Algures no Golfo da Guiné, 20 de Novembro de 1975
Diário de Bordo 1- Hoje
é manhã do 31ª dia. Passei uma noite incómoda. Não consegui conciliar o sono.
Fiquei praticamente sempre acordado. O mar muito cavado, fortemente cavado!
Devido possivelmente a trovoadas vindas do sul ou de outras bandas...Próximo da
canoa apenas choveu ao fim da tarde de ontem... A noite pôs-se normal, até com
aberturas de luar muito bonitas!... Eu é que não consegui dormir em toda a
noite. A pensar na minha vida... Até agora tenho pensado no mar, nas
dificuldades a vencer no mar...mas esta noite estive a pensar em
terra.... Porque, efetivamente, eu tenho de ter um destino...certo... Comecei a
pensar o que é que eu irei fazer agora... Portanto, esta noite os meus
pensamentos ocuparam-se no que vai a ser a minha vida em terra.
A ideia de que, dentro de
pouco tempo, hei-de alcançar chão firme, já não é bem uma interrogação; a
partir de agora é quase uma certeza. Talvez pelo facto de, quando em quando, se
me depararem, aos meus olhos, no horizonte difuso, os seus contornos.
Claro que a vida a bordo não melhorou de maneira alguma. . Porém, o meu
cérebro, que até agora tem vivido numa constante preocupação com as
dificuldades da minha sobrevivência no mar, estranhamente, passou a
ocupar-se mais no que será a minha vida quando chegar a terra. Havia-me
esquecido de pensar em tais questões. Sinto-me mais na pele de um
vagabundo de que um náufrago e preocupa-me o meu futuro.
De facto, tenho concluído
que esta vida errante, não é nada boa.Terei que viver uma vida mais tranquila e
menos sobressaltada. Mas como?!...O que é que eu irei fazer quando chegar a
terra?!..Como irei ser recebido e que será depois a minha vida?!... .Estive
quase 13 anos em São Tomé. Tudo quanto ganhei foi gasto nos meus caprichos
aventureiros. Não trago um centavo comigo. De resto, eu já estou habituado a
uma certa forma de vida incerta e cheia de dificuldades e vicissitudes. Parti
para São Tomé, com a idade de 18 anos.
A princípio fui para ali
trabalhar numa roça mas comecei por não me adaptar, lá muito bem. O
administrador da roça queria que eu tratasse os trabalhadores negros por tu. Dizia ele que era
"a maneira de guardarem respeito ao branco" e de eles
trabalharem". Evidentemente que não me adaptei... E o dinheiro que me
pagavam ao fim do mês, comparado com as promessas que me fizeram, depois
de feitos os descontos para alimentação e pagamento da viagem, não me ficava
quase nada. Claro que não
fui para São Tomé com o objetivo de fazer fortuna, mas esperava que ao menos me
atribuíssem uma compensação humanamente digna. E então os pobres trabalhadores ?!... Autênticos
escravos!..
Por força dessa minha
inadaptação, o meu passa-tempo predileto, era então o mar...Praticamente, desde
que ali desembarquei, vi nele uma espécie de refúgio. Qualquer coisa onde me
sentia livre de todos os aborrecimentos. Um horizonte sempre aberto e imenso,
que me abria as portas a uma incontível ânsia de ir mais além na procura de uma
felicidade imaginária que naquele meio ambiente eu não encontrava.
Por isso, sempre que
podia, frequentava as belas praias de São Tomé. Comecei por manter estreitos
contactos com os pescadores, homens corajosos e simpáticos. Aprendi a equilibrar-me nas suas
canoas, começando primeiro por dar pequenos passeios de praia em praia., até
que por fim veio a paixão - E, a
par disso, também outras interrogações: perguntava-lhes se já tinham ido de
canoa à Ilha do Príncipe, respondiam-me que "só canoa de gente de
feitiço" é que o tornado a levava ao Príncipe ou ao Gabão; "outra,
vem gandú (tubarão), vira a canoa e come-lhe a perna" . Achava que era uma
superstição, sem fundamento e havia que desfazer esse fantasma: concluía
que, se o tornado arrastava para lá a canoa, involuntariamente, também lá se
podia ir por vontade própria. Face a essas lucubrações, comecei a pensar que,
um dia, eu devia fazer-lhe essa demonstração - A par disso, questionava-me
também sobre o seu passado longínquo: se não teria sido através das canoas que
os seus ancestrais não teriam vindo do continente africano.
