Algures no Golfo da
Guiné, 17 de Novembro de 1975
Diário de Bordo - 5 "Não sei onde me
encontro...Não sei para onde vou!... Mas tenho ainda uma réstia de esperança...
Tenho fé em Deus! Que realmente chegue a terra!... É o que posso dizer neste
princípio de noite..."
Diário de Bordo - 7 Sinceramente!... Vou-me
deitar!... Vou ver se descanso qualquer coisa, daqui a bocado...Mas, sem comer
nada?!...Com estômago completamente vazio... (..)
Ah, mas eu quero é viver! É viver! E mais nada!... Eu quero viver!... A vida é
tão bela!... A vida... ai... (não
resisto que as lágrimas me corram pela face) Só
no meio das dificuldades é que uma pessoa, realmente, avalia o que é a vida!...
..
(foto do autor deste site, algures nos mares Golfo)
Diário de Bordo - 1 Deve
ser uma da manhã do 28ª dia. É noite e está luar!...Até agora o tempo tem estado
bom. Mas o mar está muito agitado, com uma uma calema muito
forte! E eu ainda nem me deitei nem cruzei os braços, vou a velejar. O
que me obrigo a uma atenção redobrada. A canoa balanceia bastante! E eu já
ergui a vela mais pequena para dar outro equilíbrio à canoa.
Há umas formações de nuvens lá ao largo...Esperemos que entretanto não
chova
Em meu redor é o mar! E é noite de luar!... No alto do
cósmico arco, e já muito acima do ponto onde se ergueu do fundo das
águas, brilha um impressionante disco lunar, cuja claridade se espalha por uma imensa superfície espelhada de
infindos brilhos de prata e por infindas pregas de enrugada extensão, ora
cintilando, ora desmaiando, mas cá em baixo o seu brilho vem somente tornar
ainda mais visível a face
conturbada da infinita solidão que me submerge. Pois, de tão longínquo, não
desfaz por completo as negras nuvens que pairam em torno do obscuro
horizonte que me envolve, que continuam a revelar-se, como olhos de
assombrosa e velada ameaça!..
.
Sim,
alta vai a noite e alta brilha a lua e eu não durmo! - Ondulam nervosas
águas e, por tão agitadas, adio o meu repouso; nem tão pouco posso dormir
nem descansar. No entanto, completamente alheia à minha incerteza, a
canoa lá vai subindo e descendo a cova e a dobra de cada onda do imenso manto
tumultuante. Sei a direção que
toma mas não faço a mínima ideia onde estou nem para onde vou.
(pescador de São Tomé - foto do autor deste site)
Mas,
oh Deus, a lua, descoberta ou encoberta, lá segue imperturbável o seu percurso
- Jamais força alguma a desviará a impedirá de mostrar à
Humanidade e a toda a Criação, as várias faces do seu rosto. Mas, o meu
destino, como será?!... Sozinho e abandonado, debaixo da sua luz, ao sabor dos
caprichos do mar e do vento, para onde me levará a noite?!... Qual o
meu caminho?!... .. Quem me responde?!...
A que enseada de águas calmas, límpidas e profundas,
a que bom porto de abrigo ou praia de areia fina, a minha
canoa, poderá tranquilamente acostar? Ou a que íngreme escarpa,
promontosa arriba, rochosa falésia, poderei vir a ser atirado e
despedaçado?!... E, depois, o que poderá acontecer-me se pisar a tão
desejada floresta, luxuriante e fértil, carregada de frutos silvestres, chão
viçoso e perfumado, a tão ansiada terra firme?!..
(largada da Praia das Neves, em São Tomé - para
o pesqueiro Hornet, afim de me deixar na corrente equatorial)
Como
irei ser recebido?!...Apiedando-se de mim, deste miserável náufrago,
acolhendo-me, humanamente, ou intrigando-se com o meu aspeto, magro,
atormentado, queimado e olheirento, de criatura vinda de outro
mundo?!...
. Recebendo-me com desumana desconfiança e hostilidade, como perigoso invasor e foragido?!.. Vendo em mim o ser pacífico, que ousou enfrentar sozinho as procelosas ondas dos tornados ou o vil estranho, o suspeito, desembarcado de barco espião ou pirata?!...
Dez dias depois, conheceria a resposta - detido, algemado, encarcerado!... Mas, agora, era a noite, mais uma longa noite equatorial, um longo e exaustivo desafio - E, cada noite, nestes mares, não é uma noite, como outra qualquer, mas a sombria eternidade, a sempre misteriosa e antiquíssima noite, que, a cada momento, vai mostrando, aos meus olhos, ansiosos e perscrutadores, as mais diversas máscaras e fantasmas, com que se cobre ou revela.
"Vem, Noite
antiquíssima e idêntica. / Noite Rainha nascida destronada, /Noite igual por
dentro ao silêncio, Noite /Com as estrelas lantejoulas rápidas /No teu vestido
franjado de Infinito.
(...)Vem
soleníssima,/ Soleníssima e cheia / De uma oculta vontade de soluçar, /Talvez
porque a alma é grande e a vida pequena, /E todos os gestos não saem do nosso
corpo, /E só alcançamos onde o nosso braço chega, /E só vemos até onde chega o
nosso olhar.
Vem, dolorosa, / Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos, /Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados. /Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes.
Vem, dolorosa, / Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos, /Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados. /Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados. /Vem, lá do fundo / Do horizonte lívido, /Vem e arranca-me / Do solo de angústia e de inutilidade / Onde vicejo.(...) Alvaro de Campos (Fernando Pessoa)
CONTINUO SEM PESCAR E A
GUARDAR O TUBARÃO, JÁ ESTRAGADO. - BASTANTE ME CUSTA SACRIFICAR AS MINHAS
ÚNICAS COMPANHEIRAS QUE VÊM PERNOITAR NA MINHA CANOA ...MAS, OH MALDITA
FOME! A QUE CRIME ME LEVASTE!..
