Algures no Golfo da Guiné, 14 de Novembro de 1975
Diário
de Bordo - É manhã do dia 25 que viajo na minha canoa...De noite não dormi
muito. Pois estive quase sempre acordado...O mar esteve bastante agitado,
aliás, continua com uma ondulação muito forte e um vento dominante de sul-norte..
Eu
acredito que agora vá ter a terra, uma vez que voltei a sentir os ventos
dominantes... Aquela fase das trovoadas, dá-me a impressão que já deve estar
ultrapassada...Não sei, mas deve de ter sido a fase de lua-cheia; o quarto-crescente
é que me deu esses trabalhos todos. Por isso, vou pôr já imediatamente a vela a
ver se adianto mais um bocado. Porque, realmente, a canoa assim já se desloca
muito bem. Ela durante a noite deve ter sido muito arrastada...Vê-se que há
muita calema!... Esta calema arrasta-a também . Arrasta-a, exatamente, com as
correntes.
Olhando para
o horizonte, não descortino ainda a terra, nem vejo a Ilha de Fernando Pó. Não
vejo absolutamente quaisquer vestígios de terra. Mas tenho um pressentimento de
que não devo estar muito longe, até porque, o andamento que tem estado a
ter, devido à força das vagas, é possível que não esteja muito longe de
terra... Estou preocupado um bocadinho, porque a canoa continua a meter água
pela carlinga, pois os pregos (onde encaixava a vara do mastro) atingiram o
fundo. Por outro lado, notam-se algumas fraturas e podem realmente de um
momento para o outro provocar roturas maiores...oxalá que não. Que isso não me
aconteça...
Diário de Bordo - 2 Já é quase meio-dia. Estou já a
velejar com a vela grande. O mar tem estado ligeiramente ondulado. Corre uma
certa brisa mas ainda é bastante fraca...Sinto-me muito cansado, cheio de sede,
tenho pouca água e pouca comida!... A água que tenho, a maior parte é água salgada, (misturada com a das chuvas) pois entretanto não
choveu... e eu estou sem água.
Está um calor de morrer !.. Transpiro por todos os
poros.... Está realmente bastante calor. Bastante!... Apetecia-me agora um
banho de água fresca , mas tal não é possível neste mar.
- Na imagem ao lado, o meu baú (um caixote do lixo onde guardava o gravador, com que registava o meu diário de bordo) e o remo improvisado, com um pau e alguns pedaços arrancados à pequena cobertura dos bordos, que tivera de construir devido à perda do remo da canoa, que o tornado da primeira noite me havia levado
Diário de Bordo - 3 São neste momento, cerca das duas da
tarde do 25º dia. Estou cheio de sede e de fome. Não tenho praticamente água. A
água que disponho, aí meio litro, é quase toda do mar. Os recursos alimentares
estão reduzidos a 50 gramas de farinha, se tanto!... Enfim... Quanto às perspetivas
da terra, não sei!... Vejo agora a água do mar mais clarinha...Está uma brisa
agradável. O céu está praticamente descoberto, é o que posso adiantar neste
momento.
Aliás, posso
dizer que de manhã velejei algumas horas, depois surgiu muito calor.
Entretanto, tirei a vela, porque o vento desandou. Deitei-me um bocado na canoa
a descansar para evitar o calor.... Agora voltou a fazer um
bocadinho de fresco e voltei a colocar a vela. E, realmente, a canoa está
a dar um andamento bastante agradável.
Diário de Bordo - 4 São neste momento, aí uma duas e meia ou
três da tarde. Tenho cá um pressentimento que a cor da água , um azul muito
clarinho! já demonstra eu não estar num mar de muitas profundidades. Dá a
impressão que não devo estar muito afastado de terra. Só vejo nuvens no
horizonte, mas a água está realmente de um azul muito claro. Pode dar a
entender que esteja próximo...Veremos...
Diário de Bordo - 5 Devem ser quatro horas da tarde.
Continuo a velejar com uma certa dificuldade, pois o remo (improvisado) não me
ajuda nada. Um pormenor curioso! é que as correntes se alteraram. Agora
apresentam-se para noroeste e não para norte.
Visto estar cheio de sede, tomei há pouco uns comprimidos,
umas vitaminas, por isso tenho o estômago a saber a comprimidos...É bastante
chato... Enfim, vai-se aguentando... Pode ser que não seja por muito tempo...
Tenho aqui ainda o tubarão...O outro já o deitei fora. E se não
prestar vou pescar, com certeza, pois é a única solução que tenho.