Foi, pois, graças a esses
contactos com os pescadores santomenses, quando trabalhei na Roça Ribeira
Peixe, que iniciei a minha aprendizagem sobre a técnica da arte de
navegar nas suas frágeis pirogas e que o espírito de aventura marítimo, se me
foi desenvolvendo. E, alguns anos depois, simultaneamente, o
desafio da escalada ao Pico Cão Grande, que ali se ergue, numa zona onde
existem várias aldeias dos hábeis pescadores "angolares".- Na
verdade, não é pois a riqueza material que mais me interessa. Mas também
não é o desejo de me tornar famoso, a razão pela qual tenho arriscado a vida.
Sim, porque, excetuando esta última viagem marítima, tenho
partido clandestinamente, sem dar conhecimento para onde vou e o que vou
fazer. Sem o apoio, aprovação ou a reprovação de quem quer que seja.
Não tenho meios de
comunicar com ninguém. Disponho apenas da orientação de duas bússolas: uma que
trago no pulso, como se fosse o meu relógio, outra fixada junto à ponte
da proa. Se morrer afogado no mar eu tenho a certeza que ninguém vai saber o que me aconteceu ou chorar
nesse momento a minha falta. Mesmo a família, da qual tenho estado
bastante ausente. A minha mãe faleceu, dois anos depois de eu ter chegado a São
Tomé . Sei que o meu pai, os meus dois irmãos e a minha irmã me não
esquecem. Mas a vida deles e de todos os meu familiares, é como se fizesse
parte de outro mundo...Quem é que poderá imaginar onde eu agora estou e a fome
que me tortura e a solidão em que me encontro? Amo a natureza e vejo no
mar a mais íntima forma da sua aproximação. Cada vez mais me sinto
atraído pelo seu misterioso canto. O isolamento é uma forma de o encontrar, de
mergulhar na sua indescritível magia. Sim, fisicamente, sou para aqui um
farrapo humano. Uma criatura desprezível, as forças vão-me
faltando. Sem nada com que matar a fome. No entanto, talvez por isso mesmo,
mais purificado, mais sensível e fortalecido espiritualmente. Sim, porque o mar
não é só esta imensa vastidão. O mar é vida. Umas vezes meigo, suave, dócil,
belo e acariciador; outras vezes, cruel, impiedoso, impaciente e infernal
Agora, nesta manhã
acinzentada, não será bom nem mau, nem triste nem alegre: ondula, freme,
move-se numa turbulência que nem me agrada nem me desagrada. Não me encanta nem
desencanta.. É realmente terrível o seu poder. Não é egocêntrico. Não vive
apenas para dentro dele. Transmite e afeta todo o meu estado de alma. É pena
vê-lo agora encrespado, tão sisudo e não tão comunicativo como costuma ser.
Mesmo assim, faz-me sentir próximo dele. Embora, com outras palavras, é o que
vou já transmitir para o meu gravador - O fiel registo dos meus
sentimentos, que guardo como se fosse o cálice de um sacrário no meu baú de
plástico, um velho contendor do lixo, que o meu amigo Germano Castela, fez o
favor de me dispensar.
Diário de Bordo 1 (continuação) Esta manhã aparece com o mar
relativamente cavado, com uma certa carneirada. O céu nublado. Não
totalmente mas com nuvens escuras que ameaçam chuva. ..Um pormenor curioso a
que eu não fiz referência: na noite de ontem, eu tive oportunidade de observar
um eclipse total da lua.
A noite em que observei um eclipse total da Lua - Calculo que por volta da meia-noite - - O céu e o mar ficaram mais negros que nem na mais negra noite de tempestade - Não se enxergava um palmo à frente do meus olhos - Nem sequer os contornos da piroga - Durante quase hora e meia foi como se o mundo não existisse. O mar e o céu pareciam unidos nas mesmas sombras e pela mesma escuríssima cortina - Senti uma profunda solidão! - Tanto mais que havia mais nuvens que abertas, que por sua vez iam também eclipsando as estrelas e tornando-as ainda mais longínquas - Além de que o mar permaneceu toda a noite muito cavado. Mas não poderei dizer que fosse uma noite muito anormal - Pior teria sido se chovesse. Direi que a observação daquele Eclipse lunar foi apenas um episódio em mais uma longa noite de vigília e de reflexões na minha vida.
