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domingo, 11 de novembro de 2018

Angola - Está de Parabéns! Festeja hoje 43º aniversário da sua independência - Estava eu com 22 dias de mar a bordo de uma piroga. Sozinho e à deriva no imenso Golfo da Guiné.


 PARABÉNS ANGOLA!   - HOJE FESTEJA 43º ANIVERSÁRIO DA SUA INDEPENDÊNCIA -   Estava eu com 22 dias de mar a bordo de uma piroga. Sozinho e à deriva no imenso Golfo da Guiné.

Completam-se hoje 43 anos: tantos como a Independência de Angola. Foi a 11 de Novembro de 1975. Para muita gente, especialmente os angolanos, foi um dia de muita alegria, de uma grande festa e de muita felicidade. Tive essa confirmação através de um pequeno transístor, enquanto não se esgotaram as pilhas. 


Para mim, foi um dos dias mais tristes e atribulados no mar: não houve nada que eu não tivesse enfrentado. Os registos do meu diário, que vou reproduzir mais adiante, extraídos de um pequeno gravador, que preservei da ofensiva do mar num contentor do lixo, em plástico), não deixam margem para dúvidas. No mesmo dia, apanhei de tudo!.. Desde o tornado violento à podre calmaria. Não foi um dia de desespero mas andou lá próximo. Aproveitarei ainda para aqui revelar os nomes pelos quais eram conhecidas as Ilhas do Golfo da Guiné,antes de ser povoadas pelos portugueses




Jorge Trabulo Marques - Jornalista - antigo navegador solitário e investigador -  Correspondente, em STP, durante cinco anos,  da Revista Semana Ilustrada, de Luanda - Através da qual dei todo o meu apoio ao MLSTP e Associação Cívica - Pró-MLSTP após o 25 de Abril Tendo por esse facto e pelos vários artigos publicados, sobre os massacre do Batepá, em 3 de Fevereiro de 1953, sido obrigado a ter que sair numa canoa, em plena noite de tempestade, rumo à Nigéria, onde aportei após 12 dias de extremas dificuldades -


PNEUS  DA MINHA VIATURA ESFAQUEADOS, ESPANCADO NA RUA E UMA FORCA PENDURADA À PORTA DE MINHA MODESTA RESIDÊNCIA


Desde algum tempo que tencionava fazer essa travessia para comprovar que as canoas podiam fazer grandes viagens e que as mesmas pirogas podiam ter sido as primeiras a povoar as ilhas do Golfo da Guiné. Porém, devido às perseguições e agressões sofridas por parte de alguns colonos, fui obrigado a ter que abandonar a ilha, numa noite de forte vendaval, que afundaria a maior parte dos batelões na Baía Ana de Chaves, para não correr o risco de ser visto, tal como fizera aquando, cinco antes, empreendera a travessia de S. Tomé ao Príncipe, ousadia esta que me custaria uma semana de espancamentos nos calaboiços da PIDE e uma pesada coima por parte da Capitania dos Portos.

O MEU TRIBUTO AO POVO DE ANGOLA, COM OS SONS INESQUECÍVEIS DO DUO OURO NEGRO E OS DESEJOS DE PAZ, PROGRESSO E O BEM-ESTAR DO SEU POVO



"FIQUE CONNOSCO! VOCÊ VAI MORRER! A CANOA NÃO RESISTE!". - PEDIAM-ME ALGUNS TRIPULANTES. MAS EU PARTI RUMO AO DESCONHECIDO: - UMA VEZ MAIS POR MINHA CONTA E RISCO, ACABANDO POR SER CONFRONTADO COM UMA DAS MAIS DURAS E PROLONGADAS LUTAS DE SOBREVIVÊNCIA NAQUELES TURBULENTOS MARES - INFESTADOS DE PERIGOSOS TUBARÕES E ASSOLADOS POR CONSTANTES TORNADOS


Lá fui no meu "luxuoso paquete" - Sim, o mar quando quer pregar alguma partida, não escolhe categoria social ou tamanho do barco. - Sofri muito mas fui mais feliz que as centenas de vidas que se afogaram a bordo do Titanic - Nos meus tempos de estudante, na Escola Profissional Agrícola Conde S. Bento, em Santo Tirso, o meu Prof. de religião e moral, Rev. Padre Serra, natural de uma aldeia de Famalicão, gostava muito de nos recordar nas suas aulas a tragédia do dramático naufrágio, cantando connosco o Cremos em Vósó Deus, Sim, muitas vezes me lembrei desse hino e implorei a Deus protecção, conquanto não me sinta propriamente um católico praticante.

CANOA FOI  DESCARREGADA DO PESQUEIRO AMERICANO HORNET, FUNDEADO AO LARGO E A NORTE DA PEQUENA ILHA DE ANO BOM - A ILHA MAIS SETENTRIONAL DO GOLFO DA GUINÉ - 

A canoa havia sido carregada, ao largo da Cidade São Tomé no pesqueiro americano Hornet, que ali deixara um tripulante hospitalizado, para ser largada um pouco a sul da ilha de Ano Bom, na chamada corrente equatorial, um dos braços da corrente equatorial da corrente de Benguela, que se desvia para oeste, e, depois de atravessar o Atlântico, vai ao longo da costa do Brasil, após o que volta a cruzar o oceano em  sentido inverso e toma o rumo Norte

Como os ventos e as correntes, são dominantes do Sul para Norte, eu precisava, pois,  de ser largado na corrente equatorial, um pouco a Sul da Ilha de Ano Bom, que é onde a Corrente de Benguela se divide: uma parte vem perder-se a Norte do Golfo e a outra deriva em direcção ao Equador para o coração do Atlântico, até voltar para sul, junto à costa brasileira, num périplo que desce até quase ao Oceano Antárctico, confluindo depois para a costa africana.

O comandante, desse pesqueiro, comprometeu-se a lagar-me naquela corrente, mas faltou à palavra. Ou antes, fez tudo para que eu ficasse a bordo a trabalhar e não me metesse nessa aventura - na travessia oceânica - visto achar demasiado arriscada a minha ousadia, até porque, os dias de viagem até à ilha de Ano Bom, haviam sido marcados por constantes tempestades tropicais. Especialmente ao fim da tarde e à noite. Em que ninguém podia parar no convés: as vagas varriam-no de proa à popa. E muitos tripulantes, tentavam dissuadir-me: "Fique connosco!... Você vai morrer!... Fique connosco! A sua canoa não vai resistir"
E, de facto, ninguém se atrevia a expor-se ao vento e à chuva. À fúria do mar. Eu olhava a escuridão, por detrás das escotilhas e fixava os olhos bem abertos na borbulhante e pálida espuma, ouvia o marulho das vagas a desfazerem-se contra o casco e galgarem-no!... Olhava e escutava pasmado a sua inaudita violência com alguma apreensão, mas estava determinado...

Nada deste mundo podia demover-me!... Sentia-me ao mesmo atraído por uma espécie de resistível desafio e tenebroso fascínio...Sentia que o palpitar do meu coração precisava de vibrar ou se aquietar com a palpitação do mar. Os meus olhos só queriam espraiar-se e deleitar-se com o imenso azul clarinho dos dos céus e o azul profundo da vasta superfície oceânica.

máquina amarrada no mastro e disparada com um barrote
Já não era a minha primeira experiência solitária, o meu encontro a sós com o mar alto e também sabia que, quanto maior é nau maior é a tormenta...Pelo que, ao ser confrontado com alguns temores e dúvidas, quando aquele turbulento cenário nocturno mais me impressionava, imediatamente a minha imaginação me transportava para as façanhas daqueles corajosos pescadores de São Tomé - os "angolares" - a desafiarem o mar encapelado, a abandonarem a praia ou a fugirem do tornado. Alguns deles haviam sido os meus mestres e a sua agilidade encorajava-me.

