Algures no Golfo da Guiné, 22 de Novembro de 1975
Foi há 37 anos... O
relato do meu diário, relativo ao 33º dia (o gravado, sublinhado a azul) foi
registado precisamente, neste mesmo dia do mês, mas já foi há muito tempo -
Muitos que me irão ler, ainda não tinham nascido. Perguntar-me-ei, hoje:
o que seria agora o meu corpo tragado no fundo do mar?!...Se calhar - por entre
as algas e os sedimentos daqueles fundos abismos, sobre os quais voguei -
já nem sequer restasse a sola das minhas sandálias.
Sim, estou vivo.
Dou graças a Deus! - Imerso pelo rolar terrível das ondas e do grito
afogado do vento, à deriva em tão minúsculo esquife e ainda ter
sobrevivido?!...Só por Obra e Graça de Deus e por Divino Milagre!... - E,
todavia, não sou católico, mas reconheço que me valeu nunca ter perdido a confiança,
ter sempre lutado e também nunca ter perdido a fé, que me foi ensinada em
criança - De facto,, já não sou o tradicional católico, mas
acredito em algo sobrenatural.
Se o ter nascido é
já por si um milagre de Deus, - pois quem é que ainda duvida que haverá
milagre maior e mais maravilhoso de que um nascimento ou a reprodução das
espécies?!... No entanto, o ter resistido, a tão dura provação - e o leitor
há-de ver que as maiores tormentas, por que passei, ainda estavam por vir
- sim, não sei se não será menos espantoso como o milagre de a minha mãe
me ter parido numa noite fria de Janeiro, no seu modesto leito habitual e sem
parteira.
NOITE NEGRA,
LONGA E TEMPESTUOSA E DIA CHUVOSO, CINZENTO E TRISTE - MAIS UM LONGO E
TORMENTOSO CALVÁRIO DE FOME. E DE INCERTEZA.
A manhã
amanheceu baixa e plúmbea: despertou com uma enorme tristeza de lágrimas.
Ou será porque sou eu que me sinto imensamente triste?!... O mar
ressoa a sua fúria nervosa, ainda não se acalmou, e o sol, perdido que parece
estar lá pelos confins do seu habitual giro, dificilmente hoje irá fazer
a sua aparição e mostrar a pino o esplendor do seu sorriso equatorial.
A noite foi
longa e tumultuosa, com ondas intermináveis! Cada minuto tinha a dimensão da
imensa negridão e, cada hora, mais parecia uma eternidade. Ondas rugidoras e
lúgubres, ameaçavam cuspir-me a todo o momento para o sinistro sorvedouro, que
se ocultava e estendia numa compacta massa tumultuante. Horas intermináveis,
horas terrivelmente infinitas! Flutuando perdido ao sabor do rolar de vagas
furiosas. Mas, finalmente, tenho um novo dia pela frente!... Sinto-me muito
fraco e abatido, mas felizmente ainda estou vivo - Assim o testemunha o meu
diário gravado, que defendo do mar no meu baú - um antigo caixote do lixo
Diário de Bordo 1 Passei uma noite,
exaustiva!... De chuva... O mar extremamente agitado e muito perigoso!...A
manhã continua com um mar cavado, com muita ressaca!...Há vento!... E eu sem
ver a costa de África... Estou muito fraco!... Muito fraco!... Vou tentar
colocar a vela... Vou ver se consigo fazer alguma coisa neste mar
extremamente difícil e perigoso!
Mas é-me quase impossível
navegar. Se ao menos dispusesse de um remo capaz!... Perdi o que tinha com o
tornando na primeira noite - perdi quase tudo. E o que improvisei, é demasiado
tosco. E o mau tempo, próximo da costa, é muito mais perigoso de que no alto
mar... Continuo sem qualquer sustento. A única coisa que já meti à boca foram
umas folhitas de umas ervas que encontrei vogando à superfície do mar. Água das
chuvas não me tem faltado e então agora até demais., porque, desde há umas
largas horas que ainda não parou de chover. Estou para aqui escolhido a um
canto da popa da canoa, quase imóvel, repassado pela humidade e arrepiado pelo
frio.
Tenho urinado com regularidade
mas estou preocupado porque já nem me lembra que tivesse feito uso do pequeno
balde de plástico para evacuar. Claro que eu sei que não tenho metido quase
nada na barriga, mas precisamente por isso é que me aflijo, que às vezes os
intestinos até deixem de funcionar.