18/Novembro/1975fonte de dados | Ocorre um eclipse total da Lua, sendo observado em Fortaleza pelo Observatório Herschel Einstein, cio astrônomo Cláudio Pamplona.Portal da História do Ceará |
A noite em que observei um eclipse total da Lua - Calculo que por volta da meia-noite - - O céu e o mar ficaram mais negros que nem na mais negra noite de tempestade - Não se enxergava um palmo à frente do meus olhos - Nem sequer os contornos da piroga - Durante quase hora e meia foi como se o mundo não existisse. O mar e o céu pareciam unidos nas mesmas sombras e pela mesma escuríssima cortina - Senti uma profunda solidão! - Tanto mais que havia mais nuvens que abertas, que por sua vez iam também eclipsando as estrelas e tornando-as ainda mais longínquas - Além de que o mar permaneceu toda a noite muito cavado. Mas não poderei dizer que fosse uma noite muito anormal - Pior teria sido se chovesse. Direi que a observação daquele Eclipse lunar foi apenas um episódio em mais uma longa noite de vigília e de reflexões na minha vida.
Devo estar
mais próximo do continente africano. Já parece impossível, não é ?!...Depois de
tantos dias de ter largado e não ter atingido a costa africana!... Claro
que as trovoadas têm-me feito andar para aqui às aranhas de um lado para
o outro!.... Vou pôr a vela, já. A ver se atinjo, hoje, finalmente,
terra!
Quando o mar
está calmo a canoa não tem tanta velocidade. É natural que a noite passada
tenha andado bastante.... devido à força que as vagas lhe imprimiram.
Diário de Bordo 2- É quase meio-dia e ainda não consegui
navegar nada! Já por três vezes tentei pôr a vela.... e não há vento!.. Quer
dizer, aqui, quando há trovoadas há vento demais e é impossível navegar!
Quando não há trovoadas, há calmarias e o mar é um lago!... Agora o mar não dá
qualquer hipótese, visto não haver força de vento suficiente para impulsionar a
vela. É irritante!...Sinceramente!... Esfomeado que estou!...
Encontro-me
para aqui próximo, muito próximo!... A canoa a meter água cada vez mais!....
Isso preocupa-me um bocado. A fraqueza a invadir-me o corpo...Não tenho anzóis
que deem para pescar os peixes que aqui há. Os anzóis que disponho são para
peixes muito grandes e o nylon é fraco. A situação não é desanimadora mas
também não é muito agradável. Tenho que ter calma. Muita calma! Mas,
sinceramente... Tudo tem limites...
Diário de Bordo 3 Agora,
neste preciso momento, talvez quatro horas da tarde, apareceu um enorme! um
gigantesco tubarão! Mesmo gigantesco!! Estava deitado no fundo da canoa.... e
senti roçar!... Depois vi logo que era um tubarão! Pois investiu várias vezes
contra a canoa!... À proa! À popa! Até que eu agarrei no machim e
consegui dar-lhe umas machinadas na cabeça! E então fugiu!...Não sei onde
é que ele agora se encontra! Mas, efetivamente, é um monstro!!.. Uma coisa
pavorosa!... Um monstro autêntico!... A acompanhá-lo havia uma série de
peixinhos!...
Diário de Bordo 4- Acabei
agora de pescar um peixe à mão!...Andava aqui... Consegui!...O gajo,
mesmo cortado, estava a escapar-se! Era o que faltava!... Claro que estou a
comê-lo cru!... Sabe-me perfeitamente bem!...
Diário de Bordo 5 - Estou
satisfeito!...Já comi o peixe cru e soube-me bem!...Estou a ver
perfeitamente contornos da costa africana, que ainda é um bocado
distante....
Finalmente
consegui pôr a vela e parece que há um ventozinho que me vai tocar para
lá...Veremos quando...
Diário de Bordo 6 Esta é uma melodia (melodia africana) que eu gosto
imenso!...Aqui no mar sabe tão bem!... Realmente, há trechos musicais que,
nestas circunstâncias, são mesmo muito apreciados...
.
Diário de Bordo 7 É
pura e simplesmente irritante!... Não há vento absolutamente nenhum!... Quer
dizer, não posso velejar e tenho a costa, tão próxima! ...É realmente muito
aborrecido!
Diário de Bordo 8.
Já se pôs o sol do 31º dia. O dia esteve praticamente de calmaria!... Ligeiras
brisas... que não deram para navegar...
Voltei apanhar uma ave. Pousaram duas: uma à proa e
outra à popa. A outra fugiu!... Tenho-a aqui para a comer amanhã....
A costa africana. sei que não fica distante... É
natural que esta noite tudo se modifique... Há uma formação de nuvens muito
escuras a sueste, que devem trazer chuva, com certeza...Portanto, é isto apenas
que tenho agora a dizer.. E que amanhã outras novidades melhores possam surgi
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