As canoas vogando à flor do mar, com vento de popa ou mesmo impelidas pelo remo, entram numa espécie de desenfreada vertigem e furtiva cavalgada do sobe e desce, e, mesmo que as ondas sejam tão altas como as montanhas, acompanham sempre a sua hilariante dança!...

Só se a sorte for demasiado madrasta é que o mar não brinca com a sua impertinente fragilidade. Ou que o homem do remo deixa de se integrar no ondulante e translúcido seio. Estava pleno de fé, confiante!...
 Mar! Mar! Mar! ... Esta palavra mágica de três letras não me saía do pensamento. Eu queria a voltar a estar sozinho com os olhos extasiados ou circunscritos em todos os confins do círculo que se abrem sobre o vasto mar! - E, ao sulcar as suas ondas, ir buscar raízes e pedaços da história, perdidos no tempo e no esquecimento.




Havia-me preparado, longamente, na arte de navegar nas pirogas dos pescadores daquela linda Ilha. Navegava de praia em Praia e afasta-me para o largo. Voltava a canoa de costado para o ar e empinava-me novamente nela. Preparara-me para todas as circunstâncias de tempo e de mar. Aliás, na viagem ao Príncipe, o sono surpreendeu-me, e, às tantas da noite ao adormecer, rolei no seu bojo e fiquei debaixo dela. Mas depois - embora muito a custo - lá voltei a equilibrar-me naquele esquifezinho ou escavado tronco de madeira.
Não é fácil esquecer-me dessa minha primeira travessia oceânica, entre as duas Ilhas: apanhei um grande susto e quase me ia afogando mas não esmoreci: de pé ou sentado, sobre uma das travessas, lá naveguei, noite adentro, à vela e a remos, algo perturbado e não sabendo bem para que ponto do horizonte me dirigir: seguia o instinto.

 A piroga era muito estreita, não podia desistir, não podia deixar de remar ou velejar. Não podia adormecer, sob pena de voltar a cair de lado e de me virar no mesmo remoinho. Perdera a pequena bússola e o garrafão de água, mas dispunha de um remo e uma vela suplente amarrado no bordo da canoa. Era uma maratona que tinha de cumprir: calculara dois ou três dias no máximo, perdera muitas noites ao relento, sentado nas paredes do antigo Forte de São Jerónimo, junto ao mar, sem dormir, olhando a escuridão, preparando-me e ambientando-me para fazer a travessia, sem largar mãos do remo ou do cabo de escota. 

A embarcação era demasiado minúscula e, deixada à deriva, podia desequilibrar-me e mergulhar nas águas. E foi o que aconteceu, quando o sono fora mais forte de que a minha resistência e me surpreendeu.Mas felizmente lá me livrei daquele rodopiante sorvedouro. Lá recuperei o anterior domínio e me fiz de novo à escuridão das águas. Largara à meia-noite da Baía Ana Chaves, disfarçado de pescador para não ser reconhecido - pois sabia que as autoridades, não me autorizariam a meter-me nessa aventura. Tanto assim, que ao regressar a São Tomé, seria preso pela PIDE (policia do regime) e severamente punido com uma pesada coima. De resto, para navegar, desde a baía da cidade até ao Padrão  dos Descobrimentos) da Espraínha (Água Ambô, junto à Ponta Figo),  foi o cabo das arábias! Fiz o percurso no dia em que se comemoravam os 500 anos: mas o Capitão dos Portos, só muito a custo, me concedeu autorização.

Adicionar legenda
Fazia essa viagem de 40 milhas, ida e volta, por duas razões: por um lado, como meu primeiro grande teste, com vista às futuras ligações entre as ilhas e o continente africano (comprovando assim a minha teoria: de que era possível fazer ligações de canoas em grandes distancias pelos povos africanos do litoral com as ilhas do Golfo) ; por outro lado, queria prestar homenagem - não à colonização, de que também fora vítima (principalmente na Roça) mas à heroicidade e temeridade desses bravos navegadores, cujas façanhas, tanto alimentaram o meu imaginário, desde criança e que haviam sulcado, aqueles mesmos mares, a bordo da suas frágeis caravelas. Além de que, só indo ali, arvorando um tal propósito, poderia ser autorizado,
SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE - ANTIGAS ILHAS: ASBEN E SANAN
E, AFINAL, QUEM FORAM OS NAVEGADORES PORTUGUESES QUE REDESCOBRIRAM AS ILHAS DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE? -ALÉM DE JÁ TEREM NOMES E SEREM REFERENCIADAS NUM PLANISFÉRIO CATALÃO, MUITO ANTERIOR AOS QUE OS PORTUGUESES COMEÇARAM A DESENHAR, E TEREM SIDO VISITADAS POR ANTERIORES VIAJANTES ISLÂMICOS, QUE LHES CHAMARAMAS BEN - À ILHA DE SÃO TOMÉ; SANAN - À ILHA DO PRÍNCIPE)

Tema que já me reportei neste mesmo site
http://www.odisseiasnosmares.com/2011/12/sao-tome-e-principe-ilhas-asben-e-sanam.html
QUANDO SE VAI PARA O MAR, SABE-SE QUANDO SE PARTE MAS NÃO SE PODE TER A CERTEZA ABSOLUTA SE SE CHEGA A BOM PORTO OU SE SE REGRESSA AO PONTO DE PARTIDA

Para já, deixo-lhe  aqui o registo do meu diário de bordo, do 22º dia,  que gravei num pequeno gravador, que, logrei guardar num caixote de plástico (do lixo) bem como a máquina fotográfica

"Ninguém sabe onde estou! Talvez me julguem a caminho do Brasil mas eu estou perdido neste vasto Golfo!...Perdido!...Entregue ao meu próprio destino.... Se a canoa se virar, ninguém me pode valer...Ninguém!....Os tubarões de vez em quando volteiam ao meu redor....(...)Espero que esta gravação um dia venha a ser ouvida...Espero que sim...Espero!... Excerto do 2º Dia do meu diário, após um violento tornado me ter feito perder a maior parte dos apetrechos e mantimentos.

Algures no Golfo da Guiné, 11 de Novembro de 1975



Diário de Bordo 1 - Já é manhã do 22º dia. Passei uma noite normal. Estive muitas vezes acordado. Não dormi assim muito mas não choveu. Estive a ouvir a rádio até altas horas, até quase de manhã, sobre a reportagem da independência de Angola. Portanto, hoje é dia 11 em terra.

Amanheceu uma manhã bastante agradável: o mar não está assim muito agitado e o céu não muito encoberto. Apenas umas nuvens de onde em onde.

Eu disse, ontem, que, quando não se possuía uma boa vela, um perfeito domínio da embarcação, era preferível deixá-la à deriva. De facto, cheguei a essa conclusão, mas, atendendo a que devo estar muito próximo de terra e porque as correntes já não devem ter grande força, talvez valha a pena pôr à prova os modestos recursos que disponho.

Não podia deixar de me referir à companhia dos meus fiéis tubarões...continuam!...Isso é infalível!... A dar aqui as suas voltinhas, a fazer a sua escolta à canoa.

SENTIA-ME ARREDADO DE TUDO - O MEU CALENDÁRIO NO MAR ERA DIFERENTE DOS DIAS QUE CORRIAM EM TERRA

Diário de Bordo 2 - São mais ou menos oito horas da manhã do 22º dia, ou seja dia 11 em terra. Realmente experimentei a vela. Andei cerca de uma hora e tal, mas praticamente já havia vento. Há uma calmaria muito grande. Tudo leva a crer que haja trovoada lá para o fim da manhã ou princípio da tarde. Oxalá que sim; uma trovoadazita até faz bem para acelerar o andamento da canoa, se não nunca mais saio daqui!... O problema é este: só há vento quando há trovoadas. O pior é que nessas circunstâncias é difícil navegar, porque há que ter toda atenção na segurança da canoa. Portanto, neste momento, limito-me a aguentar os balanços da canoa e o calor, que está já a fazer sentir-se, até que venha um bocado de vento, que, com certeza, virá acompanhado de alguma trovoada, que está já a formar-se ali para leste. Aguardemos.

