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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

25º dia. Estou cheio de sede e de fome. (...) Tomei há pouco uns comprimidos, umas vitaminas, por isso tenho o estômago a saber a comprimidos...É bastante chato... (..) Quanto à costa de África, tenho tido apenas ilusões, ilusões!... Ilusões de terra!...

(noutro post mais à frente 29ª Dia - Passei  a noite todo encharcado...Mas, por fim, até adormeci, sonhei e acordei a falar ...supondo que tinha chegado a terra)


Algures no Golfo da Guiné, 14 de Novembro de 1975

Diário de Bordo  - 1 

Diário de Bordo - É manhã do dia 25 que viajo na minha canoa...De noite não dormi muito. Pois estive quase sempre acordado...O mar esteve bastante agitado, aliás, continua com uma ondulação muito forte e um vento dominante de sul-norte.. 

Eu acredito que agora vá ter a terra, uma vez que voltei a sentir os ventos dominantes... Aquela fase das trovoadas, dá-me a impressão que já deve estar ultrapassada...Não sei, mas deve de ter sido a fase de lua-cheia; o quarto-crescente é que me deu esses trabalhos todos. Por isso, vou pôr já imediatamente a vela a ver se adianto mais um bocado. Porque, realmente, a canoa assim já se desloca muito bem. Ela durante a noite deve ter sido muito arrastada...Vê-se que há muita calema!... Esta calema arrasta-a também . Arrasta-a, exatamente, com as correntes.


Olhando para o horizonte, não descortino ainda a terra, nem vejo a Ilha de Fernando Pó. Não vejo absolutamente quaisquer vestígios de terra. Mas tenho um pressentimento de que não devo estar  muito longe, até porque, o andamento que tem estado a ter, devido à força das vagas, é possível que não esteja muito longe de terra... Estou preocupado um bocadinho, porque a canoa continua a meter água pela carlinga, pois os pregos (onde encaixava a vara do mastro) atingiram o fundo. Por outro lado, notam-se algumas fraturas e podem realmente de um momento para o outro provocar roturas maiores...oxalá que não. Que isso não me aconteça... 

Diário de Bordo  - 2  Já é quase  meio-dia. Estou já a velejar com a vela grande. O mar tem estado ligeiramente ondulado. Corre uma certa brisa mas ainda é bastante fraca...Sinto-me muito cansado, cheio de sede, tenho pouca água e pouca comida!... A água que tenho, a maior parte é  água salgada, (misturada com a das chuvas) pois entretanto não choveu... e eu estou sem água.

Está um calor de morrer !.. Transpiro por todos os poros.... Está realmente bastante calor. Bastante!... Apetecia-me agora um banho de água fresca , mas tal não é possível neste mar.

Na imagem ao lado, o meu baú (um caixote do lixo onde guardava o gravador, com que registava o meu diário de bordo) e  o remo improvisado, com um pau e alguns pedaços arrancados à pequena cobertura dos bordos, que tivera de construir devido à perda do remo da canoa, que o  tornado da primeira noite me  havia levado 


Diário de Bordo  - 3  São neste momento, cerca das duas da tarde do 25º dia. Estou cheio de sede e de fome. Não tenho praticamente água. A água que disponho, aí meio litro, é quase toda do mar. Os recursos alimentares estão reduzidos a 50 gramas de farinha, se tanto!... Enfim... Quanto às perspetivas da terra, não sei!... Vejo agora a água do mar mais clarinha...Está uma brisa agradável. O céu está praticamente descoberto, é o que posso adiantar neste momento.

Aliás, posso dizer que de manhã velejei algumas horas, depois surgiu muito calor. Entretanto, tirei a vela, porque o vento desandou. Deitei-me um bocado na canoa a descansar  para evitar o calor.... Agora voltou a fazer um bocadinho  de fresco e voltei a colocar a vela. E, realmente, a canoa está a dar um andamento bastante agradável.

Diário de Bordo  - 4  São neste momento, aí uma duas e meia ou três da tarde. Tenho cá um pressentimento que a cor da água , um azul muito clarinho! já demonstra eu não estar num mar de muitas profundidades. Dá a impressão que não devo estar muito afastado de terra. Só vejo nuvens no horizonte, mas a água está realmente de um azul muito claro. Pode dar a entender que esteja próximo...Veremos... 

Diário de Bordo  - 5  Devem ser quatro horas da tarde. Continuo a velejar com uma certa dificuldade, pois o remo (improvisado) não me ajuda nada. Um pormenor curioso! é que as correntes se alteraram. Agora apresentam-se para noroeste e não para norte.

