Na costa da Ilha de Bioko - ex-Fernando Pó |
Após algumas horas na margem da pequena praia, contrariamente ao meu desejo inicial, que era o de acampar por aqui alguns dias, até me refazer da minha debilidade física e ao mesmo tempo aproveitar a generosa dádiva, que tão idílica paisagem, parecia querer oferecer-me, como recompensa de tantas privações e sacrifícios, concluo que o mais prudente era abandonar o lugar, ir ao encontro de um local habitado e pedir assistência às autoridades do país, a que pertencesse - Tinha acostado na maior ilha da Guiné Equatorial, mas por enquanto ainda era para mim uma terra desconhecida e ignorada. - Não duvidei, pois, que o mais aconselhável fosse mesmo o de virar de vez as costas ao mar e subir a floresta. - Mas, como?! - Por onde caminhar?!.... Valendo-me de uns apontamentos redigidos nos dias em que estive preso e de outros que escrevi algum tempo depois de ter voltado a Portugal, eis a descrição que passo a fazer desta minha segunda odisseia, agora terrestre
DEPOIS DE SOZINHO NO ALTO MAR, AGORA SOZINHO A CAMINHAR PELA FLORESTA ACIMA - (reconstituição com algumas imagens de S. Tomé)
Em S. Tomé, lembrando as aventuras no mar |
Em S. Tomé, o mar é todo igual |
Vai ser o cabo dos trabalhos sair daqui. Tanto num sentido como do outro, não se descobre uma nesga de areia: a floresta desce, lá do alto até às rochas batidas pela rebentação. Não se descobre um trilho ou uma única clareira mas não tenho outro remédio senão pôr os pés a caminho, antes que se faça tarde e a noite me surpreenda no interior deste espesso manto verde. Ficar aqui o resto da tarde, é uma perda de tempo inútil, parece-me desaconselhável – Adiante!... Há que arriscar!...
Em S. Tomé. numa vereda semelhante |
Livre como um passarinho mas com uma grande diferença: de um passarinho, que, além de não poder voar, mal pode caminhar.
Despojado de tudo, sem dinheiro no bolso, sem outra fortuna que não a riqueza da dolorosa experiência por que acabava de passar - Sim, porque a maior riqueza espiritual, não advém do ócio, de uma vida cómoda e sem riscos mas a que resulta das adversidades que se vencem - Sim, e uma aventura no meio das ondas do mar, tal como eu a conheci, propicia sentimentos. emoções, estados de alma, muito intensos e muito variados, impossíveis até descrever! E este lastro, não se perde, fica para toda a vida - Por isso, não se pode ser poeta, não se pode aspirar a estados elevados de espiritualidade, sem o lastro dos grandes sacrifícios, das privações. Ou não é este o maravilhoso exemplo que nos legou o próprio calvário de Cristo?... - Eu também vivi um calvário imenso no mar. Felizmente, sobrevivi, tive sorte, fui bem sucedido. Mas bem podia ter ficado no fundo do mar ou ter sido devorado por algum tubarão, se me tivesse resignado, perdido a fé e a confiança, se não tivesse lutado.
E agora aqui me encontro no principio de um outro calvário, que tenho pela frente, amparado a um tosco pau. Mesmo a custo, lá vou caminhando e cambaleando: sem outras armas que não sejam as de um coração ávido por encontrar um rosto amigo.
O céu continua muito nebulado e a noite pode surpreender-me no meio da floresta. Mas, para onde quer que volte, vejo-me envolvido por um espesso labirinto de verdura, fresca e pujante. Respira-se um ambiente impregnado por uma autêntica miscelânea de vapores aromáticos, com sabores a raízes, cheiros a barro, a húmus, flores e frutos verdes, maduros, podres, de ervas e de folhagem variada, que me inebria os sentidos de intensos perfumes, povoado de árvores tropicais, enormíssimas, das mais variadíssimas espécies.
Em S. Tomé - subindo uma vereda junto à costa |
S. Tomé |
Entretanto, para minha agradável surpresa,
depara-se-me, inesperadamente, um género de vegetação com uma fisionomia
completamente diferente: entro numa enorme clareia, onde existe uma plantação
de mandioca, por entre plameiras, diversas árvores selvagens e bananeiras. A subida é agora mais suave. E, um pouco mais à frente, até descubro um carreiro de terra batida. Sigo-o em ziguezague.
Sinto-me agora mais aliviado, pois acredito que me há-de levar a um lugar
habitado.
PLANTAÇÃO DE CACAU
S. Tomé |
O panorama não me surpreende, pois é
muito semelhante ao das plantações dos cacauzais, em S. Tomé. Se não fosse a distância percorrida, os
tormentos por que passei, através de tão extenso braço do mar, diria que tudo,
afinal, não passou do pesadelo de uma longa noite mal dormida, de um mau sonho,
visto que até parece que, subitamente, fui transportado para uma roça de S.