Diário de Bordo 3 - Quanto ao meu estado de saúde, doem-me bastante as costas, o pescoço, tenho inúmeras borbulhas nos braços e nas pernas e a vista muita cansada de olhar para o horizonte e também dos reflexos do sol. De resto ainda não sinto qualquer perturbação: mas tenho aqui medicina, uns comprimidos e algumas vitaminas. Enfim, espero que não surja qualquer complicação no meu estado de saúde.

Estou ouvindo rádio, que uma vezes constitui realmente o meu passatempo favorito, outras, enfim, é o silêncio, a solidão única coisa que me agrada.

AO FIM DA MANHÃ, CONFIRMAVAM-SE OS MEUS RECEIOS - Surge a tempestade: o que eram sinais de velada ameaça, subitamente, transformam-se num afrontoso pesadelo - O mar!... O mar!... Quando se enfurece, o mar é sempre igual em qualquer parte.

 

TT



Diário de Bordo 4- Neste momento estou a enfrentar violenta tempestade! Tive que lançar a âncora flutuante. A canoa correu sérios riscos!...Nunca estive em tantas dificuldades como agora!… mesmo assim o tempo acalmou ligeiramente, mas ainda continua a tempestade a sentir-se e arrastar-me agora de este para oeste!… Está a retardar novamente a minha viagem!... Devem ser aí umas 11 horas da manhã!…Estava uma manhã estupenda e, de um momento para o outro, apareceu esta tempestade que ameaça a todo o instante virar a minha canoa.

Diário de Bordo 5 -O mau tempo continua a fazer sentir-se!... Não sei qual o destino onde vou ter!… É difícil neste momento fazer qualquer prognóstico… É um tornado dos maiores que tenho enfrentado...E o pior foi encontrar a minha canoa na posição pior de segurança, porque, a canoa, tem uma posição em que pode enfrentar mais ou menos as tempestades...Tive que lançar a âncora e um bidão de plástico que força com que a canoa fique ligeiramente de proa à vaga…De qualquer modo, a situação continua melindrosa!... Agora não chove mas está a fazer uma grande ventania e o mar está muito cavado!... Estou a ser arrastado para Sul, portanto, estou a ser retardado!... As perspetivas de chegar a terra, estão a ser cada vez mais morosas. É realmente uma situação verdadeiramente dramática!... A canoa esteve há pouco à beira de se virar!... Só por muita sorte, só por milagre não se virou!...

NESTES MARES, EM QUE OS DIAS SE REPARTEM POR IGUAL COM AS NOITES, TUDO É SÚBITO E INESPERADO: Uma simples nuvem no horizonte num claro céu azul e limpo, tanto pode significar o princípio de uma tempestade, como de uma podre calmaria  - Agora, as alterações climáticas estão profundamente alteradas, em todo o planeta; não sei se, naqueles mares, para pior ou melhor - Mas há 37 anos, eu vivia ali um longo e tormentoso drama  Ao sabor dos ventos e das correntes e balanceado para todos os quadrantes. 

Diário de Bordo 6 - Sinceramente, o tornado já passou... Está agora a notar-se a ressaca... Estou bastante afastado da Ilha de Fernando Pó, muito afastado!...Estou convencido que não vou ter a oportunidade que já tive...Neste momento, não sei qual a minha posição; estou bastante para Sul!... Não sei se voltarei a ter a oportunidade que já tive!... Afinal o que me interessa é terra e eu parece que estou a brincar com o meu destino!... Não pode ser!... Estou francamente perturbado neste momento!... Vou ver se consigo conservar o máximo de calma!... Mas já estou saturado... Estou cansado... Estou com fome!… Estou longe de terra! Agora estou muito mais longe do que já estive!

Mais afastado de terra e fatigado.  Não estou desiludido ou desesperançado. Pelo contrário, sinto-me mais forte e mais habilitado. O mar já não é aquele lençol líquido rebelde e ondulante, a sua fisionomia está moribunda  e não demorará a quedar-se numa ténue e plácida superfície.

Diário de Bordo 7 - Duas horas já são passadas... Não há vento. O mar tem uma ligeira ondulação: está mais ou menos calmo... Depois de um grande susto e de momentos de grande aflição... Porque, de facto, a trovoada foi violenta e ameaçou a cada momento voltar-me a canoa, não tivesse eu lançado a âncora flutuante, aliás, que é um sistema que eu improvisei (com um bidão de plástico, amarado a uma corda e à proa da canoa, na primeira noite em que fui assolado pelo tornado, forçando-a a ficar de proa à vaga e que me fez perder o remo e o leme e alijar da maior parte dos alimentos, para evitar ir ao fundo)  mas cheguei à conclusão que posso muito bem dar a terra, à costa de África... Quer dizer...se não houver vento de sul para norte, não preciso de pôr a vela, porque a corrente me arrasta... Se a trovoada surgir de sul, ponho a vela e a canoa evolui para noroeste...portanto, para a costa de África. 

Cheguei também à conclusão de que, realmente, numa tempestade, a embarcação não pode ficar completamente à deriva; se ficar com a vela, furta-se às vagas e não se vira tão facilmente. Claro que a vela tem de ser pequena, porque, se for grande, pode-se voltar...Por exemplo, neste momento tenho a vela e a canoa está a evoluir para a noroeste...E é pena não haver um pouco mais de vento... Portanto, eu posso muito bem ir dar à costa de África, tanto à Nigéria, como ainda a Fernando Pó. Para ir a Fernando Pó, basta que eu ponha a vela, quando houver vento de sul para norte; não preciso de remo sequer; basta prender a vela; prendo-a e então a canoa desliza para nordeste

Neste momento, já estou mais otimista... Depois daqueles momentos de grande aflição, em que vi quase a canoa virada e tive que me deitar para um dos lados, porque a canoa esteve mesmo... Havia vagas grandes, alterosas!…Entretanto, lancei um plástico agarrado à âncora  (a âncora flutuante), isso fez força, esticou a corda e evitou que a canoa se virasse... 

A canoa, correu realmente o risco de se virar!... Ora isso não pode acontecer de maneira alguma... Aliás, uma pessoa, nestas condições, a cabeça tem que estar sempre a pensar!... Sempre a improvisar... Não podemos cruzar os braços perante o perigo...Temos que ter sempre ideias novas para fazer face a novas situações... Este é um predicado muito importante... Pois nunca se pode uma pessoa dar por vencida!...Pode chatear-se, saturar-se, enfim, desanimar um pouco, mas por vencida nunca se deve dar!... Eu, apesar de tudo, apesar de já estarem 22 dias passados, aqui nesta situação, verdadeiramente dramática, muito difícil, eu não me dou por vencido!... Eu sei que hei-de ir dar a terra, custe o que custar!... A menos que a canoa se parta, mas isso não há-de acontecer



Diário de Bordo - Um pormenor curioso: tem piada que tive uma manhã bonita, uma manhã de sol!...Estava eu a ler um livro: “A Funda” de Artur Portela Filho, quando comecei a ver nuvens escuras e a ouvir um murmúrio, um ruído enorme: vi logo que era vento!... Pois, mal dei aqui uma arrumadela à canoa, surgiu logo essa trovoada, e de que maneira!

O céu por cima da minha cabeça está praticamente desnudado. Mas não tem aquele tom luminoso de um puro azul, que me inspira alegria.  Está encoberto por uma fluidez baça, por uma película levemente brumosa e prateada. Porém, em toda a periferia do horizonte, notam-se altos cúmulos. Estas nuvens têm aspetos muito giros mas algo misteriosos e inquietantes que não me inspiram absoluta tranquilidade. Porventura, reservam-me alguma surpresa desagradável....Vivo numa verdadeira inconstância de altos e baixos...

