mudou de figura -
Este desatou logo aos berros a incriminar o funcionário da Finca por me ter
acolhido e dado de comer. Seus
Traidores! Seus encobridores! - "Amanhã quero que se apresentem no meu
gabinete! "
mas o encarregado, acabou também por ir no mesmo jipe. Embora, já noite,
obrigou-me a ir mostrar-lhe a canoa, que já estava toda desfeita pelo impacto
das ondas na areia, e também dado o estado em que já se encontrava; então mais
raivoso e desconfiado ficou, pensando que fosse eu que a tivesse destruído
e queria saber onde eu tinha escondido as armas
De regresso à Finca, forçou-me a manter-me de
pé, a ficar em sentido, frente a uma secretária, durante várias horas: às vezes
eu caía, pois eu mal podia andar, quanto mais estar de pé, mas ele
imediatamente me puxava pelos cabelos ou berrava - Ponha-se de pé! Respeite a
autoridade!! - E lá tinha eu que apelar às forças que me restavam,
durante o tempo em que durou o longo e exaustivo interrogatório e revistou minuciosamente os poucos trapos que me restavam. Ainda hoje me custa a
crer como não me confiscou os rolos e as cassetes -
Eis
algumas passagens do pesadelo vivido naquela ilha, descrito mais tarde: "Serão 10 horas da noite,
chega finalmente o esperado carro da polícia. Dentro dele saem dois
indivíduos que imediatamente se dirigem para o interior da casa onde me encontro.
Entram e limitam-se apenas a dar as boas noites num tom frio e meramente
formal. Não estendem as mãos a quem quer que seja.Mostram-se sisudos e com ar
de muita importância.Não vêm fardados. Têm, apenas, sobre o bolso da camisa a
esfinge do Presidente Macias.Mas o seu aspeto não ilude ninguém.Têm modos duros
e a sua presença provoca um certo ar intimidativo e de gravidade nos
circunstantes, que .subitamente param de falar e se entreolham como que
alarmados. Os que estão sentados têm que se levantar. (...) Reina um ambiente
de severa circunspeção. Tudo leva a crer que se vai proceder a uma espécie de
julgamento sumário. Sou olhado com manifesta suspeita e desconfiança. Como se
acaso se tratasse de um perigoso criminoso.(...)
Sobre a mesa está a relação das minhas coisas e toda a
minha documentação pessoal. Começam as primeiras inquirições. Um deles, que
presumo ser o chefe, deita-me uma vez mais um olhar severo e principia a mexer
na papelada que tem à sua frente. Analisa-a e revolve-a várias vezes, depois
volta-se para mim: Que
atrevimento foi o teu de vires aqui espionar a nossa ilha?!!...Que barco te
largou?!!...Que abuso foi o teu de entrares clandestinamente na República da
Guiné Equatorial?!!...Não sabes que te podemos matar?!!...Ou não tens consciência
da gravidade do crime que cometestes?!...Vá! Responde!!...
Chefe! Não cometi crime nenhum! Não venho espionar a
vossa Ilha.Sou um náufrago!... (...) Não vê que estou com o corpo fraco; já há
muitos dias que não como nada e necessitava que me prestassem a vossa
assistência, fossem misericordiosos para comigo ou me levassem para
um hospital.-Não mintas!! Não sejas fingido e mentiroso!!!...Daqui a bocado,
já te digo onde é o hospital.
A relação das minhas coisas já havia sido conferida e
descriminada pela Comissão Administrativa da finca, estava tudo anotado.
No entanto, ele faz questão de conferir tudo.As cassetes são escutadas uma por
uma. Os meus papéis, inspecionados até ao mais ínfimo pormenor. Faz anotações
sobre anotações. Verificando que faltam algumas coisas(que havia oferecido aos
trabalhadores da finca),ordena ao encarregado que quer o resto das coisas e a
presença de todos os indivíduos que as aceitaram.
(...)Passa
já da meia-noite. Todos se encontram já deitados em suas casas. São acordados e
obrigados a comparecerem, com o blusão de oleado, a lanterna, duas
camisolas e os bidões de plástico. (...) Seus
canalhas!! Seus encobridores!... Seus patifes!. Seus traidores! À manhã, pelas
9 horas,quero-os no meu gabinete!"
