Algures no Golfo da Guiné, 21 de Novembro de 1975
A aurora mal começara a
irromper, já eu me remexia no fundo da canoa e me levantava para avaliar
as condições atmosféricas do novo dia. Ontem, quando me deitei, já a horas
tardias, ainda caíam alguns chuviscos, esperando, todavia, que, ao
amanhecer, o tempo se recompusesse - Vejo, porém, que o tempo continua
instável; encontro-me envolvido num autêntico inferno cinzento. Estou para aqui
todo encharcado, devido aos balanços desatinados deste madeiro flutuante,
que me arrasta não sei para onde, sobre um mar exaltado de espuma
Do que observo à minha volta, disso vou dar conta no meu diário
gravado, cujo gravador voltei a retirar do meu baú de plástico, um velho
caixote do lixo
Diário de Bordo 1 De noite choveu ligeiramente. O mar, a
partir de certa altura, mostrou-se cavado. Ainda tentei pôr a vela. mas, tive
que voltar a tirá-la, visto estar bastante agitado
Esta manhã verifiquei a existência de
pequenas ervas. Paus... dejetos de aves...Também observei a passagem de
uma garça...Portanto, tenho a impressão que realmente estou muito próximo
da praia.
Já comi qualquer coisa. Aliás, comi a ave
que ontem apanhei. Não tenho já o estômago vazio... Entretanto, logo que chegue
a terra, terei que arranjar outra coisa... Para já, estou um bocado
otimista!... Vou pôr a vela... O mar está cavado!... Mas vai permitir a
colocação da vela.... Portanto, com um bocado de dificuldade, vou ver se
consigo apressar a minha aproximação... até à costa africana.... Claro que de
manhã é difícil ver os contornos de terra... Só de tarde é que me é possível.... De manhã o horizonte
apresenta-se sempre com uma certa neblina. É impossível ver-se.... Mas tenho um
pressentimento de que não estou muito afastado.
A única obsessão que me
domina neste momento é imaginar-me a arrastar a canoa sobre a areia quente e macia de um
qualquer recanto da costa, ladeado pelos frondosos e esbeltos coqueiros,
com a suas frondes debruçadas sobre as águas límpidas e cor de esmeralda ou por
uma espessa floresta de abundantes e frondosas árvores tropicais, onde possa
saciar-me de saborosos frutos.
Não me desagradava que
não vivesse lá ninguém. Pelo contrário, até desejava que isso acontecesse. Pois
não me importaria de viver a experiência que viveu o lendário Robinson Crusoe . Apreciei muito as façanhas relatadas
por Daniel Defoe. É um livro maravilhoso, que persegue o meu imaginário
desde a minha juventude... Acho que é o maior sonho de qualquer náufrago, que
se perca nas águas quentes do Atlântico, do Pacífico ou do Indico: depois de
sobreviver às mil adversidades do mar, que este ao menos o conduza ao encontro de um pequeno paraíso, solitário
e tranquilo, onde possa restabelecer-se dos tormentos por que passou.
.Mas, por agora, essa imagem idílica não passa de um sonho
As ondas continuam
muito feias, a fustigar-me a canoa numa dança, quase de enlouquecer.
Sinto-me fraco e trémulo da fome e do cansaço. Não é possível ter um sono
reparador. Os enormes chapes, chapes, na madeira, acordam-me, e, por vezes, até
me cortam a respiração. Se não é a chuva, são os constantes
safanões e batidas das vagas sobre o costado da canoa. É depois o
consequente chincalhar da água que se acumula no fundo, que entra pelas rachas
e que não me dá descanso. Pois, de volta e meia, lá tenho eu de pegar no
vertedouro.
Quando o mar está mais
bravo, é impossível adormecer. Sempre que preciso de me movimentar para
qualquer trabalho ou acudir a esta ou àquela necessidade, cambaleio como uma
bêbado Água para beber, das chuvas, não me tem faltado. Ainda se dispusesse de
pesca ou de alimentos, mas não tenho nada para comer, com que matar a
fome... A ave que, ontem apanhei, já a comi mas só era pele e ossos. Oh. mas
não posso desistir. Mesmo sem remo adequado, tenho que me esforçar por navegar.