Diário de Bordo - 6 Há pouco disse que as
correntes corriam para noroeste, mas não; é para nordeste. Portanto, têm um
sentido completamente diferente. Antes, corriam para Norte, agora correm
nitidamente para nordeste, o que dificulta, não só o domínio da canoa, como
também porque vou levar mais tempo - (Sim, porque a canoa ia
adernada num dos bordos)
Diário de Bordo - 7 É já noite do 25º dia. A
tarde manteve-se com bastante sol! O mar com alguma calema e com vento
relativamente forte mas permitiu a colocação da vela. Velejei um bocado. É claro,
com muitas dificuldades, visto não ter o leme (que lhe havia adaptado), mas sim
um remo improvisado.
Já
se me acabou a comida. Tenho dois nacos de chouriço que guardo
religiosamente para as iscas, para pescar. Água não disponho senão de
água do mar, pois hoje não choveu. Acabo agora de comer um bocado de tubarão
que consegui cozer com muita ginástica à custa de uma vela. O tubarão que tenho
vou guardá-lo e vou ver se pesco outro.
O
mar neste momento está bastante agitado, está com uma ondulação bastante forte.
O vento não é muito mas o mar está bastante forte. O céu não se apresenta
totalmente encoberto mas há formações de nuvens a norte, formações de
trovoada...Espero que não venham ao meu encontro, visto, nesta altura, o vento
ser preponderante do sul para norte...Há outras formações para outro
lado, mas espero no entanto que
não me atinjam... De qualquer maneira, já desejo um bocado de água das chuvas,
visto já não a possuir.
O
luar!... Temos quase a lua-cheia!... Mas tenuemente, pois está encoberta
por algumas nuvens...Mais uma noite que passo, com dificuldades, mas,
enfim...Quanto à costa de África, não consegui vislumbrar nada. Tenho tido
apenas ilusões, ilusões!... Ilusões de terra!... A água, vejo-a mais
transparente mas isso é da claridade do luar... Apenas ilusões e mais nada!...
Não devo estar longe, com certeza!...Estou a demorar mas tempo de Fernando Pó
para a Nigéria - e aqui tão perto da costa africana - que do Príncipe
para Fernando Pó - sim, quando avistei estas ilhas
.
Sinto
neste momento necessidade de beber água do mar; embora seja muito desagradável
e não mata totalmente a sede... Verifica-se agora uma certa fraqueza em mim...
Espero fazer face a estas dificuldades.
Bebendo água do mar
Ó MAR ALTO SEM TER FUNDO - VIVER BEM PERTO DO CÉU E ANDAR BEM LONGE DO MUNDO - Zeca Afonso
Ó MAR ALTO SEM TER FUNDO - VIVER BEM PERTO DO CÉU E ANDAR BEM LONGE DO MUNDO - Zeca Afonso
PASSADO
COLONIAL - RECORDADO POR MIGUEL TROVOADA NA SUA PRIMEIRA VISITA OFICIAL À ILHA
DO PRÍNCIPE - PALAVRAS ESCUTADAS NO ALTO MAR -
Alocução escutada através do meu pequeno transístor em pleno mar alto, sobre o qual, ao longo dos tempos, terão morrido centenas de vidas, quer dos primeiros povoadores que o teriam cruzado nas suas pirogas, e, mesmo, mais tarde, nas fainas da pesca, levados pelos tornados e sucumbido, ou até das próprias caravelas dos colonizadores e mercadores de escravos, que por ali teriam também naufragado.
Como já
referi, em anteriores passagens do meu diário, eu levava comigo um pequeno transístor,
com o qual, por vezes, ia escutando a Rádio Nacional de São Tomé e Príncipe e
outras estações africanas. A dada altura, ao sintonizar a estação das Ilhas
Verdes, ouço a voz do então Primeiro-Ministro Miguel Trovoada, num discurso,
acalorado e de pendor patriótico, proferido, creio eu, por ocasião da sua
primeira visita oficial ao Príncipe
A independência do arquipélago, ainda mal dava os primeiros
passos e muitas feridas do passado colonial ainda não haviam sarado. E
era oportuno recordar um dos argumentos estafados do colonialismo. De que as
Ilhas estavam desertas, quando ali desembarcaram os primeiros brancos.
Teoria que eu julgo ter demonstrado estar errada através das várias travessias
que realizei no Golfo da Guiné, em pirogas primitivas - A primeira de São Tomé
ao Principie - 3 dias; a segunda de São Tomé à Nigéria - 13 dias - E agora esta
penosa e dramática odisseia, da qual, felizmente, pese as imensas
vicissitudes, haveria de sobreviver, entre as Ilhas de Ano Bom e Fernando
Pó (Bioko) ou seja, desde a mais meridional à mais setentrional. Eis a
passagem que ainda consegui gravar no pequeno gravador, que pude preservar
religiosamente no meu baú, um velho contentor do lixo, de plástico.