Diário de Bordo 8 - São neste momento perto das quatro horas da tarde, sensivelmente. Agora há uma paz!... Há um silêncio...O mar está calmo, sereno!... Um verdadeiro contraste com o mar que há bocado estava..O céu tenuemente enevoado, o sol mal se faz sentir....Sinto-me absolutamente desprezado neste momento!

Sinceramente, estou saturado! Saturado, porque não estou a navegar, a fazer da canoa aquilo que eu quero...Estou à mercê do mar, dos ventos, das correntes, das trovoadas!... Sou para aqui aquilo que os ventos e as correntes quiserem!...Estou farto de vislumbrar o horizonte, em busca da desejada costa africana!... Vejo lá longe Fernando Pó...Se calhar tenho de ir para lá, porque, senão às tantas, nem para lá nem para outro lado!...

Sinto ao mesmo tempo uma réstia de esperança... Há bocado vi que a minha canoa podia-se ter voltado de um momento para o outro!... Correu sérios riscos!...Eu não perdi a esperança, apesar de tudo...Tenho tido bastante sorte, também....

Não há ninguém...Nem um barco de pesca, nem um barco!... Não vejo nada!… Nem aves, tão pouco... Nem peixes!... Apenas os tubarões, azuis e os martelos, continuam em volta...Mais nada!... A água tem uma cor escura!...Não sei que dizer mais... Esperar, até quando?!.. Esta ânsia!... Quando eu posso pisar terra firme?!...Quando?!...

Entretanto, tenho aqui o meu pequeno aparelho com o qual , quando tenho um bocadinho de disposição, me vou entretendo a ouvir música (ligo o pequeno rádio, aliás, à Rádio Nacional de São Tomé) - Neste momento está a dar música .Ouve-se aqui perfeitamente apesar da distância. Hoje tem estado a transmitir muitos trechos de música africana. Hoje é o dia da Independência de Angola. Um dia de festa para muita gente e para mim um dia tão triste!

NEM SEMPRE O NÁUFRAGO PODE DISPOR DA  COMPANHIA DOS SONS DE UM PEQUENO RÁDIO – ESCUTEI-OS, POR VEZES, ENQUANTO AS PILHAS, NÃO SE GASTARAM, DEFENDENDO DA VIOLÊNCIA DO MAR NO INTERIOR DO MEU BAÚ, UM VULGAR CAIXOTE DO LIXO  

 E foi desse modo que pude acompanhar o memorável acontecimento da celebração da Independência do Povo Angolano. Mas foram também os sons musicais africanos, esses sons pungentes de sofrimento, de alegria, amor e nostalgia, que falam sempre ao coração, e até os que escutava de Portugal, através da EN, que ora me conduziam a estados de paz e de tranquilidade, ora me  comoviam, fechando-me ainda mais no meu silêncio ou rompendo-o, em lágrimas e com as mil dúvidas e interrogações que então me assolam

Diário de Bordo 9  - Aqui...isolado há 22 dias!... Meu Deus! O mar às vezes é tão belo! Tão maravilhoso!...Outras vezes...Há uma solidão!... Eu não sei já o que sou, afinal! O que sou, afinal, eu?!...Sinto fome!…A alimentação tenho-a racionado!.. A água, há bocado, devido a atenção que tinha que manter, descuidei-me!.. Agora só tenho um bocadinho... Vou-me remediar e terei que beber água do mar...Meu Deus!...Até quando?!...

O tornado deixara-me muito cansado e enfraquecido. Na noite anterior mal pegara no sono. À medida que se aproximava o fim da tarde - e ali, o sol ia pôr-se às cinco e meia - sentia-me invadido por uma profunda tristeza. E, nesse dia, chorei. Não direi que me sentisse derrotado mas estava muito triste. Muito abatido...É verdade que, no dia anterior, chegara a ter no horizonte a Ilha de Fernando Pó. Mas estava ainda longe, porque, se estivesse muito perto, não conseguiria distinguir se era uma linha da costa ou uma ilha. Pois a ilha ainda é grande. Mas deu para ver que era realmente Fernando Pó – a  Ilha de Bioko. Mas, a verdade seja dita, eu não desejava ir lá parar: receava que fosse preso; o regime era intolerante. Infelizmente foi para onde acabei por aportar. 

Entretanto, até lá, os tornados, haveriam de me balancear para os vários quadrantes do horizonte, sem todavia me arrastarem para qualquer recanto da costa. - Num fim de um dia de grande abatimento e solidão mas que, ao contrário de outros dias, me deu para exteriorizar longamente os meus sentimentos para o pequeno gravador. E até para verter as minhas lágrimas. Agora já com o pequeno rádio desligado:

Diário de Bordo 10 - Mas, oh mar!... Foste tu que me chamaste, afinal?!... Ou eu que sou louco?!.. O que foi afinal?!...Eu sinto qualquer coisa em mim!!... Qualquer coisa em mim!!...Não sei!.. Oh Deus!... Porque é que estou aqui, afinal?!...Mar!... Vastidão! Vastidão!... Só vastidão!!... Silêncio!...Lonjura!!... Só mar!... Mar!... Mar!... Mais nada!...Absolutamente mais nada!!!... Só mar!...Mar!...Eu e a minha canoa!... Só mar!mar!...

Auto-retratos de peregrino  dos mares,, da terra e da luz
Oh mar! Fala!...Fala!!... Diz-me se posso chegar a terra!!....Quando?!... Hoje?!.. Amanhã?!...Nunca?!... Responde! Oh mar!....Agora tudo calmo!... (já não se ouvem os sons do pequeno rádio, que desliguei) Daqui a bocado, outra vez... Outra luta!.. Não me dá tréguas...Umas vezes assim, sereno!.. Outras tempestuoso!...Mas que será isto?!...

Fim de tarde!... Fim de tarde!... Quando a terra chegará?!...Perdido!.. Aqui!...Nesta vastidão! Nesta vastidão!!... Só mar, mais nada!... Absolutamente, mais nada!!... Agora, nem aves!... Silêncio!... Silêncio!... Onde estão as gentes, onde estão as pessoas?!... Onde estão os milhares de habitantes da terra?!... Onde estão os pesqueiros?!...Os barcos, onde estão?!... Sou eu que estou no mundo apenas!...

 QUANDO A DESEJADA COSTA DE ÁFRICA? 


Ó meu Deus! Ajudai-me! Ajudai-me!... Continuai alimentar a minha esperança!... Apenas uma coisa  eu sinto!... O meu peito, o meu coração está livre de tudo! Ninguém me incomoda!...Ninguém me chateia, me pede satisfações!... Não tenho que dar satisfações a ninguém!... É a única vantagem que tenho... De resto...é o silêncio!... Silêncio!... Silêncio, apenas!... Silêncio!... (as lágrimas toldam-me de novo meus olhos)


Oh meu Deus, ajudai-me!... Ajudai-me!... Não tenho medo não!!... Mas não sei quando!... Esta incerteza... Vastidão!....Vastidão!...Mais nada!... Oh pessoas!... Onde estais para falar convosco?!...



 Diário de Bordo 11 - Quando me decidi regressar a São Tomé, depois de ter desprezado, inclusive, emprego no barco que me levou de canoa até Ano Bom, eu pensava demorar dois dias!.... Finalmente encontro-me há 22 dias.. Se tivesse ido para o Brasil, eu sabia que ia demorar dois meses, três meses. Eu estava mentalizado para isso. Eu iria, com certeza, com o leme, com as velas; iria ter domínio na minha canoa...Quando me decido pelo regresso a São Tomé, foi porque sabia que não podia fazer a viagem: a canoa estava com rachas, desequilibrada. Por outro lado, não era possível levá-la para as correntes. Portanto, estava mentalizado já para regressar a São Tomé. Entretanto, passaram dois, três, quatro, cinco dias!..Hoje?!....Amanhã?!... São 22 dias passados!... Umas vezes de indescritível alegria, prazer!... Outros de angústia, de aflição! De Verdadeira aflição!... Esperando a cada momento que uma onda me galgasse!