Tomé.
Mas então que lugar poderá ser este? – Nem quero imaginar que me encontre na
Ilha do ditador Macias!...Bom era que fosse a Nigéria, onde aportei
na anterior viagem:
Após a travessia que fiz de canoa àquele país, fui detido, durante 17 dias para averiguações mas não me trataram mal .
Após a travessia que fiz de canoa àquele país, fui detido, durante 17 dias para averiguações mas não me trataram mal .
No meio de múltiplas cogitações, abrando o
passo. Sinto uma certa inquietação crescer aos poucos dentro de mim. A
incerteza do lugar preocupa-me de algum modo. . Estou desejoso de dissipar as
minhas dúvidas.
Porém, e após ter caminhado algumas
centenas de metros, por entre a ramagem dos cacaueiros, eis que começo por
avistar um pequeno aglomerado de casas.
A partir de agora, tenho absoluta
certeza de que, a qualquer momento, poderei ter várias pessoas à minha volta. Desconheço de que nacionalidade.
Não interessa. Sou um homem de aventura. Considero-me um cidadão do mundo. O
importante é que sejam criaturas humanas. Aliás, já vejo algumas pessoas a
andarem de um lado para o outro, lá ao fundo, num terreiro.
Presumo que já se tenham apercebido da minha estranha presença.Mostram um ar descuidado e natural. Acredito que se vão revelar minhas amigas. Afinal, é do que eu preciso: de amizade, calor humano. É do que me sinto privado nos longos dias do mar.
S. Tomé |
Presumo que já se tenham apercebido da minha estranha presença.Mostram um ar descuidado e natural. Acredito que se vão revelar minhas amigas. Afinal, é do que eu preciso: de amizade, calor humano. É do que me sinto privado nos longos dias do mar.
Roça - S. Tomé |
E, de facto, mal acabo de fazer estas
analogias, tenho ao meu lado esquerdo, a primeira casa: baixa, tipo moradia e
resolvo sentar-me na soleira da porta. Ao mesmo tempo que vários miúdos, se
juntam num semicírculo à minha frente, ora olhando-me, ora entreolhando-se, num
misto de espanto e quase mutismo, como se quisessem, através do meu silêncio,
decifrar o que me trouxe aqui, com este meu ar estranho, que certamente lhe
estou a causar, mas eu também não me
sinto menos espantado e não me atrevo a falar. Estou também demasiado emocionado
para proferir qualquer palavra. E, realmente, ninguém ainda ousou perguntar-me
nada.
Entretanto, de todos os lados, vejo encaminharem-se
outras pessoas, agora também adultas, na
minha direção, num misto de algum
alarido confuso. Observam-me, entreolhando-se, espantadas, pronunciando monossílabos no seu dialeto. Como
estou todo queimado pelo sol e de barba por fazer, devem supor que eu venho do
mar.
Começam então por me fazer perguntas que
eu não entendo. Como resposta, ergo a camisola e mostro-lhe a barriga, que está
quase metida para dentro, encolhida e vazia, como um fole encolhido. Ao mesmo
tempo que faço este gesto, simultaneamente perpassa à minha volta um murmúrio
de espanto. Toda a gente levanta a voz numa espécie de pasmo e murmúrio clamoroso.
Vejo que todos os seus rostos se mostram chocados e em muitos dos olhares reluz
a expressão de espanto e piedade de mim.
Emocionado, não me contenho e começo a chorar, pondo as mãos sobre o olhos para
não revelar o meu embaraço e as minhas lágrimas. Mas, compreendendo que venho
cheio de fome, há já quem venha junto de mim com umas bananas para me oferecer;
aceito algumas de boa vontade. Eu já mastiguei para aí vários frutos e o meu
estômago está demasiado debilitado e desacostumado para suportar grandes proporções
de alimentos. E esta boa gente também já compreendeu isso e houve quem me
pegasse pela mão para me encaminhar para junto das suas habitações e me
oferecerem a sua hospitalidade.
O LOCAL É A SEDE UMA FINCA (ROÇA) DE
FERNANDO PÓ.
Finalmente, já sei que terra é esta: o administrador,
já veio junto de mim e começou a
fazer-me perguntas em espanhol – Sim, depreendi imediatamente que estava na
Ilha de Fernando Pó. E também já sei que a praia onde deixei a canoa, se chama , Bokoko e
que pertence à propriedade agrícola onde
agora me encontro. Aqui não lhe dão o nome de roça mas de finca.