Sei que é uma luta tremenda, mas lutarei enquanto puder!...Só Deus sabe, porém,
o meu esforço.. Nas
calmarias fico imobilizado, e, quando o mar está agitado, torna-se muito
difícil navegar.
Diário de Bordo 2-Coloquei
a vela, durante cerca de três quartos de hora, mas devido à violência do mar -
pois as ondas estão bastante alterosas - é impossível continuar a
velejar!... A canoa ameaça virar a cada instante... Cá ando à deriva... Talvez
até chegar à praia!.... Realmente, faz-me passar tantos trabalhos!... Parece
impossível!... Não havendo qualquer trovoada, o mar estar assim nesta
situação!... O vento não é muito mas o mar está agitadíssimo!
Já vi aqui a existência de mais alguns paus, bambus,
manchas... Mas não vejo ainda quaisquer contornos da costa africana. Pois
há muita neblina no horizonte, lá longe... De qualquer modo, tenho um
pressentimento que me estou a aproximar.... Sinceramente, o mar aqui está muito
bravo!... O mar aqui está realmente difícil! Com ondas fortes!
Impedido de
velejar, procuro um pouco de descanso mas não consigo ter o mínimo de
condições. A bem dizer, já nem sei que posição me será menos incómoda. Deitado,
fico com as costas doridas e, se me sentar, com as nádegas numa chaga,
devido à humidade e outras pústulas que me apareceram nas partes, se me sento,
torna-se-me um tormento, insuportável... Indo de pé, sinto tonturas e é
demasiado arriscado, porque as pernas fraquejam-me e falta-me o equilíbrio. Por
isso, que alternativas poderei eu então escolher?!... Bom, embora não sendo lá
muito confortável, resolvi pôr-me de joelhos.
Com as mãos agarradas às
bordas da canoa e com a barriga dobrada sobre uma das travessas, até para
tentar atenuar a dor e o enorme vazio que me vai no estômago, enquanto, por
outro lado, os pés e a parte das pernas, vão sofrendo uma permanente e
desagradável maceração, devido à salmoura que se acumula no fundo da canoa e
que não pára de chincalhar. Se a canoa navegasse normalmente, não sofreria
tantos embates das vagas. Mas. à força das suas constantes investidas,
já rachou em várias partes. A água entra por essas rachas e outra
salta dos vagalhões que rebentam contra os bordos. À medida que me aproximo da costa, o perigo é
cada vez maior.
Ao largo, o mar enrola, sobe, eleva-se em alterosas montanhas, ondula,
num sob e desce permanente, mas não provoca tanta rebentação. Sim, a
maior ameaça não está no alto mar mas na aproximação à terra. Então, se houver
uma tempestade, o perigo ainda é maior! Mais difícil se torna o equilíbrio.
Vamos lá a ver em que circunstâncias me poderão aproximar. Por agora, o meu
pensamento, não vai tanto para os inúmeros perigos que me rondam, mas para a sua fragilidade. Estas são,
pois, as interrogações e as preocupações que me acodem ao pensamento e que vou
transmitir para o pequeno
gravador.
Diário
de Bordo 3
- Espero que a minha canoa, continue a portar-se bem.
Pois, como já disse algumas vezes, está desequilibradíssima! O que me tem
dificultado sobremaneira a minha viagem... Mas... há outro pormenor importante,
é que ela mete água! E cada vez mete mais água!... Tem várias rachas! Está
estalada!.. Enfim, espero que até à praia ela ainda resista....
Diário
de Bordo 4 A direção que estou a tomar
é completamente diferente do habitual.... Estou a navegar no sentido de oeste
para este... Quer dizer... as correntes aqui têm outra direção... Aliás, eu já
esperava... que junto à costa tivesse outra direção... Estão quase acompanhar a
costa... Portanto, vão retardar a minha aproximação.... Tenho cá um
pressentimento que vai ser arrastada para
aos Camarões.... Porque a canoa está a derivar muito para leste. É natural que
isso aconteça. Esperemos...
Não podendo
colocar a vela, acabo por me deitar. O espaço físico é estreito, olho o
imenso céu mas sinto-me ao mesmo tempo como que um prisioneiro encarcerado.