A BÚSSOLA
PERMITE-ME SABER PARA QUE PONTO NAVEGO OU VOU SENDO ARRASTADO - MAS, COM O CÉU
ESCURECIDO E CHUVOSO, SINTO O PESO DO TEMPO, A SUA ADVERSIDADE MAS DESCONHEÇO A
QUE HORAS ANDO
Diário de Bordo 2 Não sei que horas serão
da tarde do 33º dia. A verdade é que até agora tem chovido bastante!... Há
bocado não estava a chover... Estava o mar bravo!... Mas de um momento para o
outro passou a chover... Só chuva!... E vento!...
Diário de Bordo 3 Agora volta a haver uma
certa calmia... Mas já vejo ameaças de chuva no horizonte... Ainda
não comeram nada... Aliás, comi agora um bocadinho do resto do tubarão (pescado
há vários dias) que está estragado praticamente... Estou cheio de
fome! Não consigo pescar!... Não vejo terra... Estou realmente bastante... não
direi desmoralizado... mas abatido psicologicamente.
O
tubarão é dos peixes, cuja carne não aguenta muito tempo - Mal se pesca, não
tarda a que seja uma carcaça em decomposição - No mesmo dia, pesquei
dois: um deitei-o fora, o outro guardei-o para iscas e para o que desse e
viesse - Mas gera um autêntico fedete. Quando mastigo alguns bocaditos -
roendo as barbatanas, sim, é o que tenho feito, quando o vazio do estômago se
me torna mais insuportável. Não fecho os olhos, mas fico com uma azia
tremenda.
Estou convencido que
alguns ataques dos tubarões, que de volta e meia se atiram como torpedos contra
o costado da canoa, se devem a isso mesmo: ao cheiro que os atrai. Pois os
tubarões veem mal mas têm um notável olfato.
Claro que não me sinto
desmoralizado, pois continuo com a convicção de que hei-de chegar a terra. O
que eu desconheço é quando a poderei alcançar. Sim, mas,
fisicamente, faltam-me as forças, estou muito fraco. Já não tenho a mesma
energia que tinha quando deixei São Tomé. A minha canoa é comprida mas
frágil – Não tem mais de que um metro de largura, por 60 cm de altura, 40 cm
dos quais, estão abaixo da linha de água. Foi talhada num madeiro, cortado na
floresta, próximo da Vila das Neves, da praia donde parti.
Diário de Bordo 4 Em relação às correntes, em
vez de de me aproximarem para norte, estão-me a levar ao longo da costa de
África... Irei ter provavelmente ao recanto do Golfo do Biafra...Não vejo outra
alternativa... Agora o que eu não sei é o tempo que irei demorar.
Esta manhã, a canoa,
ficou alagadíssima!... devido às chuvadas!... Estou exausto, digamos assim.
Claro que não me sinto
vencido ou resignado à minha sorte, e vou lutar, lutar, enquanto puder. Mas a
verdade é que, dormir no fundo de um madeiro escavado, flutuante e encharcado,
submetido a constantes balanços, a rolar a rolar e à deriva num mar escuro e
encapelado, numa confusão tremenda, se, já de si, é um tormentoso
calvário, que não me dá tréguas, nem descanso, quem é que, cheio de fome,
pode ter o mínimo de repouso e de tranquilidade, ter um sono reparador,
com o estômago completamente vazio?!... É que, além de toda a incerteza
que me oprime, também o estômago se me contrai , num horrível sofrimento!
Fazer jejum, de vez em
quando, até pode ser saudável, mas, sendo no mar e prolongado, é muito
doloroso!... Desgasta e abre o apetite - E, então, como eu
lhe poderei dar resposta, não tendo alimentos comigo, nem tendo conseguido
pescar?!... Sim, a fome, aguça o engenho, mas seguramente que não é a melhor
companheira para a tranquilidade do corpo e do espírito
Oh, mas quem me dera
agora recuar àquela hora ensolarada e brilhante da manhã, em que deixava a
linda praia da Vila das Neves, envergando uma simples t shirt, de
calção e descalço, empurrando a minha canoa, com todos aqueles meus amigos, que
me ajudavam a arrastarem-na para o mar.