Confesso que estou muito satisfeito. Desde
que aqui cheguei, têm-me tratado muito bem. Afinal, tanto receio, não sei
porquê. Foi realmente uma tremenda asneira não ter aportado logo nesta ilha mal
me aproximei dela pela primeira vez. Estou a aguardar que as autoridades me
venham buscar. Já se pôs o sol mas já me informaram que só deverão chegar daqui
a algumas horas, portanto já de noite. Espero que sejam igualmente simpáticas,
tal como tem sido esta boa gente, que me acolheu com muito carinho e generosidade.
O administrador já me
levou a sua casa, onde tomei um duche e me serviu à mesa um saboroso prato de
comida, de arroz com atum de conserva.
Mas, apesar de sentir um grande apetite, não quis ir além de umas garfadas, pois não posso
exagerar, enquanto me não habituar o estômago a outra dieta, que não a do jejum forçado e da fome, a que já vinha, tão duramente
habituado. Agora quer que eu o acompanhe à praia para lhe mostrar onde está a
canoa e trazer as minhas coisas: no telefonema que fez à polícia, foi-lhe dito
que querem que ele faça uma relação de tudo. E até da capa de
algumas peças de roupa, que trouxe comigo: quiseram-mas comprar mas eu
ofereci-as.
Senzala em S. Tomé |
Meu Deus! Eu, mal me posso mexer, ainda
ter de voltar lá em baixo ?!... A ter que descer e a subir outra vez a floresta!... Porque me não deixam descansar e vamos lá à
manhã, durante o dia?!... Mas o administrador insiste que são ordens da
polícia, que ele não pode desrespeitar e
tenho de o acompanhar: diz que conhece bem o caminho, que
não é difícil ir lá. Chama alguns trabalhadores, passa-lhes uma lanterna
para uma das mãos, já que, com a outra, pegam numa catana. E lá parto para outro calvário – Mas a descer,
até nem é muito difícil; o carreiro está desimpedido e limpo, cheio de voltas mas
transitável. Eu ainda me apercebi de uns metros dele, quando andei por ali às
voltas mas, ao meter-me pela floresta
adentro, perdi-o de vista.
Aqui o sol, põe-se, tal como em S. Tomé,
quase à mesma hora, pouco depois das cinco e meia. Agora, serão aí umas oito
da noite, estou de novo junto à margem da praia e a ouvir o marulho das mesmas ondas,
que para aqui me arrastaram, depois de um longo pesadelo, a desfazerem-se na areia
escura . À minha frente é a vastidão do mar e uma imensa escuridão – E, a
canoa, afinal, onde está?!.. Eu faço esta pergunta para mim, em silêncio, mas o
administrador fá-la de forma bem pronunciada, se bem que não de modo agressivo
– Sim, porque o que ali se vai descobrir, são apenas destroços – alguns destroços da
canoa, visto outros já andarem a boiar por vários lados da rebentação, situação que o deixa de algum modo incrédulo e confuso. Mas vai mesmo acreditar que é o
que resta da minha canoa: é que, aos destroços há os bocados de contraplacados, que continuam pregados nas partes
que não foram arrastadas; além disso estão pintados de vermelho e aqui não existe
esse hábito.
Localizado o contentor, com as peças da
roupa, que não tinha podido levar e que puxara para fora da praia, um dos homens, lá o pôs às costas e lá nos pusemos de volta
pelo carreiro acima. Agora, sem ter que me amparar com um pau, já que,
um dos meus acompanhantes, se
prontificou a puxar-me pela mão. Mesmo
assim, sinto-me derreado. Foi um enorme sacrifício, que fiz para regressar ao terreiro da finca e subir as escadas da casa do administrador, cuja
imediações da frontaria, já se transformaram numa autêntica romaria. Aliás, antes
de voltar à praia, já me havia apercebido disso, que havia sempre um magote de gente, nas
imediações da porta.
Todos os habitantes das senzalas, querem ver-me e conhecer a minha história. Tenho a impressão que não se tem falado de outra coisa, senão do branco que deu à costa numa canoa. Mostram-se muito admirados e cheios de curiosidade pela minha aventura. Quando passei por entre eles, antes de subir as escadas, não tiravam os olhos de mim, mirando-me dos pés à cabeça, como se fosse uma figura vinda de um outro mundo.
Todos os habitantes das senzalas, querem ver-me e conhecer a minha história. Tenho a impressão que não se tem falado de outra coisa, senão do branco que deu à costa numa canoa. Mostram-se muito admirados e cheios de curiosidade pela minha aventura. Quando passei por entre eles, antes de subir as escadas, não tiravam os olhos de mim, mirando-me dos pés à cabeça, como se fosse uma figura vinda de um outro mundo.
Às dez da noite
chega a polícia, que depois de um exaustivo interrogatório, me transporta no
seu jipe para os calabouços da esquadra - É o do que lhe vou falar na próxima
postagem
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