Visto estar cheio de sede, tomei há pouco uns comprimidos, umas vitaminas, por isso tenho o estômago a saber a comprimidos...É bastante chato... Enfim, vai-se aguentando... Pode ser que não seja por muito tempo... Tenho  aqui  ainda o tubarão...O outro já o deitei fora. E se não prestar vou pescar, com certeza, pois é a única solução que tenho.





Diário de Bordo  - 6  Há pouco disse que as correntes corriam para noroeste, mas não; é para nordeste. Portanto, têm um sentido completamente diferente. Antes, corriam para Norte, agora correm nitidamente para nordeste, o que dificulta, não só o domínio da canoa, como também porque vou levar mais tempo - (Sim, porque a canoa ia adernada num dos bordos)

Diário de Bordo  - 7  É já noite do 25º dia. A tarde manteve-se com bastante sol! O mar com alguma calema e com vento relativamente forte mas permitiu a colocação da vela. Velejei um bocado. É claro, com muitas dificuldades, visto não ter o leme (que lhe havia adaptado), mas sim um remo improvisado.

Já se me acabou a comida. Tenho dois nacos de chouriço que guardo religiosamente  para as iscas, para pescar. Água não disponho senão de água do mar, pois hoje não choveu. Acabo agora de comer um bocado de tubarão que consegui cozer com muita ginástica à custa de uma vela. O tubarão que tenho vou guardá-lo e vou ver se pesco  outro.

O mar neste momento está bastante agitado, está com uma ondulação bastante forte. O vento não é muito mas o mar está bastante forte. O céu não se apresenta totalmente encoberto mas há formações de nuvens a norte, formações de trovoada...Espero que não venham ao meu encontro, visto, nesta altura, o vento ser preponderante  do sul para norte...Há outras formações para outro lado, mas espero no entanto que não me atinjam... De qualquer maneira, já desejo um bocado de água das chuvas, visto já não a possuir.

O luar!... Temos quase a lua-cheia!... Mas tenuemente, pois está encoberta por  algumas nuvens...Mais uma noite que passo, com dificuldades, mas, enfim...Quanto à costa de África, não consegui vislumbrar nada. Tenho tido apenas ilusões, ilusões!... Ilusões de terra!... A água, vejo-a mais transparente mas isso é da claridade do luar... Apenas ilusões e mais nada!... Não devo estar longe, com certeza!...Estou a demorar mas tempo de Fernando Pó para a Nigéria  - e aqui tão perto da costa africana - que do Príncipe para Fernando Pó - sim, quando avistei estas ilhas
.
Sinto neste momento necessidade de beber água do mar; embora seja muito desagradável e não mata totalmente a sede... Verifica-se agora uma certa fraqueza em mim... Espero fazer face a estas dificuldades.
Bebendo água do mar

Ó MAR ALTO SEM TER FUNDO - VIVER BEM PERTO DO CÉU E ANDAR BEM LONGE DO MUNDO - Zeca Afonso






PASSADO COLONIAL - RECORDADO POR MIGUEL TROVOADA NA SUA PRIMEIRA VISITA OFICIAL À ILHA DO PRÍNCIPE - PALAVRAS ESCUTADAS NO ALTO MAR -


 Alocução escutada através do meu pequeno transístor em pleno mar alto, sobre o qual, ao longo dos tempos, terão morrido centenas de vidas, quer dos primeiros povoadores que o teriam cruzado nas suas pirogas, e, mesmo, mais tarde, nas  fainas da pesca, levados pelos tornados e sucumbido, ou até das próprias caravelas dos colonizadores e mercadores de escravos, que por ali teriam também naufragado. 



Como já referi, em anteriores passagens do meu diário, eu levava comigo um pequeno transístor, com o qual, por vezes, ia escutando a Rádio Nacional de São Tomé e Príncipe e outras estações africanas. A dada altura, ao sintonizar a estação das Ilhas Verdes, ouço a voz do então Primeiro-Ministro Miguel Trovoada, num discurso, acalorado e de pendor patriótico,  proferido, creio eu, por ocasião da sua primeira visita oficial ao Príncipe 



 A independência do arquipélago, ainda mal dava os primeiros passos e  muitas feridas do passado colonial ainda não haviam sarado. E era oportuno recordar um dos argumentos estafados do colonialismo. De que as Ilhas estavam desertas, quando ali desembarcaram os primeiros brancos.  Teoria que eu julgo ter demonstrado estar errada através das várias travessias que realizei no Golfo da Guiné, em pirogas primitivas - A primeira de São Tomé ao Principie - 3 dias; a segunda de São Tomé à Nigéria - 13 dias - E agora esta penosa e dramática odisseia,  da qual,  felizmente, pese as imensas vicissitudes,  haveria de sobreviver, entre as Ilhas de Ano Bom e Fernando Pó (Bioko) ou seja, desde a mais  meridional à mais setentrional. Eis a passagem que ainda consegui gravar no pequeno gravador, que pude preservar religiosamente no meu baú, um velho contentor do lixo, de plástico.



