Algures no Golfo da Guiné, 18 de Novembro de 1975
"Bem sei que estou endoidecendo.
Bem sei que
falha em mim quem sou.
Sim, mas,
enquanto não me rendo.
Quero saber por
onde vou"
- Fernando
Pessoa - 15-9-1934
Diário de
Bordo "Passei uma tarde calma.
Agora a minha preocupação começa a estar precisamente no local onde irei
aportar...Não sei...Será um local habitado?!...Pode ser desabitado...Enfim, o
que me interessa é que seja terra, fundamentalmente, é que seja terra! Local
seguro..."
Ainda não fiz referência à noite passada:
passei uma noite todo encharcado! Envolvido
num plástico mas por fim até
adormeci e sonhei..Sonhei e tive uns sonhos muito esquisitos, acordei a
falar!...Supondo que tinha chegado realmente a terra. Tive assim sonhos
muito esquisitos."- Excertos
do diário do 29º dia
Tal
como tenho vindo a referir, o diário de bordo foi registado num pequeno
gravador, defendido das ameaças do mar, num velho contentor do lixo
(de plástico, imagem ao lado) que me fora oferecido por empresa portuguesa, em
São Tomé -
Germano Castela
De
noite não choveu mas a ressaca do tornado de véspera, deixara o mar muito
agitado, prolongara-se pela noite adentro e houve vagas que, ao vergastarem as
bordas da canoa, se despenhavam e me encharcavam. Além disso, existem algumas
rachas e sítios por onde entra a água - Deito-me por cima de um estrado de
barrotes - O colchão de praia rompeu-se. Só quando a água me atinge as costas é
que lanço mão do vertedouro, devido ao meu estado de fraqueza. Por vezes,
até me deixo ficar encharcado nessa salmoura. - Se ao menos dispusesse do
remo principal! Tenho de me servir de um improvisado (imagem acima e ao lado), feito de um
tosco pau de um dos mastros suplentes e uns bocados de contraplacado arrancados
à cobertura da popa. A maioria dos alimentos e apetrechos, perdi-os no violento
tornado, logo na primeira noite.
Diário de Bordo - 1 É manhã do 29ª dia. Ainda não tive
tempo de comer qualquer coisa. A manhã amanheceu brusca. De noite não choveu.
Não há sol. Está um tempo enevoado e há um vento no sentido de oeste
este.
Coloquei a
vela para tirar partido deste vento, que parece estar a dar resultado. Veremos
como é que será o dia de hoje....Aliás, já avistei contornos de África, desde
ontem e se não fosse o tornado, com certeza que estaria já muito próximo, pois
o tornado é que veio desfavorecer a minha aproximação.
Diário de Bordo - 2 Devem ser aí umas 9.30 a 10 horas da
manhã do 29º dia. Já tive que enfrentar mais uma trovoada; não muito violenta
mas que me deu bastante trabalho. Agora volta a estar mais calmo, volta haver
calmaria. Não há muito vento. embora o mar se apresente com uma ligeira
ressaca...Veremos até quando isto vai durar...
Diário de Bordo -3 Deve ser provavelmente
meio-dia do 29º dia. A manhã esteve bastante trovejada, choveu! A canoa ficou
toda alagada!...Agora está enxuta e já volta haver uma certa calmaria. Não há
vento. O céu está nevoado... Sinto fome!... Comi um bocado de tubarão mas sinto
fome!...O tubarão sabe-me mal... Sinto uma certa fraqueza...
Diário de Bordo - Volto a ver a Ilha de
Fernando Pó no horizonte. O horizonte ficou descoberto depois da chuvada e
avistei ligeiros contornos da costa de África.... Entretanto, depois da
chuvada, estive a fazer uma limpeza da canoa. Deixei-a limpa, sem água e
pus a roupa a enxugar. A canoa, neste momento, está um estendal autêntico! Com
tudo a enxugar!... A aguardar, com certeza, outra chuvada (sorrio),
que entretanto é capaz de aparecer.
Apesar
de todos estes trabalhos. De todas estas dificuldades, sinto-me otimista neste
momento. Embora fraco e cheio de fome... Não consigo pescar. tenho deitado o
anzol mas não pesco nada. Quando não precisava, eu pescava; agora não consigo.