Eu a receber, de encontro
à minha face e ao peito, a encher os meus pulmões, aquele
bafo quente e acariciador, aquela doce maresia com o sabor mesclado de sal e
dos odores perfumados da margem luxuriante, caminhando e pisando as
frondes (as andalas) dos coqueiros, enterrando os pés naquela areia negra e
rugosa, escorregando nalguns dos seus gogos reluzentes, que pareciam cantar,
com o vai e vem das ondas, com o marulhar carinhoso das águas, como que
recebendo-me, festejando e participando comigo, no mesmo prazer e alegria, no
mesmo sentimento comum de aventura e descoberta, que tão intensamente me
possuía!
Prazer de total e
pura entrega a um mundo maravilhoso e sagrado, às forças brutais e
naturais dos elementos, rendido à sua face sedutora e ameaçadora! Ao mundo
primitivo e original da vida!... Ciente de que ia ao encontro de uma vasta
superfície líquida, cujos horizontes se mantêm, continuamente, tão próximos,
como distantes e inatingíveis... Mas, por isso mesmo, num permanente desafio de
deslumbramento, despojamento e descoberta - Sim, não levava sequer
um centavo no bolso. E para quê ser escravo do dinheiro?.. Era como se fosse em
demanda de um Verdadeiro Mundo Novo, mais divino e mais puro.
Ah! que sensação de
liberdade! Que momentos mais indescritíveis aqueles, que se me abriam aos
meus olhos, ávidos e ansiosos! Irmanado ao mar, atraído pelo prodígio da
sua grandeza e a vertigem do seu fascínio!.. Oh, como aquele oceano se
me revelava tão vasto, tão azul, lânguido e tranquilo! – Tantos sentimentos e
tão belos!.. Tantas emoções, que agora recordo mas que parecem já tão distantes
e arredias de mim.
Oh, mas embora longínqua de mim, como posso eu esquecer-me dessa esplendorosa manhã! Cuja harmonia e beleza, tão calorosamente fazia pulsar meu coração!... Não de quem pertencesse a um país ou a uma pátria, ou mesmo partia de uma ilha que já era soberana e independente, onde tive todo o apoio e carinho para levar a cabo esta minha aventura. Não, esse é um sentimento e uma gratidão, que jamais se diluirá, que guardarei para sempre num cantinho especial do meu coração...
Na verdade, o que então
sentia, como que a fluir febrilmente na minha mente e no meu peito,
era a sensação de que o sangue que me corria nas minhas veias, era o
mesmo todos os peixes e de todas as aves, que esperava encontrar na minha jornada
pelo mar fora, o mesmo de todos os homens, de todos os seres e de todas as
espécies, de cujo mundo me separava. Era como, se eu próprio, o
vagabundo anarca e lascivo, que, partindo, praticamente sem rumo e sem
destino, já não pertencesse a parte alguma da Terra e tivesse, como única
pátria todo mundo e toda a humanidade!...
E, por estranho que
pareça, o que é que eu agora sinto, nesta manhã cinzenta, turbada e
triste?!... Sinto que tudo isso se me desvanece com a angustiante e
amarga sensação, de que, mais de que me sentir um apátrida, sou
afinal um proscrito, a criatura mais esquecida da Terra inteira!... -
Ninguém sabe onde estou, nem eu mesmo sei onde me encontro ou para onde
vou.
Diário de Bordo 5 - O céu está muito carregado e parece quase noite. ...Sinceramente,
sinto-me muito isolado!... Alagado completamente!...
Estou exausto!... Neste momento apetecia-me chamar ...
Pai!...Meu pai!... Afinal, você tinha razão!.... - Porquê?!... Meu
filho!...
Estou para aqui!... Não estou desiludido!... Tenho fé
que hei-de chegar a terra!.... Mas, sinceramente... tenho tido tanta calma!...
Tanta perseverança! ...No meio de tantos perigos... De tantas dificuldades!...
Talvez já não existisse... Mas... eu hei-de chegar a terra.... Estou par aqui
perdido.... nesta imensidão! Cinzenta!... Neste mar acinzentado... Nesta
vastidão!...
Esta tarde vi grandes toras!!... Grandes Paus!... Tábuas!... E eu confundia-me com isso...Como um ser desprezível!... Talvez como esses paus à deriva... a mesma coisa.
Confesso que já começo a ter
algum receio que uma ou outra dessas enormes toras, de tamanhos descomunais,
que aparecem e desaparecem à tona das ondas com incrível rapidez, se precipitem
de encontro à minha canoa e a desfaçam. De dia ainda as vejo e ainda posso
acautelar-me mas de noite é que eu não consigo localizá-las. Também existe a
possibilidade de ser abalroado por um barco mas estes raramente os vejo e as
toras já vi muitas!