Diário de Bordo - 2 - Apanhei há bocadito uma ave...Uma
avezita...Sinceramente, custa-me fazer isso...Até porque pousam aqui todas as
noites...Mas a verdade é que a necessidade me obriga... Há fome!...Portanto,
tenho que me valer destes recursos....
Diário de Bordo - 3 Os trabalhos que acabei de executar, são
trabalhos muito melindrosos... É preciso fazer umas ginásticas para se proceder
a isto e evitar que se caia ao mar...Realmente está uma calema bastante
forte e a canoa balanceia muito!... Está sempre a ser vergastada e a
balancear!... O vento não é muito mas o mar está muito cavado!...
Diário de Bordo - 4 Devem ser aí 7 da manhã do 28ª dia. A
situação é muito enervante!...O mar continua agitado!... Ao amanhecer surgiu
uma trovoada violenta que deixou o mar muito cavado!... A canoa anda para aqui
a balançar de um lado para o outro e torna difícil o meu equilibro....O
tubarão dá um pivete dos diabos!... Está a cheirar mal!... Tenho tentado pescar e não consigo pescar nada!...
Há aqui uma série de peixes parasitas que mal lanço a isca vão logo comê-la!...
Simplesmente, não ficam lá presos, porque o anzol é demasiado grande.
Estou
realmente saturado!... A canoa deve ter andado bastante, devido à violência das
vagas mas não vislumbro qualquer contorno de terra!...Isso é para mim bastante
chato, porque já era altura de estar próximo de terra... Estou para aqui
esfomeado!...Enfim!...
As correntes
mudaram nitidamente. Estão-me a levar para norte, nordeste. O que vai atrasar a
minha chegada a terra...Por este andamento, até é possível que já não chegue à
Nigéria mas aos Camarões.
ASSOLADO POR UM VIOLENTO
TORNADO DURANTE O DIA, ACABEI POR
NÃO FAZER MAIS QUALQUER REGISTO NO PEQUENO GRAVADOR, QUE GUARDO NO MEU BAÚ DE PLÁSTICO, UM VELHO
CONTENTOR DO LIXO - AO TORMENTOSO DIA, VAI AGORA SUCEDER A INCERTEZA DE
UMA LONGA E TORMENTOSA NOITE DE VIGÍLIA
Diário de Bordo - 5 Fim
do 28º dia. É noite!... Meu coração está profundamente triste!...A manhã esteve
realmente bonita mas a tarde foi tempestuosa!...Veio uma violenta tempestade
que me pôs em sérios riscos a canoa!... Só não a virou talvez por milagre de
Deus!... Só isso não aconteceu talvez por milagre de Deus!...
Grandes
vagas alterosas entravam dentro da minha canoa!... Um tubarão grande,
daqueles perigosos, rodeava-me de um lado para o outro!... Foi para mim uma
tarde angustiante e aflitiva!...Sem comer!... Aqui ando não sei para onde!...
Ao
princípio da tarde avistei terra!...Avistei contornos da costa de África!...
Mas o tornado surgiu!...Surgiu a tempestade!...Está a retardar com certeza a
minha chegada a terra!.... Meu Deus!... Cada vez as dificuldades são
maiores!... Mas a verdade é que tudo tem limites!.... Espero que a noite seja
um bocadinho mais repousante!... O mar já está mais calmo!... Embora ainda
cavado... A ressaca ainda se está a notar!
Diário de Bordo - A
verdade é que eu não posso estar tranquilo!.. De maneira nenhuma... Todos os
dias tempestades!...Todos os dias trovoadas!... Eu também não sei até que ponto
a minha canoa resistirá.... a estas condições todas... Não sei onde me
encontro...Não sei para onde vou!... Mas tenho ainda uma réstia de
esperança... Tenho fé em Deus! Que realmente chegue a terra!... É o que posso
dizer neste princípio de noite... Noite escura!...Tão escura como foi a
tarde... Enfim... seja o que Deus quiser..
Diário
de Bordo - 6 A canoa tem um
grande defeito: está desequilibrada!.. E eu costumo...quando surge um tornado,
fazer com que ela fique virada para o lado que está mais pesado. E desta vez
havia todas as possibilidades de a canoa se virar!.... Isso não aconteceu
por muita sorte!...Só quase por milagre é que não aconteceu... Este quase mesmo
a voltar-se.
Diário
de Bordo - 7 Eu acho que um homem
nunca deve desesperar... Mesmo vendo a morte à frente dos olhos....Mas,
sinceramente, já são 28 dias passados nestas condições...Tão
difíceis!...Espero que a confiança não me falte.... E a calma para continuar a
suportar tantas dificuldades e tantos perigos!...
Sinceramente!...
Vou-me deitar!... Vou ver se descanso qualquer coisa, daqui a bocado...Mas, sem
comer nada?!...Com estômago completamente vazio... Pois não tive tempo de
preparar qualquer coisa... Aliás, o que tenho aqui é unicamente um bocado de
tubarão, mais nada!... (estragado)... Ah, mas eu quero é viver! É viver! E mais
nada!... Eu quero viviver!... A vida é tão bela!... A vida... ai... (não resisto que as lágrimas me corram pela face) Só no meio das dificuldades é que uma pessoa,
realmente, avalia o que é a vida!...
Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.
Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!
(..)
Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo.
.
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