Mas estou otimista. Espero chegar a terra...Hei-de chegar a terra! Pois sinto
uma esperança em mim; não estou desiludido...Apesar dos perigos a que me tenho
exposto serem muito grandes...
Os
meus tubarões martelo continuam a guardar a canoa...Os outros, por enquanto
ainda não apareceram.
Fui marinheiro mas também o poeta do sentir.
Quis sentir, com todos os meus sentidos e até à flor da pele
e à flor do oceano - olhos, língua, olfacto, estômago, veias e tacto,
na brisa marítima que respirei e na própria água salgada que bebi,
no deslumbramento das tardes serenas e noites plácidas de luar
ou mesmo no assombro da fúria das tempestades que vivi
- sustos, inquietações que o meu coração ainda hoje perpetua -
todas as emoções possíveis e imagináveis - E entendi
que só nos horizontes esbatidos da imensidão do mar,
perdendo-me livremente à superfície das suas vagas,
no contínuo enrolar das soltas ondas, sobre a crista
ou no fundo da sua cava, as poderia sentir e encontrar.
Diário de Bordo - 4 Serão neste momento umas
quatro horas da tarde do 29º dia. A tarde tem estado muito serena. O mar
apresenta-se ligeiramente ondulado. O céu coberto com uma ligeira neblina. No
horizonte há nuvens que o limitam mas onde posso vislumbrar outros contornos da
costa africana...Não totalmente, mas já se vislumbram perfeitamente, quer para
norte quer para noroeste. Vê-se também a Ilha de Fernando Pó. Claro que só a
parte mais alta... A Ilha de Fernando Pó (Bioko, situada na Baía de Biafra )
é muito alta. Tem picos com mais de 2000 metros de altura (Pico Basilé – com 3011 m de altitude).
"Ah, quando nos fazemos ao mar
Quando largamos da terra a vamos perdendo de vista.
Quando tudo se vai enchendo de vento puramente marítimo,
Quando a costa se torna uma linha sombria,
Nessa linha cada vez mais vaga no anoitecer (pairam luzes) -
Ah então que alegria de liberdade para quem se sente.
Cessa de haver razão para existir socialmente.
Não há já razões para amar, odiar, dever.
Não há já leis, não há mágoas que tenham sabor humano...
Há só mar a Partida Abstracta, o movimento das águas.
O movimento do afastamento, o som
Das ondas arrulhando à proa,
É uma grande paz intranquila entrando suave no espírito."
Álvaro Campos (Fernando Pessoa)
Cada um à sua maneira
- Os sonhadores chegam a ser revolucionários - Não é assim ó grande
Che?... - "Lutam melhor os que
têm belos sonhos."- Tu com os
teus, eu com os meus
Diário de Bordo Passei a tarde a ler...Claro que tenho fome,
evidentemente, mas procuro esquecer esse aspeto, ouvindo rádio...Música
africana... Estou a ouvir rádio, enfim... a divagar.
Diário de
Bordo - 5 É portanto o fim de tarde do 29º dia. Passei uma tarde
calma. Agora a minha preocupação começa a estar precisamente no local
onde irei aportar...Não sei...Será um local habitado?!...Pode ser
desabitado...Enfim, o que me interessa é que seja terra, fundamentalmente, é
que seja terra! Local seguro... Porque, em terra, há sempre muitas
possibilidades de sobrevivência...Aqui, estou exposto às tempestades... O
que realmente me põe a vida em grande perigo...Portanto, estou com a moral bastante
elevada, apesar de não comer...Tenho ali um resto do tubarão mas já cheira
mal...Não estou desmoralizado de maneira alguma. Estou até bastante e otimista.
Diário de Bordo - Eu ainda não fiz
referência à noite passada: passei uma noite todo encharcado! Envolvido num
plástico mas por fim até adormeci e sonhei..Sonhei e tive uns sonhos muito
esquisitos, acordei a falar!...Supondo que tinha chegado realmente a terra.
Tive assim sonhos muito esquisitos...