Realmente, nunca vi o mar
assim tão sujo como agora. Desde há uns dias para cá, tenho observado com
mais frequência essa sujidade. É certamente por me estar a
aproximar do recanto mais setentrional do Golfo da Guiné. Pois é para
aqui, com certeza, que vai parar toda a sorte de detritos e madeiras, que são
despejadas pelas águas dos estuários. E depois também há os poços de
petróleo. Pois também tenho visto muitas manchas de óleo, grânulos de
crude, os mais diversos objetos de plástico, esferovites, raízes - Quando vejo
uma folha verde e a posso apanhar, levo-a imediatamente à boca.
DEPOIS DAS GRANDES CHUVADAS O
HORIZONTE FICA MAIS DESCOBERTO E O MAR COSTUMA ACALMAR - FINALMENTE, DE
NOVO CONTORNOS DA COSTA AFRICANA OU DA ILHA DE BIOKO
Diário de Bordo 6 - O fim da tarde está-se a pôr
suave..O mar já não está tão agitado como esteve....Não chove.... O céu está
brusco... Nublado... Apenas descoberto a poente...
Tive agora a felicidade de vir nítidos contrastes da costa de África a Norte e a Este... Que me dão a impressão de uma grande serra! De uma montanha!... Se a vista não me falha.... Portanto a distância não é muita.... Mas pode ocupar-me ainda o dia de amanhã...
Esta tarde , como já tive oportunidade dizer.... foi uma tarde bastante aborrecida... Por várias vezes choveu torrencialmente!... Alagando a minha canoa....
Como ainda não comi praticamente nada, senão umas barbatanas do tubarão... uns bocaditos para mitigar a fome....estou cheio de fraqueza....
Tive ocasião de ver muitos paus, muitas tábuas. também à deriva como eu... E, de vez em quando, o mar com manchas de óleo... O que me leva a crer, portanto, que eu estava a ser arrastado para terra... Porque o mar... as coisas não ficam!... Vão ter a terra... Estou convencido, pois, que hei-de chegar a terra.
Diário de Bordo 7 . - Espero passar uma noite mais ou menos descansado... Não sei... Não sei como será... Peço só que não chova.... Porque quando chove é muito chato!... A gente fica todo molhado... É muito aborrecido!.
Neste momento o poente apresenta um panorama bonito!... O sol por entre nuvens!... É muito agradável neste momento!... Na altura de ver o sol a poente... De resto, o céu mantém-se cinzento e o mar igualmente .
Diário de Bordo 8 Segundo os conhecimentos que tenho, estou convencido
de que posso sobreviver mesmo só a água... Durante alguns dias... Portanto,
sobre este aspeto, estou mais ou menos conformado.
E,
enquanto a tarde declina, com o sol a espraiar os seus últimos raios num
ocaso esplendoroso e tingido por um vermelho de sangue, vou-me abstraindo
de todos os pensamentos e ideias funestas que durante a tarde me perturbaram.
Já nem penso nas palavras que ainda há pouco me conformavam. Só vejo raios de
esperança e de luz. Estou completamente abstraído de tudo o que me tem
preocupado. Apesar da enorme fraqueza que me desgasta e destrói e de ter o
corpo cheio de chagas pela humidade, tal como o de Cristo, depois do suplício
na cruz, mesmo assim, sinto reviver dentro de mim uma infinita ânsia de vida.
Apenas concentro a minha atenção para as bandas onde o sol se esconde. Só
contemplo esses raios que se estendem até mim, sobre a vasta planura do
imenso círculo que me envolve. Donde recebo uma sensação de paz, de
majestosa quietude e devota serenidade.
.Mas
por pouco tempo - O crepúsculo nestes mares é rápido e, entretanto, a noite
adensa-se: a oriente e a ocidente: o cenário já não é o mesmo. Tudo
mergulhou sob uma abóbada densa e sombria. Por todo o lado se estende uma
vasta solidão.Há um silêncio absoluto que contrasta com agitação do mar pela
tarde adiante.Não sei para onde vou sendo arrastado. Mas também não adianto
preocupar-me. Vogo à flor das águas, que tanto me poderão arrastar para o
abismo, como para um acolhedor recanto, um tranquilo porto de abrigo e me
salvar..Só amanhã, à hora do sol nascer, quando um novo dia surgir é que eu eu
poderei saber.
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