Eu vejo aqui em volta peixes que nunca vi na minha vida !...Sinceramente, não sei as suas intenções!...Sei que se caísse, cairia num domínio que não é o meu!...Estaria irremediavelmente perdido!... Cá ando, não sei até quando...

Mas tenho algumas culpas!...Eu poderia estar na Ilha de Fernando Pó, mas por teimosia minha decidi ir para a costa de África...Entretanto, as dificuldades estão a surgir... maiores do que eu previa!... E sabe-se lá se uma coisa ou outra eu poderei encontrar....Mas...Meu Deus!...No fundo de mim, no íntimo, alimento uma fé, uma esperança!... Até porque, se não tivesse a certeza de chegar a terra, naturalmente que já teria ficado noutro sítio qualquer...Porque eu já enfrentei tantas dificuldades, tantas tempestades!... Tantos maus momentos, que até agora tenho-os vencidos a todos!...Oxalá continue a poder resistir-lhes



-TARDE MORNA VAI MORRENDO – O sol, qual disco vermelho, ora a despontar ora a sumir-se por entre encastelamentos de nuvens escuras, desce vagarosamente a oeste sobre a curvatura do horizonte, espalhando tonalidades pálidas na leva ondulação, que mal se faz sentir. O ambiente que agora se espelha, bastante mais calmo – Mas oh que contraste com o mar revolto  e encapelado do princípio da tarde! -  É no entanto a imagem de uma imensa desolação e desamparo, mas, ao mesmo tempo, de profunda serenidade, inspiradora de deslumbradas e nostálgicas divagações. Onde as palavras aspiram à plenitude, os sentimentos procuram harmonizar-se entre o coração e a planura horizontal.

Diário de Bordo 12 - Fim de tarde do 22º dia. Que nome hei-de eu dar a este silêncio?!.... Um princípio de tarde agitado... E um fim de tarde morno, triste!...Em que até o sol brilha menos... Em que até o sol está menos luminoso, menos radiante!…O mar mais escuro... O céu mais cinzento... O horizonte mais limitado, mais circunscrito...Não é tão vasto!...O mar! uma vastidão!... Uma planura!... Apenas uma ligeira ténue brisa!...Umas pequenas ondulações!... Como que rugas de um manto imenso... Cinzento!.. Profundo!... Muito profundo!...

Olho para a minha canoa, que vejo?!... Tudo desarrumado!.. Dois plásticos: um com meio litro de água, outro vazio...Outro com algumas coisas dentro... As minhas pequenas roupas, estão a secar sobre as bordas da canoa...A canoa tombaleando...Ligeiramente... Levemente!... Sem fazer qualquer ruído, como que a enquadrar-se neste silêncio!... Neste mesmo quadro para não destoar...Quadro?!... Que nome eu daria este quadro?!... Não sei!...Agora, neste momento, o sol começa a despontar entre nuvens escuras!... À minha retaguarda sobressai um reflexo luminoso... de miríades!.. Um reflexo brilhante!... Lá!...Um peixe deu um salto. Outro voou!...

Para lá do oeste, nuvens escuras!... Mais escuras!...E o sol a surgir no meio delas como uma aparição!... Mas num brilho não tão radiante, não tão radioso como por vezes, o é!...Há um rasto luminoso atrás de mim!... Que ele provoca, como que a apontar-me, como que a dar-me uma réstia de fé, de esperança!...Tudo o mais é cinzento!... Tudo o mais é abandono!...Apenas o reflexo, este reflexo!...É doirado e prateado!.. Cheio de anéis de ouro!... A única coisa que brilha é o sol!... Esta réstia de luz que se estende dele até mim!...Tudo o resto é cinzento!... É abandono!... É esquecimento!...Vastidão!... Lonjura!... Distância!...Numa circunferência imensa!...Sem limites... Sem espaço!... Sem dimensão!....


SOB A CALMA E O SILÊNCIO DO ENTARDECER… Momentos para ouvir alguns sons africanos... Que se perdem na magia e tranquilidade da vasta planície oceânica.

Reina uma atmosfera serena e agradável. Respira-se um ar puro e tépido. Sinto-me absolutamente calmo, nada me perturba. Como se explica que, estando eu perdido no oceano e longe das vistas de qualquer outra presença humana, consiga superar ou esquecer, tão rapidamente, os momentos mais atribulados?... É um segredo que só o mar conhece ou quem, vogando à sua superfície, sinta profundamente todas as suas convulsões ou calmos espasmos. Não se consegue explicar por palavras. O meu espírito goza, de facto, neste momento, de uma quase sublime serenidade. Os sons que ouço fundem-se e refundem-se como ondas vibratórias, em sentimentos de verdadeira magnificência, plenitude e beleza.



Diário de Bordo 13 - Estou ouvindo música no meu pequeno aparelho... Música africana!.. Estou num local africano... próximo de África, onde os sons, são sons apenas!... Não há outros ruídos!...Estes sons chegam-me aos ouvidos, com pureza!... Com agradabilidade!....Com expressão!... Sinto-os!...Não ouço mais sons, senão apenas aqueles que são transmitidos pelo rádio...O som, aqui,  é mais agradável! É mais musical. É muito mais expressivo!...Sinto-o!... Vêm até mim!...Vêm ao meu peito!... Diz-me qualquer coisa!... É melodia!... É qualquer coisa que me diz!... Que me trás!... Que me alimenta!!... É alimentação... É, como que, comida!...

ENTRETANTO A NOITE CAI – E, NAS REGIÕES EQUATORIAIS, CAI QUASE ABRUPTAMENTE – TAL COMO A CORTINA QUE ENCERRA O FIM DE UM ATO NUMA PEÇA DE TEATRO - NÃO HÁ CREPÚSCULO –  A noite cai repentinamente e quase nem se dá por isso. É pois a hora de prestar atenção a outros sons e de perscrutar, atentamente, o que vai além do já quase ensombrado e escurecido horizonte

Diário de Bordo 14 - A Ilha de Fernando Pó está quase a confundir-se no horizonte...Está mais distante, mais cinzenta!...Sinto agora um ruído!!... Virá ele agora perturbar o meu silêncio?!... Agora tudo é mais sombrio, mais cinzento!… Nem o sol brilha!...Escondeu-se!... As nuvens esconderam-no!...Virá ele perturbar o meu silêncio?!... E depois disto o que virá?!... A noite, daqui a pouco, surge... Silenciosa ou tormentosa?!... Sinto que a canoa vai vagueando pela acção das correntes.... A correntes, que são invisíveis, mas que têm força!... Continuam a impeli-la...Agora para Norte!...Há bocado veio de Norte para Sul, impelida pela trovoada...Agora volta para Norte!...E assim ando, assim navego...

Daqui a pouco é noite....Depois é tudo escuro!...Ficarei metido na minha canoa, deitado no fundo dela...De vez em quando, vigilante!...Observando o horizonte, a ver se vejo...Ah!, porque eu quero a costa de África!... Eu quero a misteriosa costa de África que custa a mostrar-se!... É o que me interessa!...