(...) São quatro da manhã. À nossa frente
sobressai uma mancha de luzes. Vejo que é um centro urbano.Tem
aspeto de ser vila ou cidade (presumo que tenha sido Luba): "Que
lugar é este? - indago."¿Por qué?! .. ¿Qué te
importa saber eso! - Responde o chefe da
polícia. Fica situado à beira-mar, e, pelos barcos pesqueiros que estão
fundeados na baía que o ladeia, denota ser um razoável centro piscatório. Após
algumas voltas pelas suas artérias,eis que o jipe abranda e sou imediatamente
conduzido ao interior de um edifício. É uma esquadra, não tenho a menor dúvida.
À porta está uma sentinela e a inscrição: Policia Nacional de
Seguridad
Entro para o gabinete
do chefe da esquadra, para onde também são encaminhadas as minhas coisas.Fico
de pé frente à sua secretária. Momentos depois manda-me descalçar,
passam-me as mãos pelos bolsos e ordena que seja conduzido a uma cela.Aberta a
porta, sou empurrado de rampelão lá para dentro.Entorpeço e caio.No chão estão
algumas pessoas deitadas que não vejo. Debruço-me e tacteio para tentar
descobrir um espaço onde possa deitar-me.Mas só toco em corpos, quase
amontoados, estendidos lado a lado como se fossem sardinhas enlatadas.De pé não
consigo ficar porque me sinto demasiado fatigado.Necessito de dormir de
qualquer maneira nem que seja sobre espinhos.Por fim,lá me deito.De lado e com
as costas voltadas para a parede.No chão apenas uma esteira a separar a frieza
do cimento.Mesmo assim adormeço que nem uma pedra.
Nove horas da manhã. A cela é aberta e somos acordados. Todos me olham
estupefactos e surpresos. A minha surpresa também não é menor. Entre os meus
companheiros de infortúnio há duas crianças, duas mulheres e quatro homens
(trabalhadores nigerianos. As crianças são ainda de peito.Isto impressiona-me,
meu Deus - Numa outra postagem, conto apresentar a transcrição do
relato pormenorizado das minhas vicissitudes naquela ilha
Ainda no período dessa manhã, meteram-me numa
carrinha, que fazia de transporte público, ladeado por dois polícias armados de
metralhadoras, os quais, após ter chegado a Malabo, me conduziriam à
cadeia da morte - Mal transpus o portão, vi logo que estava metido num grande
sarilho. O ambiente era de facto sinistro. Ouvi
logo gritos de prisioneiros a serem inquiridos e torturados. Os dois policias
(que, de resto, até tinham sido simpáticos, tendo-me
até comprado umas bananas pelo caminho, por se terem sensibilizado com o meu
estado de fraqueza) quando me entregaram aos carcereiros, foi como se me
tivessem lançado às feras: agarraram-me pelos braços e levaram-me aos
empurrões até à cela, visto eu mal poder andar - e ainda para mais
algemado. Aberta a porta de ferro, fui de novo empurrado: as algemas só
mais tarde mas retiraram, tendo entretanto urinado nas calças: ou seja,
só me desalgemaram depois de ter sido submetido a mais um longo e
exaustivo interrogatório, após o que voltaram a encarcerar-me na dita
cela de alta segurança, de reduzidíssimas dimensões, na qual dispunha apenas de
um balde para as necessidades e de um banco para me deitar, que não tinha mais
de metro e meio de comprimento. Mesmo assim eu era um felizardo: a
maioria das celas, só se fosse a esteira que o próprio condenado levasse.
PIOR DE QUE CELA, AUTÊNTICA LIXEIRA DE RATOS E DE
CHEIROS NAUSEABUNDOS
Quem fornecia a comida aos prisioneiros, eram os
familiares. Lá dentro não havia cozinhas nem refeitórios. Ao lado da minha
cela, situava-se a casa de banho dos guardas prisionais, que me mandava
um pivete insuportável, mas que eu não podia utilizar. Havia baratas e
percevejos por todos os lados. As ratazanas entravam na minha cela, chegavam a
passear-se por cima de mim e a morder-me nos dedos dos pés, quando me deitava -
Por vezes no chão, pois não conseguia estender-me e segurar-me no banco.
Também nem sequer dispunha de uma torneira ou de um lavatório. Para beber um
copo de água tinha de o implorar aos guardas, que só mo levavam quando
lhes apetecesse. Por outro lado, também tinha de levar com o cheiro das minhas
fezes, pois, só de manhã eram recolhidas.