 (....)”pois dizendo que os navegadores portugueses foram os primeiros a chegar e a ocupar a terra, eles tinham o direito de propriedade  sobre esta terra e todos os indivíduos que vieram depois teriam de se submeter  às suas leis e às suas ordens.



No passado, as nossas terras foram utilizadas, como muitos aqui sabem, como uma espécie  de local onde vinham colocar os escravos que depois eram vendidos e transportados para a América!... Milhares e milhares de irmãos nossos, dos nossos antepassados, deixaram aqui a sua vida antes de a deixar através de uma viagem  difícil e longa, em condições extremamente perigosas e precárias. Outros, deixaram-nas nas plantações do Brasil, do Mississippi e de outras terras da América!... Mais tarde, as nossas ilhas, foram utilizadas para diversos tipos de explorações agrícolas, em particular a plantar a cana do açúcar, que eram praticadas, tanto em São Tomé, como no Príncipe, em benefício exclusivo dos colonos. 


Muitos compatriotas nossos  deram o sangue, o seu suor e a sua vida para enriquecer bolsos que se encontravam a milhares de colonos daqui. Depois, nós sabemos também que as terras de São Tomé e Príncipe que pertenciam aos seus habitantes, foram , ao longo dos anos, pouco a pouco ocupadas aos seus proprietários. 

 Nós conhecemos perfeitamente quais foram os processos utilizados para alcançar este fim. Nós sabemos que a violência, a mentira foram utilizadas! Houve casos, e muitos!, nós aqui presentes, temo-los bem na memória, casos em que , uma empresa agrícola, detinha uma porção de terra, pouco a pouco  a marcação da empresa, ia avançando, ia avançando dia a dia, como quem tem pés, e a marcação que a gente encontrava hoje aqui, amanhã estava a 100 metros mais longe! Em prejuízo dos nativos, em prejuízo do nossos compatriotas. Acham isso justo?!...

SÓ DEUS SABE O QUÃO INFAME E TORMENTOSA FOI A VIDA DOS MILHARES DE DESGRAÇADOS, QUE FORAM METIDOS À FORÇA, ACORRENTADOS, EM PORÕES FÉTIDOS E ABAFADOS!...

 SÓ DEUS SABE QUÃO VIL FOI O TRABALHO ESCRAVO NAS PLANTAÇÕES DA CANA DO AÇÚCAR, CAFÉ, CACAU E COPRA - QUANTA DESUMANIDADE E  QUANTA AFRONTA E TIRANIA! - QUANTO SUOR E SANGUE  NÃO FORAM DERRAMADOS!

E SÓ DEUS SABE O QUÃO DIFÍCIL  É RESISTIR, SOZINHO,  À FÚRIA DAS TEMPESTADES OU A UM CALOR ABRASADOR DO SOL A PINO DO  EQUADOR,  EM PLENO MAR SALGADO, SEM COMIDA E ÁGUA POTÁVEL - E, OH DEUS! ENTÃO EM NOITES DE TERRÍVEL ASSOMBRAÇÃO!
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Noticias de São Tomé e Príncipe
 7 de Outubro de 2012 (Domingo),pelas 12 horas no Centro Pastoral Claret – Av. dos Missionários – ao pé da Escola Básica 2,3 António Sérgio – Agualva Cacém.Comunidade são-tomense em Portugal festeja “Nossa Senhora de Guadaupe...U ......EPR inaugurou estação de cabo submarino de fibra óptica
Frase do dia - FRANCISCO JOSÉ VIEGAS, Encontrar soluções O atual secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, defende que Portugal tem de encontrar soluções para melhor explorar o mar.


3 comentários :

heitor disse...

Parabéns por esta evocação da Grande Aventura.

heitor disse...

Parabéns por esta evocação da Grande Aventura.

canoasdomar disse...

Obrigado Jorge Heitor - Constato através do meu site que tenho muitos leitores mas raramente exprimem a sua opinião. Talvez porque, como diz uma velha expressão popular, o silêncio é de oiro e a palavra é de prata - Talvez leiam e fiquem a reflectir no que é um homem sozinho perdido no mar e depois lhe faltem as palavras - Não é assim que diz o épico Camões?.. Sim, porque, para quem nunca se viu nesta situação, deve ser algo dificil de compreender Claro que me agradam as opiniões, mas não fico desgostoso se ninguém me disser nada - Obrigado e um abraço amigo

«Contar-te longamente as perigosas
Cousas do mar que os homens não entendem,
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões, que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.