HORA DE BALANÇO DO DIA: Pouso o gravador para uma breve pausa. Tranquilamente  e a meditar nas palavras que registei. Que parecem ainda ressoar-me aos ouvidos numa animadora e reconfortante esperança. Tanto mais que os ruídos que julgava ter ouvido  há pouco, afinal não terão passado de ecos dos sons do rádio, como que  a repercutirem na minha mente ou como, se porventura, ecoassem dos  confins do espaço. Depois é altura  de fazer o balanço: do que ainda me resta e do que o mar me levou, questionar as desilusões e de acalentar novas esperanças. E de me lembrar da carta marítima oferecida pelo cantor francês Antoine



Diário de Bordo 15 - Não trouxe carta nenhuma para me orientar. Aliás. tenho um esboço, uma cópia de uma carta marítima de correntes e ventos, entre a África e o Brasil, na faixa do equador e na qual estão apontadas as Ilhas de Ano Bom, São Tomé e Príncipe e Fernando Pó (Bioko). Mas isso é uma coisa muito rudimentar, não é muito pormenorizada. Uns traços apenas, algumas indicações muito ligeiras. Essa cópia foi-me oferecida pelo cantor francês Antoine, quando passou por São Tomé, no seu veleiro, com o qual anda a dar a volta ao mundo. Farto-me de olhar para esse bocadinho de papel  vegetal e chego à conclusão de que realmente estou próximo. Muito perto!....Porque será que custará então a descobrir?!... Essa é a interrogação que eu tenho.... Da outra vez, quando fui para a Nigéria, ao fim de treze dias eu estava lá!....Claro que tinha leme, podia navegar com a canoa conforme queria. Podia conduzi-la pela orientação mais desejada. Agora não o tenho mas já tenho utilizado  a vela, e, com o remo que improvisei, a canoa já tem andado bastante!... Já são 22 dias passados... Claro que venho de mais longe!... Mas já era tempo de chegar à costa de África. 

Disponho de duas bússolas a bordo: uma que posso fixar na canoa, a outra que trago permanentemente no pulso...Este é que é o meu relógio, é o que me interessa... São os pontos que me interessam!... A direção norte interessa-me...A nor-noroeste, também...Neste momento, as horas para mim não contam... Conta apenas a direção que a canoa leva e mais nada!... E é para esta bússola, que eu trago sempre no pulso, que eu olho permanentemente...De resto, as horas para mim não contam!

MAIS UMA NOITE LONGA – SIM, DURANTE A NOITE, AS HORAS CONTAM – E, POR VEZES, NÃO SÃO HORAS MAS  ETERNIDADES!

Diário de Bordo 16 -Já é praticamente noite do 22º dia. Apenas se vê no horizonte uma língua de fogo a assinalar o crepúsculo....O Céu apresenta-se completamente coberto de nuvens cinzentas, um bocado espessas para sudoeste, o que indica que iremos  ter chuva esta noite, de bom lado... Quer dizer, de sul para norte...Se vier com esta direção, favorece. E vou dar uma arrumação à canoa a fim de ver se passo mais uma noite...

Diário de Bordo .... 15ª dia -  UM GRANDE BARCO PASSOU AO MEU LADO ***** ******.....17ª Dia - Se me perguntassem qual era o meu maior desejo ..... ....;BIOKO À VISTA - ILHA DO “DIABO......***.;NÁUFRAGO - 18ª DIA – MAIS UM BARCO PASSOU A CURTA DISTÂNCIA ......; 19º Dia – Sinto muita sede  ...     ...; 20ª Dia Estou envolvido por enorme cardume,...........;21º DIA – “Sinceramentejá tenho pena de ter ferido aqueles tubarões n............;.......;23º Dia -Vi uma borboleta!    ..24º Dia - É tubarão!.... Filho da mãe....... 25º diaEstou cheio de sede e de fome............26ª Dia Não tenho comidaÁgua também não. .      . 27ª dia  mar nunca se podem fazer cálculos seguros!...........28º Dia - Grandes vagas alterosas entravam dentro da minha canoa!.        29ª dia - Passei a noite todo encharcado.....       30º Dia - Não comi nada: limitei-me a comer uma das barbatanas do tubarão. .......... 31º Dia - A canoa a meter água cada vez mais!.... .............. .32º Dia -Estou comendo o coco! Avidamente!... Sofregamente!................33º Dia - Estou exausto!.........Dia 34º -  Sinto uma grande dureza no estômago..........35ºDia - Acordei com o barulho de uma enorme baleia aqui próximo da canoa ....36º Dia - Comi a ave que apanhei ontem! (...) Tenho a costa de África muito próxima... É já noite"... Estou a velejar! Estou-me a precipitar como um suicida. Tenho fome! ... Não posso demorar mais tempo!......37ª Dia Estou partido! Tenho o estômago metido para dentro...Estou realmente bastante fraco...



Já não era a minha primeira experiência solitária, o meu encontro a sós com o mar alto e também sabia que, quanto maior é nau maior é a tormenta...Pelo que, ao ser confrontado com alguns temores e dúvidas, quando aquele turbulento cenário nocturno mais me impressionava, imediatamente a minha imaginação me transportava para as façanhas daqueles corajosos pescadores de São Tomé - os "angolares" - a desafiarem o mar encapelado, a abandonarem a praia ou a fugirem do tornado. Alguns deles haviam sido os meus mestres e a sua agilidade encorajava-me.

As canoas vogando à flor do mar, com vento de popa ou mesmo impelidas pelo remo, entram numa espécie de desenfreada vertigem e furtiva cavalgada do sobe e desce, e, mesmo que as ondas sejam tão altas como as montanhas, acompanham sempre a sua hilariante dança!...
Só se a sorte for demasiado madrasta é que o mar não brinca com a sua impertinente fragilidade. Ou que o homem do remo deixa de se integrar no ondulante e translúcido seio. Estava pleno de fé, confiante!... Mar! Mar! Mar! ... Esta palavra mágica de três letras não me saía do pensamento. Eu queria a voltar a estar sozinho com os olhos extasiados ou circunscritos em todos os confins do círculo que se abrem sobre o vasto mar! - E, ao sulcar as suas ondas, ir buscar raízes e pedaços da história, perdidos no tempo e no esquecimento.


 Havia-me preparado, longamente, na arte de navegar nas pirogas dos pescadores daquela linda Ilha. Navegava de praia em Praia e afasta-me para o largo. Voltava a canoa de costado para o ar e empinava-me novamente nela. Preparara-me para todas as circunstâncias de tempo e de mar. Aliás, na viagem ao Príncipe, o sono surpreendeu-me, e, às tantas da noite ao adormecer, rolei no seu bojo e fiquei debaixo dela. Mas depois - embora muito a custo - lá voltei a equilibrar-me naquele esquifezinho ou escavado tronco de madeira.


Não é fácil esquecer-me dessa minha primeira travessia oceânica, entre as duas Ilhas: apanhei um grande susto e quase me ia afogando mas não esmoreci: de pé ou sentado, sobre uma das travessas, lá naveguei, noite adentro, à vela e a remos, algo perturbado e não sabendo bem para que ponto do horizonte me dirigir: seguia o instinto. A piroga era muito estreita, não podia desistir, não podia deixar de remar ou velejar. Não podia adormecer, sob pena de voltar a cair de lado e de me virar no mesmo remoinho. Perdera a pequena bússola e o garrafão de água, mas dispunha de um remo e uma vela suplente amarrado no bordo da canoa. Era uma maratona que tinha de cumprir: calculara dois ou três dias no máximo, perdera muitas noites ao relento, sentado nas paredes do antigo Forte de São Jerónimo, junto ao mar, sem dormir, olhando a escuridão, preparando-me e ambientando-me para fazer a travessia, sem largar mãos do remo ou do cabo de escota. A embarcação era demasiado minúscula e, deixada à deriva, podia desequilibrar-me e mergulhar nas águas. E foi o que aconteceu, quando o sono fora mais forte de que a minha resistência e me surpreendeu.