Neste momento olho para o mar...Vejo o olhar para o mar
sereno. Calmo! A cor é uma cor bronzeada. Agora não o receio ...Ontem eu estava
realmente muito preocupado! Dizia-lhe: ó mar ! Tu não me leves! Ó mar não me
voltes a minha canoa!..Eu quase falava com o mar...Realmente, ontem, o mar
estava pavoroso.
À medida que o tempo ia passando, as vagas fortes iam
avançando contra a canoa!...Eu via que a canoa, apesar dessas impetuosidades
não se virava! Eu ia ficando mais tranquilo!...Mas sempre à espera!... À espera
que alguma vaga mais alterosa, com maior força, me pudesse voltar a canoa...Eu
não tinha qualquer hipótese!...Vi um tubarão grande! Enorme! Ás voltas da
canoa. parecia que estava adivinhar que a canoa se ia voltar!...Mas isso,
felizmente, não sucedeu! Não sucedeu!... Porque, eu apesar de tudo,
também mantive a minha calma! Fiz tudo por tudo por enfrentar a situação...Sim,
realmente, uma pessoa nestas condições, nunca pode cruzar braços!...O nosso
cérebro tem que estar sempre a pensar! Sempre a pensar!...Sempre a pensar em
novas coisas!... Em poder dispor dos modestos recursos precários que
tenhamos connosco.. Essa deve ser a preocupação dominante.
Diário de Bordo -6 Já
se pôs o sol, do 29º dia. Finalmente, estou muito satisfeito! Em dois ou três
minutos, acabo de pescar dois peixes! aqui debaixo da canoa...Arranjei outro
anzol e consegui, num ápice, pescá-los! Vou pois assá-los, com um bocadinho de
álcool que disponho...Já não preciso do tubarão...O tubarão está estragado e já
o posso deitar fora.É da maneira que já não vou passar dieta!...Ah! eu tinha
aqui o estômago a bater horas!...
Diário de Bordo -7 Neste momento é já noite. Aparece ali a lua-cheia à minha frente!...Mas, tenuemente, visto fazer uma certa neblina... Confesso que estou satisfateissímo! Os dois peixes souberam-me que nem um pato!...Comi a carne deles crua e gostei! Gostei realmente!...E cheguei à conclusão que é melhor crua de que assada em álcool. Os dois peixes deviam pesar aí 200gramas. A carne era saborosa! Tinham a pele muito dura e foi preciso esfolá-los primeiro. Portanto, o novo anzol resultou. Aliás, eu insisti várias vezes, pois os tipos, cada vez que lançava o anzol, iam à procura da isca, comiam-na e não fiavam lá... Finalmente caíram!
A noite
apresenta-se plácida! Absolutamente serena! O mar é um mar chão! Não há vento
nenhum. Mas também não há calor...Corre uma ténue aragem apenas...Eu devo estar
muito próximo da costa de África...Estão a reluzir os contornos...Por este
andar, amanhã devo estar muito próximo, a menos que apareça alguma trovoada a
puxar para outro lado....Mas não deve haver esta noite ou amanhã, com certeza,
porque hoje não fez sol. Hoje o dia esteve brusco...Portanto, não houve
evaporação... É capaz de não haver nenhuma chuvada! E, se houver, é muito
fraca...Normalmente as trovoadas seguem-se a quando há períodos de sol...
Aparece logo uma trovoada.
Sente-se palpitar
o coração do Oceano
Que pela
lua tem um coração humano.
(...)
E nas
correntes d'ar que as ondas arrefecem
Vibram as
sensações que os nervos estremecem
Teixeira
de Pascoaes
Daqui a pouco vou-me deitar no fundo da canoa... O estômago é que não ficou assim muito bem...Estou satisfeito mas o estômago, com esta dose de carne, que não estava habituado... Tenho ainda ali um bocado do tubarão, que já está estragado, mas só o guardo para iscas para apanhar outros peixes, porque já não presta; já não está muito bom....Estou mais animado, visto estar próximo de terra e também por poder dispor de peixe aqui à volta de mim.