Como se não bastasse o estado de
desnutrição, que quase me arruinara, tinha agora que levar com os suores e
cheiros do meu corpo, pois não tinha onde me lavar. Daí que, quem ali desse
entrada, não tardasse a que, ao fim de alguns dias, tivesse a sensação de que,
em vez do prisioneiro se sentir um ser humano, se identificasse como um pária e
ficasse assim mais propenso a aceitar a condenação como um castigo justo e
inevitável. Felizmente, nunca me deixei abater, porque, as adversidades do mar,
me haviam preparado para todo o tido de dificuldades, no entanto, a
passagem por aquela prisão (breve é certo) constitui uma marca negra nas minhas
recordações da Guiné Equatorial e na minha vida.
MAS QUE MAL TERIA FEITO EU,
PARA, APÓS OS 38 DIAS DE SOFRIMENTO NO ALTO MAR, DAR ENTRADA NUM PRESIDIO
DOS CONDENADOS À MORTE?!... - CHEGUEI MESMO A PENSAR SE NÃO TERIA VALIDO MAIS A
PENA TER FICADO NA BARRIGA DE UM TUBARÃO.
Naquela altura, o pior que me poderia acontecer era acostar em
qualquer ponto da Guiné Equatorial, ou nalguma das suas Ilhas ou no continente.
Eu sempre pensei que os maiores riscos, não eram tanto as dificuldades no mar,
mas a grande incerteza das condições em que poderia ser recebido onde fosse
aportar. Quando fiz a
viagem de São Tomé à Nigéria, depois de 13 dias solitários no mar, eu não fui
maltratado mas não me livrei de ter sido privado da minha liberdade durante 17
dias, após o que me repatriaram para Portugal - Na viagem dos três dias
de São Tomé ao príncipe, fui preso e espancado pela PIDE - Ó sorte macaca! Que
no mar me protegeste e em terra me abandonaste!
"QUE ATREVIMENTO É
ESSE!!" - QUASE ME IAM MATANDO QUANDO HASTEEI A BANDEIRA DE SÃO TOMÉ E
PRÍNCIPE
Na viagem à Nigéria, levei as
duas bandeiras: a de São Tomé e Príncipe e a de Portugal Mas, nesta
viagem, apenas levei o pavilhão do jovem país independente aonde
regressei sem um centavo na algibeira, onde encontrei todo o apoio que precisei
para mandar construir a canoa e para a aparelhar.- Sim, e donde parti para
grande aventura. No meu cárcere, em Bioko, um de dia resolvi hastear
a Bandeira Nacional de São Tomé e Príncipe, - Quando o
carcereiro, que, de volta e meia vinha espreitar a minha cela, topou, mas
que heresia!... Foi buscar imediatamente a chave da cela e, ao entrar lá
dentro, deu-me um empurrão contra a parede, e, ao mesmo tempo que agarrava nela
e a amachucava, levando-a, berrava: Su mercenario! ¿Qué descaro!! Qué falta de vergüenza!! - Não posso dizer que fosse agredido
fisicamente, mas humilhado e submetido a uma incerteza psicológica terrível. É
que, após ter dado entrada naquele maldito presídio de condenados à pena
capital, contava sempre com o pior: de
resto, os presidiários que me visitaram pela janela e me levaram comida,
avisam-me logo, com esta pergunta: "És político?!..- A que eu respondi:
"Não!" Diz um deles: "Então talvez te safes. Mas não digas mal
do Presidente, senão... podem decapitar-te!
Eu tinha realmente informações
de que não era aconselhável
ir parar à Ilha de Bioko (ex-Fernando Pó), governada pelo então Presidente da Guiné Equatorial, Francisco Macías
Nguema, sanguinário e déspota ditador, que dirigia então o país sob
duríssima mão de ferro, tendo ordenado o espancamento e o assassínio de
milhares de opositores, incluindo alguns familiares – Derrubado, em 3 de Agosto de 1979,
pelo seu sobrinho, o actual Presidente Teodoro Obiang Nguema Mbasogo através
de um sangrento golpe militar, que depois o condenou a um pelotão de
fuzilamento a 29 de Setembro, desse mesmo ano. Obiang, ainda jovem, com os seus 33
anos (e a juventude é sempre mais tolerante e generosa) era já então o Comandante
das Polícias e das Forças Armadas e foi ele que ordenou a minha soltura, depois de me ter mandado chamar ao Comando e após ter passado alguns
dias numa das mais tenebrosas prisões de África , onde todas as noites, havia execuções
sumárias, já que, quem ali
entrasse, só saía de lá cadáver.