Mas felizmente lá me livrei daquele rodopiante sorvedouro. Lá recuperei o anterior domínio e me fiz de novo à escuridão das águas. Largara à meia-noite da Baía Ana Chaves, disfarçado de pescador para não ser reconhecido - pois sabia que as autoridades, não me autorizariam a meter-me nessa aventura. Tanto assim, que ao regressar a São Tomé, seria preso pela PIDE (policia do regime) e severamente punido com uma pesada coima. De resto, para navegar, desde a baía da cidade até ao Padrão da Espraínha (Água Ambô, junto à Ponta Figo), praia onde terá aportado, João de Santarém e Pero Escobar, foi o cabo das arábias! Fiz o percurso no dia em que se comemoravam os 500 anos: mas o Capitão dos Portos, só muito a custo, me concedeu autorização.

Fazia essa viagem de 40 milhas, ida e volta, por duas razões: por um lado, como meu primeiro grande teste, com vista às futuras ligações entre as ilhas e o continente africano (comprovando assim a minha teoria: de que era possível fazer ligações de canoas em grandes distancias pelos povos africanos do litoral com as ilhas do Golfo) ;

Por outro lado, queria prestar homenagem - não à colonização, de que também fora vítima (principalmente na Roça) mas à heroicidade e temeridade desses bravos navegadores, cujas façanhas, tanto alimentaram o meu imaginário, desde criança e que haviam sulcado, aqueles mesmos mares, a bordo da suas frágeis caravelas. Além de que, só indo ali, arvorando um tal propósito, poderia ser autorizado
VIAGEM CLANDESTINA AO PARAÍSO 
Este o título que eu dei a uma série de artigos, sobre a atribulada travessia à ilha do Príncipe, que na altura publiquei na revista Semana Ilustrada, de Luanda, de que passei a ser correspondente, em São Tomé, graças a essa mesma aventura, com reedição, mais tarde, no Diário Popular (publicações, ambas já extintas) - Mas, retomando o episódio, a que atrás me estava a referir, sobre aquela noite, em que a canoa se voltou, sim, cheguei mesmo a acreditar, quando acordei envolvido no tumulto das águas, que era o fim da minha vida. Felizmente, a minha estrelinha, aquela que seria talvez o meu anjo da guarda, embora num céu encoberto e sem estrelas, não me abandonou.

Mal me livrei das garras daquelas enegrecidas vagas, lá me dispus, pela segunda noite, a encarar o desconhecido, singrando à superfície daquela massa informe e viscosa, ondulante e negra, donde surgiam manchas luminescentes, em cada rebentação ou mesmo escorrendo da pá do remo, devido ao planton, que vinha das profundezas à superfície, em virtude da intensa escuridão. Manchas que ora pareciam arder em fogo vivo, ora branquejavam, por entre sulcos negros e o ruído da espuma que se desfazia. Sim, em torno de mim pairava o absoluto abandono e um cenário de afronta, terrifico; sob um céu turvado de grossos e enegrecidos novelos de nuvens que rolavam desvairados, quase sobre a minha cabeça. Navegando numa canoa, bem mais pequena do que aquela que agora ia carregada a bombordo e sobre o tombadilho do Hornet.

Sabia que, se a mesma se virasse no alto mar, e sendo mais pesada, seria muito difícil voltar a meter-me dentro dela. Mas estava certo que as pirogas estão talhadas para enfrentar todas as situações de mar. Tinha a convicção de que havia sido, com tão primitivas mas seguras embarcações que as ilhas do Golfo haviam sido povoadas. E queria demonstrá-lo. Admiro muito a coragem dos nossos primeiros navegadores, mas a sua audácia não pode colidir, de maneira alguma, com a verdade histórica. Confiava nas ancestrais capacidades de navegação das pirogas.


Do alto das velhas muralhas do Forte de S. Jerónimo, onde tantas vezes olhava a espuma que ali ia rebentar nas rochas negras e contemplava o mar ao largo, sim, muitas vezes ali me envolvi em prolongadas cogitações. E só via o mar... Só pensava, obsessivamente, nas distâncias e nas entranhas do mar.!.. Olhava-o com pasmo e respeito, mas queria sentir-me também parte dele! Ser mais um elemento do mítico e misterioso oceano! Ir por ali a fora numa das ágeis pirogas.! Desvendar segredos esquecidos no tempo!...

Oh, e quantas vezes ali mesmo, não experimentei as estreitíssimas cascas de noz, navegando em frente ou embicando na areia da pequena praia ao lado, naqueles meus habituais treinos, ao Domingo, vindo da Praia Lagarto (ao fundo da descida a caminho do aeroporto), passando em frente da Baía Ana Chaves, Fortaleza de São Sebastião, costa da marginal, Praia Pequena e ponta do Forte de São Jerónimo -e, por vezes, ainda um pouco mais a sul, à Praia do Pantufo.

São Jerónimo era geralmente a baliza de chegada e de retorno ... E, também, muitas vezes ao fim da tarde e pela noite adentro, era o meu local preferido (até por ficar um pouco isolado e retirado da cidade) para me familiarizar profundamente com o mar.

Lembrava-me das façanhas dos pescadores  são-tomenses, dos seus antepassados que demandaram as ilhas, dos barcos negreiros que ali aportaram e também dos nossos marinheiros (antes desse vil mercado) que por aquelas águas navegaram; imaginava quantos naufrágios e sofrimentos aqueles mares, já não teriam causado.

Sabia dos muitos perigos que me podiam esperar - não os desdenhava! - mas entregava-me ao oceano de coração aberto, possuído de uma enorme paixão, em demanda dos grandes espaços e de uma infinita liberdade, tal qual as aves migradoras! Olhava-o como se fosse já meu familiar e meu amigo. Embora sabendo que a sua face, quando acometida de irascível crueldade, havia sido palco de muitas tragédias, havia engolido muitos barcos e tragado muitas vidas. Contudo, eu não ia ali apenas movido pelo prazer da aventura: só por isso, não sei se compensaria... Mas orientado por razões mais fortes

E havia algo, no fundo de mim, como que estimulado por um pendor sobrenatural inexplicável que me fazia acreditar que, mesmo que apanhasse alguns sustos, tal como já havia acontecido em anteriores viagens, lá haveria de sobreviver e de me safar!...

Pois o mar também é generoso quando quer ... Acreditava que haveria de compreender os objetivos pelos quais que norteava o meu espírito e a minha temeridade..


TRAVESSIA PELA ROTA DOS ESCRAVOS - SÃO TOMÉ - BRASIL - PARA EVOCAR O QUE FOI E AINDA CONTINUA A SER SOB AS MAIS DIVERSAS FORMAS
Na Ilha de São Tomé, recebera o melhor apoio e carinho e não queria desiludir ninguém; de forma alguma podia defraudar essa ajuda: a canoa fora mandada fazer a um pescador da Vila das Neves, que derrubou um ocá na floresta e que depois a escavou com o machim e à inchó, tendo sido paga com os apoios recebidos de várias pessoas.

Pois regressara a São Tomé, após a bem sucedida viagem clandestina à Nigéria, sem um tostão na algibeira. Mentalizara-me de que a travessia estava ao meu alcance, sabia que, se precisasse de socorro, ninguém me poderia valer. Não levava meios de comunicação com ninguém. Servia-me apenas de uma bússola, orientava-me por ela, pelo sol e pelas estrelas.Mas era assim que se enquadravam os propósitos dessa minha aventura. Os primeiros povoadores das ilhas, também se orientavam como as aves. E eu achava que valia a pena correr todos os riscos. E nada podia demover-me.
Antes da canoa ser baixada ao mar por um dos guindastes, o comandante chamou-me então à sua câmara onde assinei um termo de responsabilidade. Desejou-me boa sorte e recomendou-me para abandonar aquela área o mais rápido que pudesse: dada a penúria de alimentos existente na ilhota, havia o risco de alguma canoa vir atrás de me mim para me roubar as provisões. Lá fui largado (ao largo, em pleno alto mar) com os acenos dos meus amigos que entretanto fizera a bordo. Para qualquer lado que olhasse, só via o mar azul. Estava sozinho, mais uma vez só podia contar comigo.