Flutuo sobre um vasto abismo, certamente agora já não tão profundo, como
lá mais para sul, mas, se a canoa rachar completamente e se partir, é o bastante
para me engolir e me afogar.
Todavia, há
que manter a serenidade e não desesperar. Tenho que me abstrair e
saber preencher o tempo, as longas doze horas do dia. Trago alguns livros
mas agora não os posso ler.... Doem-me muito as costas e os balanços não me
permitem que me entregue a leituras. Só posso divagar o espírito. E é o
que vou fazer, servindo-me do pequeno rádio, que guardo no meu baú - Do qual
também retiro o modesto gravador para registar mais umas breves palavras.
.Diário
de Bordo 5 Entretanto, indiferente à
bravura do mar... estou aqui deitado no fundo da canoa, ouvindo música de
estações africanas - O meu pequeno transístor ainda resiste, as pilhas vão
ficando fracas mas ainda o posso sintonizar em várias emissoras africanas.
Infelizmente,
não foi por muito tempo. No começo da tarde, o tempo refrescou, o céu cobriu-se
de negras nuvens, que trouxeram fortes chuvadas, deixando-me
completamente extenuado. A chuva costuma quebrar o ímpeto das ondas, mesmo
assim, o mar enfureceu-se. Tenho lutado sempre por viver mas agora depois
de mais estes dolorosos tormentos, sob forte chuvada torrencial, perpassa pela
minha mente, alguma resignação. Estou profundamente extenuado. Sinto-me mais
morto de que vivo. Completamente encharcado, com a água ainda a
escorrer-me pelos cabelos e pela barba. Sou para aqui um fantasma
de mim próprio. Não faço ideia que hora sejam
.
UM COCO PRODIGIOSO VEIO PARAR JUNTO À
CANOA E MATAR-ME A FOME -
Diário de Bordo 6 Não sei neste momento que
hora serão...Serão já umas tantas da tarde.... A verdade é que, desde há quatro
horas, enfrentei sucessivas trovoadas!....O mar, como não podia deixar de ser,
ficou bastante agitado! A canoa sempre a encher-se de água!... Fiquei todo
alagado... Estava convencido de que estava muito próximo de terra.... mas neste
momento não sei onde me encontro!... Não sei se a trovoada me favoreceu nem
senão...Já estive a limpar a canoa... Agora deixou de chover!... Há uma ressaca
que se continua a verificar.... Tive a felicidade, digamos assim, de encontrar
um coco!... Foi uma sorte para mim... Vi vários mas só pude apanhar um! E creio
que foi um autêntico milagre!... Vou aproveitá-lo, pois tenho muita fome!...
No mar vi vestígios de
óleo... que me dão a impressão de não estar muito longe de terra... A verdade é
que foi um dia exaustivo!... Estou exausto!!...Estou cansado!... O mar deu-me
muito trabalho!... As vagas muito fortes! E a chuva torrencial!!...Durante
quatro ou cinco horas não parou de chover!... Não sei se ainda voltará a
chover... Neste momento, não está a chover....
DUAS BALEIAS À VISTA
Diário de Bordo - Vi duas baleias na altura da
trovoada. Muito próximas! Mas isso não me assustou... O que me estava a
preocupar era realmente o tempo que a trovoada estava a demorar... Pois espero
que me tenha favorecido... Continuo a não desesperar ... mas estou cansado!...
Tenho fome! Muita fraqueza!... Estou a aguentar... Estou tentando... Estou
tentando não me precipitar... Por suportar isto com serenidade.
De qualquer modo, o esforço tem sido insano. O meu
coração teve que aumentar o ritmo das suas pulsações. Os meus pulmões, o meu
cérebro, em suma, todo o meu organismo, não se poupou a um trabalho exaustivo,
quase sobre sobre-humano. Ainda bem que apanhei o coco. Apareceu em boa hora.
Pois não sei o que seria de mim se não o tivesse achado. Até parece que foi uma
dádiva providencial a permear a heroicidade da minha luta e do meu
combate. Fosse como fosse, veio em boa hora. Primeiro extrai-lhe a casca com o
machim, depois fiz-lhe um furo no extremo e levei-o imediatamente aos lábios
para lhe aproveitar a água. Pouca mas muito saborosa!... Soube-me muito bem. De
seguida, e após me ter deliciado com tão divino néctar, foi a vez de me servir
da sua amêndoa - Eis como exortei com esse momento:
SABOREANDO O COCO DIVINAL..