Na manhã do dia 3 de Dezembro, quando menos esperava, um carcereiro chegou à porta da minha cela, algemou-me e ordenou-me que o acompanhasse - Senti logo um embate no meu coração, que não deveria ser levado para melhor destino - Mal transpus a cela, sou imediatamente agarrado por outro guarda, tendo à minha frente o Comissário da Cadeia, que já me tinha torturado com infindáveis interrogatórios para me conduzirem ao sítio das execuções.
Sucedeu, porém, que, por um feliz acaso, talvez milagroso (pelos vistos, a sorte protege os audazes), soa o telefone no corredor da morte - Era o então o Comandante Teodoro Obaing Nguema Mbasongo, atual Presidente da República da Guiné Equatorial, sobrinho do todo poderoso, Francisco Macías Nguema, a ordenar ao Comissário da Prisão para ser conduzido à presença, ao gabinete do então supremo comandante das policias e das forças armadas, que me recebeu, inicialmente de forma austera e desconfiada: com estas palavras: " O que se passa contigo?!... Porque te meteste num canuco e o que vieste aqui fazer?!.. Lamento mas tenho que cumprir as ordens de Sua Excelência e tenho de o executar hoje!...
Respondi-lhe que era um náufrago e para me soltarem as algemas e lhe mostrar a mensagem do MLSTP, que trazia no bolso atrás das minhas calças - Como estava carimbada, não duvidou da sua autenticidade e, ao sentar-se na sua cadeira de vime(enquanto eu ia permanecendo sempre de pé e à sua frente) me passou a questionar de forma mais descontraída e simpática
Bom, lá tive que voltar a repetir o que já havida dito várias vezes, que não era espião e as razões pelas quais me havia metido na canoa e ido ali parar - Mas, quando o vi soltar uma gargalhada e pedir-me para que lhe contasse mais alguns pormenores dos meus longos dias no mar, disse cá para os meus botões: este é dos meus!... Estou a ver que está a gostar da minha aventura. Por volta do meio-dia, depois de me ouvir, ordenava ao Comissário para me soltarem
POUCOS DIAS DE CATIVEIRO, MAS AUTÊNTICAS
ETERNIDADES - QUEM NÃO RECEBESSE COMIDA DO EXTERIOR, MORRIA DE FOME
A cadeia não fornecia
alimentação: tinham de ser os familiares. Nos primeiros três dias, quem me
passou alguma comida (massa de mandioca, regada com óleo de palma, que
mais das vezes a vomitava para a lata das necessidades, pois eu estava
magríssimo e, o meu estômago, já não estava habituado a comer alimentos
sólidos, há muitos dias), sim, quem me deu alguma comida, foram
os próprios condenados, que trepavam curiosos à minha janela gradeada, durante
o curto recreio que dispunham, num átrio para a qual a minha cela estava
voltada. Creio que, naquela altura, devia ser o único europeu preso. Agora,
depois que houve por lá uma tentativa fracassada de Golpe de Estado, em Março
de 2004, estão lá presos alguns dos implicados. Mas nada que se compare às
tenebrosas condições daqueles tempos.
Nos dias seguintes, passei a receber uma
cestinha, com frutos e outros alimentos, por parte do barbeiro do
Presidente Nguema, um amável são-tomense, que era também o representante
diplomático e que ali tinha ido a seu mando para recolher informações a
meu respeito - Para que não duvidasse das minhas intenções, pedi-lhe que lhe
mostrasse uma mensagem autenticada pelo MLSTP, que lha entreguei para a mostrar
ao Sr. Presidente - Mas ele no dia seguinte, devolveu-me, com ar de
desapontamento e de tristeza, confessando-me que Sua Excelência ainda havia ficado mais
desconfiado com este papel
- Então, agora, que acha que me
vai suceder? - Perguntei
Respondeu-me, com este argumento:
eu disse-lhe era verdade que o Sr. Jorge Marques queria atravessar o
oceano numa canoa - Falei-lhe que tinha ouvido a entrevista que o
Sr. Jorge, havia dado à Rádio Nacional, antes da sua partida, mas ele acha que
é truque e que você é um espião e que tem de o condenar ... Bom, enquanto aqui estiver, eu posso
trazer-lhe alguma comida.