Diário de Bordo -7 Acredite-se, eu que já tinha dado tantas voltas à cabeça...Tinha inventado tantos processos!... Pus um anzol num pau. Experimentei tanta coisa e não resultou...Finalmente, lá encontrei um outro anzol mais pequeno e a coisa com esse anzol deu mesmo efeito. E ainda bem!... E que o mar fosse sempre assim...Com esta calma, com esta aparência tranquila...Ah! era muito agradável!... Mas o mar de vez em quando mostra a sua face!...O mar tem muitas faces...Uma face serena!..Suave!...Ondulante!..Depois, grave!...Violenta! Tempestuosa! Essa é que é a face mais dura!...Escura!... Torrenciosa!... Agora a noite no mar ... mantém-se plácida... A canoa, claro, desequilibrada, está sempre a tombalear, o que é bastante chato, visto ter esse defeito. Se não fosse isso a coisa era melhor.
Há
um pormenor muito importante que ainda não rezistei: é que eu tenho
medicamentos a bordo..Tenho vitaminas... Claro que isso não dispensa a comida
mas dá muito jeito. E isso graças à boa colaboração do Dr. Epifâneo da
Franca. Que me resolveu realmente um grande problema...Até para a água
doce...Quer dizer, eu apanhei água das chuvas.. Ele tinha-me arranjado um
preparado químico, com o qual podia fazer água potável. E isso deu resultado. E
ainda bem que contei com essa preciosa ajuda.
"Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender-
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada..."
23-8-1934
Fernando Pessoa
"Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar". Sofia de Mello Brayner Andersen
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Fernando Pessoa
Frases a reter:
Teresa
Rita Lopes tem uma relação íntima com o mar. "Trabalho a olhar para o
mar, não sou capaz de trabalhar sem o ter à minha frente."
Com a crise que
Portugal atravessa, para a escritora, "o mar é o que nos resta" e diz
haver necessidade de arranjar não só novos barcos mas também pôr
novamente as pessoas a pescar, porque "quem vive perto da água não passa
fome". A escritora apela a que "cultivemos o mar", pois este é muito
especial. Em diversos poemas de Teresa o mar é a personagem principal. DN .. "Cultivemos
o mar"
Júlio Isidro acha que o mar já foi, em tempos, muito bem aproveitado. Mas, na "história recente, houve indicações superiores para que os portugueses voltassem as costas ao mar. Diminuíram as frotas pesqueiras e os portugueses passaram a ter uma zona de pesca e de navegação bem menor".Para o apresentador, num ano em que "100 mil portugueses foram embora do País" o mar existe só para ser "atravessado para outros mundos. Cada português está a tentar descobrir um novo mundo para si".-Novos mundos - Economia - DN
EU E O MAR - JÚLIO ISIDRO, Júlio Isidro acha que o mar já foi, em tempos, muito bem aproveitado. Mas, na "história recente, houve indicações superiores para que os portugueses voltassem as costas ao mar. Diminuíram as frotas pesqueiras e os portugueses passaram a ter uma zona de pesca e de navegação bem menor".Para o apresentador, num ano em que "100 mil portugueses foram embora do País" o mar existe só para ser "atravessado para outros mundos. Cada português está a tentar descobrir um novo mundo para si".-Novos mundos - Economia - DN
2 comentários :
Bem vindo ao meu "Horizonte sem horas", "canoas do mar". Muito obrigada por ter aportado ao meu mar chão. Espero que "veleje" nele com prazer.
Espreitei o seu blog e não percebi como poderia retribuir a gentileza. Aproveitei a "onda" e li excertos deste seu diário de bordo.
Que leva um homem a desafiar os limites? Só a curiosidade intelectual? Uma alma feita de sal e espuma? O gosto pela aventura? O prazer de sentir o vento, misturado com os salpicos do mar?
Obrigado pelo seu amável comentário - ´Pergunta-me o que leva um um homem sozinho a desafiar os limites: foram várias razões (que pude explicar neste meu Odisseias nos mares), no entanto, outras há que nem mesmo hoje as consigo compreender. O que lhe poderei afirmar é que foi uma experiência emocionante, que me deu um verdadeiro sentido à vida - Pois, só o mar, mãe da vida, onde tudo começou, no confronto solitário com a sua imensa vastidão,só talvez aí é que talvez o homem reencontre o descubra a razão da sua própria existência.- Vou seguir, com atenção, o Horizonte sem Horas - Muito obrigado pela cortesia.
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