Diário de Bordo 7 Já estou a comer o coco, meu Deus!... Mas que
coisa tão saborosa!... Tão maravilhosa!... Isto foi Deus!!... Isto foi Deus que
mo ofereceu!... Eu vi-o realmente à distância!... Eu não acreditava que ele
passasse junto da minha canoa!... E veio mesmo ter à minha canoa!... Um belo
coco! Tinha água... e tem uma bela amêndoa! Estou a comê-lo!... Estou a
tentar matar a fome com ele!... Para mim foi a melhor oferta!... Não podia ser melhor
coisa.... este coco!... Não sei donde ele veio! Mas a verdade é que .... veio
ao meu encontro! Ele veio ajudar-me! a preservar a minha vida!... Estou muito
satisfeito por este coco!...
A satisfação
mistura-se com uma comoção que raia as lágrimas. E, à medida que o vou comendo,
com insaciável apetite, no meu espírito reforça-se a imagem de que foi a mão de
Deus que finalmente se lembrara de mim, Por isso, ao mesmo tempo que o reparto por bocadinhos, que
avidamente vou levando à boca e mastigo, com a outra seguro o gravador, como
que possuído por um crescente e comovedor fervor religioso, para que tão
sublime momento, não deixe de ficar
registado à posteridade.
Diário de Bordo 8 Estou comendo o coco!
Avidamente!... Sofregamente!... Digam lá o que disserem!... Neste mar!...(choro) Infinito!... Um coco vir-me parar às
mãos?!... Isto é obra de Deus!!!... Isto é obra de Deus!!... Não é outra
coisa!... Meu Deus!.. Tem-me ajudado muito! Até para enfrentar estas vagas!
Sim, e, com o cair da
tarde, atrás de enormes vagas, outras vagas alterosas, vão sucedendo,
descomunais e loucas! Crescendo e avançando em tenebroso carrossel, cuja
escuridão não tardou que tomasse conta de céu e do mar. Tornando a solidão à
minha volta, ainda mais sinistra e negra. Nem sequer me permitindo descortinar
os contornos da própria canoa. Sim, tão intensa é a sua ondulante
negridão!... No entanto, mesmo diluído nas suas sombras, não me sinto
perdido nem desesperado. Invade-me uma sensação de profunda melancolia.
Sou como que possuído por uma espécie de sentimento sobrenatural de
aceitação mas que me obriga a ficar em permanente estado de vigília.
O mundo para onde estou sendo arrastado é um mundo de trevas, convulsivo
e fantasmagórico! Não é possível ser descrito por palavras: é mundo
intemporal.... Noite tormentosa, infinita!... Agitação! Escura noite!
Imensidão!.. Nuvens cerradas, espessas e baixas, que parecem tocar as montanhas
e os contornos das não menos escuras águas!... Não sei como lutar
porque tudo quanto possa ameaçar-me, remove-se em torno de mim na mesma imensa
negridão!.. .Sei apenas que não posso desistir de viver e, por isso, vou
continuar atento enquanto o meu coração palpitar.
A minha canoa mantém-se
imperturbável...
Está totalmente alheia à grande
incerteza
e aos muitos fantasmas que me
povoam a alma...
À inquietude que absorve o meu coração.
E voga pelo negrume varrido da noite
E voga pelo negrume varrido da noite
como se nada
tivesse a temer!...
É admirável a
sua altiva galhardia!
Parece
conduzida por uma estranha força
que a
leva a um ponto preciso da vastidão!...
Mas, oh Deus! Eu queria dormir!...
Necessitava
de descansar, adormecer!...
Cair em sono agora e acordar ao
amanhecer!
Ser como o rude barqueiro,
que ao fim de uma
longa jornada,
dura e sem descanso,
encosta o seu barco à margem e
dorme...
embalado pelo sussurrar da ramagem que o
envolve!...
Mas
aqui, é o mar a bramar! a bramar!...
É
o mar sem fim e sem fundo!...
Não há margens, nem portos de
abrigo!..
É a noite eterna!... É um
outro mundo!..
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