Agradeci-lhe
o generoso gesto da sua coragem e disponibilidade
(sim, a quem daqui volto a mandar um carinhoso abraço de profundo
agradecimento), no entanto, ainda mais preocupado fiquei, pois
comecei a imaginar, que se o Presidente Macias não acreditava no seu barceiro
pessoal, era mesmo sinal que eu ia mesmo acabar por ser enforcado e passar pelos mesmos tormentos que se faziam ouvir de noite nos calabouços de tortura e de execução.
A
mensagem destinava-se a saudar o Povo Brasileiro, viagem que não
consegui realizar, pelo facto do comandante do pesqueiro americano se ter
recusado a deixar-me na corrente equatorial, mas junto à Ilha de ANO
BOM, onde os ventos e as correntes tomavam
a direção Norte, tendo, nessa mesma noite, sido surpreendido por um violento
tornado, que me fez perder a maior parte dos alimentos e apetrechos
Quem entrasse naquela cadeia, entrava para a lista da
morte.
Eu bem me apercebi dos gritos
lancinantes e de terror dos pobres
infelizes, que, depois da meia noite, eram executados, não pelas balas (que
isso fazia demasiado barulho e ficava caro, pois, naquela altura, o petróleo,
ainda não tinha ali feito jorrar milhões de dólares, sendo então considerado o
país mais oprimido e miserável de África) mas por garrotes de asfixiamento!. Dessa sina, felizmente, lá me
safei, graças a Obiang - Quando
ele veio a Lisboa, por ocasião de uma Cimeira da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa, que decorreu no Centro Cultural de Belém, eu dirige-me lá
para lhe agradecer pessoalmente o seu gesto. Estou convencido, que, por vontade
do seu tio, eu era fuzilado, dado o estado demência e de paranóia, como Macias dirigia o seu país. Bastava-lhe sonhar que um ministro o queria trair, para o
mandar logo matar.
Não é seguro que aquela minha
hesitação, ao 18º dia, fosse a causa de eu vir a ter que enfrentar mais duas
dezenas de dias de um longo e penoso calvário, quando, afinal, tinha ali a Ilha
à vista. Fosse como fosse, levar-me-ia a ser balanceado pelos tornados
para todos os quadrantes, que, sobretudo
na época das chuvas – fustigam aquela turbulenta zona do Golfo da Guiné,
logrando apenas ali aportar após uma exaustiva luta de sobrevivência – E,
ironia das ironias, supondo tratar-se de algum pacifico recanto da costa
africana. Mas era realmente
Bioko, conhecida, naquele tempo, por Ilha do Paraíso nas Mãos do Diabo.
DÉCIMO OITAVO DIA – MAIS UM BARCO PASSOU A ESCASSA
DISTÂNCIA DA MINHA CANOA E ME IGNOROU
Diário de
Bordo 1 - Hoje perfaz 18 dias que ando na canoa “São Tome” (Yon Gato) . Estou
próximo da Ilha de Fernando Pó. Vejo-a perfeitamente. Estou a evitar, tudo por
tudo, para não ir dar lá. Aliás, se pusesse a vela, o vento arrastar-me-ia,
inevitavelmente. Também as correntes me estão a puxar na mesma direção. Vejo lá
um barco próximo. Estou aí a umas 15 milhas, possivelmente.
De noite, não
choveu mas o mar esteve muito agitado. E eu tive de estar muito atento para
evitar ser abalroado por algum barco ou para ver se me aproximava de terra - Dada a extensão deste post, os pormenores, relativos ao 18º dia,
foram transcritos para a postagem seguinte NÁUFRAGO
- 18ª DIA
2 comentários :
Obrigado pela partilha de aventuras e vivências. Encontrei este blog durante a preparação da minha vindoura viagem a São Tomé.
Eu é que lhe fico muito grato pela amabilidade das suas palavras. Sei que este meu site é muito visitado mas não é frequente as pessoas expressarem as suas opiniões. Por isso, é sempre gratificante receberem-se palavras de reconhecimento. Obrigado e os meus desejos sinceros de que passe umas boas férias nessas maravilhosas Ilhas de São Tomé e Príncipe
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