(....)”pois dizendo que os navegadores portugueses
foram os primeiros a chegar e a ocupar a terra, eles tinham o direito de
propriedade sobre esta terra e todos os indivíduos que vieram depois
teriam de se submeter às suas leis e às suas ordens.
No passado, as nossas terras foram
utilizadas, como muitos aqui sabem, como uma espécie de local onde vinham
colocar os escravos que depois eram vendidos e transportados para a América!...
Milhares e milhares de irmãos nossos, dos nossos antepassados, deixaram aqui a sua vida antes de a deixar através
de uma viagem difícil e longa, em condições extremamente perigosas e
precárias. Outros, deixaram-nas nas plantações do Brasil, do Mississippi e de
outras terras da América!... Mais tarde, as nossas ilhas, foram utilizadas para
diversos tipos de explorações agrícolas, em particular a plantar a cana do
açúcar, que eram praticadas, tanto em São Tomé, como no Príncipe, em benefício
exclusivo dos colonos.
Muitos compatriotas nossos deram o
sangue, o seu suor e a sua vida para enriquecer bolsos que se encontravam a
milhares de colonos daqui. Depois, nós sabemos também que as terras de São Tomé
e Príncipe que pertenciam aos seus habitantes, foram , ao longo dos anos, pouco
a pouco ocupadas aos seus proprietários.
Nós conhecemos perfeitamente quais
foram os processos utilizados para alcançar este fim. Nós sabemos que a
violência, a mentira foram utilizadas! Houve casos, e muitos!, nós aqui
presentes, temo-los bem na memória, casos em que , uma empresa agrícola,
detinha uma porção de terra, pouco a pouco a marcação da empresa, ia
avançando, ia avançando dia a dia, como quem tem pés, e a marcação que a gente
encontrava hoje aqui, amanhã estava a 100 metros mais longe! Em prejuízo dos
nativos, em prejuízo do nossos compatriotas. Acham isso justo?!...
SÓ DEUS SABE
O QUÃO INFAME E TORMENTOSA FOI A VIDA DOS MILHARES DE DESGRAÇADOS, QUE FORAM
METIDOS À FORÇA, ACORRENTADOS, EM PORÕES FÉTIDOS E ABAFADOS!...
SÓ DEUS
SABE QUÃO VIL FOI O TRABALHO ESCRAVO NAS PLANTAÇÕES DA CANA DO AÇÚCAR, CAFÉ,
CACAU E COPRA - QUANTA DESUMANIDADE E QUANTA AFRONTA E TIRANIA! - QUANTO
SUOR E SANGUE NÃO FORAM DERRAMADOS!
E SÓ DEUS
SABE O QUÃO DIFÍCIL É RESISTIR, SOZINHO, À FÚRIA DAS TEMPESTADES OU
A UM CALOR ABRASADOR DO SOL A PINO DO EQUADOR, EM PLENO MAR
SALGADO, SEM COMIDA E ÁGUA POTÁVEL - E, OH DEUS! ENTÃO EM NOITES DE TERRÍVEL
ASSOMBRAÇÃO!
.
Noticias de São
Tomé e Príncipe
7 de Outubro de 2012 (Domingo),pelas 12 horas no Centro
Pastoral Claret – Av. dos Missionários – ao pé da Escola Básica 2,3 António
Sérgio – Agualva Cacém.Comunidade
são-tomense em Portugal festeja “Nossa Senhora de Guadaupe...U ......EPR inaugurou
estação de cabo submarino de fibra óptica
Frase do dia - FRANCISCO JOSÉ VIEGAS, Encontrar
soluções O atual secretário
de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, defende que Portugal tem de
encontrar soluções para melhor explorar o mar.
3 comentários :
Parabéns por esta evocação da Grande Aventura.
Parabéns por esta evocação da Grande Aventura.
Obrigado Jorge Heitor - Constato através do meu site que tenho muitos leitores mas raramente exprimem a sua opinião. Talvez porque, como diz uma velha expressão popular, o silêncio é de oiro e a palavra é de prata - Talvez leiam e fiquem a reflectir no que é um homem sozinho perdido no mar e depois lhe faltem as palavras - Não é assim que diz o épico Camões?.. Sim, porque, para quem nunca se viu nesta situação, deve ser algo dificil de compreender Claro que me agradam as opiniões, mas não fico desgostoso se ninguém me disser nada - Obrigado e um abraço amigo
«Contar-te longamente as perigosas
Cousas do mar que os homens não entendem,
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões, que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.
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