DUAS CANOAS REMAM O DIA INTEIRO ATRÁS DE MIM PARA ME ASSALTAR

E os perigos começaram, logo nas proximidades da Ilha de Ano Bom. Mal o barco levantou ferros e zarpou, duas das canoas, que andavam por ali na pesca, avançaram a remar imediatamente na minha direcção. Para evitar esta situação, o comandante do Hornet, ainda chegou arrear a canoa na véspera ao pôr do sol - e até me levou algumas milhas a Norte, para sair daquela zona. Depois começou a navegar em torno do horizonte. Vendo que não havia vento e pairava a ameaça de uma tempestade, voltou aproximar-se e içar-me a canoa. Veio à ponte e disse-me que era melhor passar a noite no barco e ser largado de manhã. Aceitei a sua disponibilidade. Durante a noite, mais um "sermão" para eu abandonar a canoa, mas não me demoveu. De manhã cedinho, mal o sol se erguia a Oeste, uma ordem, em inglês, soava pelo auto-falante: "canoa ao mar!!!"

- O mar estava um bocado agitado; quase se ia partindo ao ser arreada. Do alto do convés, o cozinheiro, curvado da amurada, atira-me uns enchidos sobre a canoa. Não os chagaria a comer, pois o mar mos levaria. E, mais uma vez, lá me despedi e fui ao meu destino. Porém, como o barco voltara a fundear ao largo da ilha, naquela manhã eu estava perigosamente muito perto. E já havia várias canoas as sulcarem as águas.

.
Não tive dúvidas que vinham para me assaltar. Em cada uma delas, dois homens, em tronco nu , com uma pequena tanga pela cintura, não paravam de se vergar e impulsionar o remo. Pela facilidade com que navegavam, deveriam ser pescadores muito experimentados. Felizmente, as correntes favoreciam-me e, os alísios , que sopravam do sul, eram constantes; corria um bom vento. Não havia calmaria. Vela a todo o pano e vento de popa, foi a minha sorte. Chegaram a aproximar-se a menos de uma milha de mim.

Só os perdi de vista depois de anoitecer. Se foram apanhados pelo tornado, que surgiu depois de escurecer, calculo que devam ter tido muitas dificuldades para regressarem à sua ilha. Mas, pelos vistos, a fome obrigava-os a arriscar a vida - e talvez a não se importarem de afrontar a minha - Foi por isso que o tornado me apanhou de surpresa: eu não tirava os olhos de uma estrela a Norte. Nem olhava para as vagas que entretanto começavam a levantar-se: quando, quis colocar a vela de tempo, já era tarde de mais. Uma onda avançara, impetuosamente e submergira-me praticamente toda a canoa e, só Deus sabe, porque não me quis levar naquela noite, tempestuosa, infernal!

DUAS CANOAS REMAM O DIA INTEIRO ATRÁS DE MIM PARA ME ASSALTAR

E os perigos começaram, logo nas proximidades da Ilha de Ano Bom. Mal o barco levantou ferros e zarpou, duas das canoas, que andavam por ali na pesca, avançaram a remar imediatamente na minha direcção. Para evitar esta situação, o comandante do Hornet, ainda chegou arrear a canoa na véspera ao pôr do sol - e até me levou algumas milhas a Norte, para sair daquela zona. Depois começou a navegar em torno do horizonte. Vendo que não havia vento e pairava a ameaça de uma tempestade, voltou aproximar-se e içar-me a canoa. Veio à ponte e disse-me que era melhor passar a noite no barco e ser largado de manhã. Aceitei a sua disponibilidade. Durante a noite, mais um "sermão" para eu abandonar a canoa, mas não me demoveu. De manhã cedinho, mal o sol se erguia a Oeste, uma ordem, em inglês, soava pelo auto-falante: "canoa ao mar!!!"

- O mar estava um bocado agitado; quase se ia partindo ao ser arreada. Do alto do convés, o cozinheiro, curvado da amurada, atira-me uns enchidos sobre a canoa. Não os chagaria a comer, pois o mar mos levaria. E, mais uma vez, lá me despedi e fui ao meu destino. Porém, como o barco voltara a fundear ao largo da ilha, naquela manhã eu estava perigosamente muito perto. E já havia várias canoas as sulcarem as águas.

Não tive dúvidas que vinham para me assaltar. Em cada uma delas, dois homens, em tronco nu , com uma pequena tanga pela cintura, não paravam de se vergar e impulsionar o remo. Pela facilidade com que navegavam, deveriam ser pescadores muito experimentados. Felizmente, as correntes favoreciam-me e, os alísios , que sopravam do sul, eram constantes; corria um bom vento. Não havia calmaria. Vela a todo o pano e vento de popa, foi a minha sorte. Chegaram a aproximar-se a menos de uma milha de mim.

Só os perdi de vista depois de anoitecer. Se foram apanhados pelo tornado, que surgiu depois de escurecer, calculo que devam ter tido muitas dificuldades para regressarem à sua ilha. Mas, pelos vistos, a fome obrigava-os a arriscar a vida - e talvez a não se importarem de afrontar a minha - Foi por isso que o tornado me apanhou de surpresa: eu não tirava os olhos de uma estrela a Norte. Nem olhava para as vagas que entretanto começavam a levantar-se: quando, quis colocar a vela de tempo, já era tarde de mais. Uma onda avançara, impetuosamente e submergira-me praticamente toda a canoa e, só Deus sabe, porque não me quis levar naquela noite, tempestuosa, infernal!

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A pequena ilha Ano Bom, lá ao fundo, parecia um pequeno boné. Fica localizada no Atlântico Sul, a 350 km da costa oeste do continente africano e 180 km a sudoeste da ilha de São Tomé (São Tomé e Príncipe). O território mede aproximadamente 6,4 km (comprimento) por 3,2 km  (largura), com área superficial total de 17,5 km². A actualmente a população da ilha é determinada em 5.008 pessoas. As actividades económicas principais são a pesca e extracção de madeira.. Porém, naquela altura, diziam-me que não teria mais de mil almas, quase esquecidas do resto do mundo, havia muita mortalidade infantil e só vivia um único europeu: um sacerdote, que, aliás, chegou vir a bordo do barco para receber alguma caridade, dada a penúria e escassez de alimentos, que por lá existia. Eu próprio fiz permuta com algumas latas de conserva por cocos e bananas.
Os pescadores vinham nas suas estreitíssimas canoas para vender à tripulação os seus frutos frescos e, no fundo, para matarem a fome. A ilhazinha faz parte da Guiné Equatorial, tal como a de Malabo, ex-Fernando Pó, onde haveria de ir parar (e era o que menos desejava ) visto ser então governada por feroz ditador, que logo me mandou prender: o Sr. Francisco Macías Nguema, um autêntico tirano; mais tarde apeado do poder pelo sobrinho, o actual Presidente, através de um sangrento golpe de Estado. O povo vivia amordaçado e, apenas mantinha, com aquela pequena ilha, uma só ligação marítima anual.
Que será feito agora do atuneiro Hornet e da sua tripulação? De um pesqueiro, que, aliás, segundo me disseram na altura, já tinha alguma história para contar, visto ter chegado a estar aprisionado no Vietname. Os tripulantes foram muito amáveis e até pintaram o fundo da canoa de  azul - estava pintada de negro de alcatrão, mas achavam que era para lhe conferir ainda mais resistência e evitar o apodrecimento. Porém, muitos trabalhos me haveria de dar, por ser uma cor clara que iria atrair os tubarões, que investiram por várias vezes. Também pintaram o nome do barco na ponte da pequena coberta da proa, bem como o símbolo da paz e do amor.

Fiquei com saudades dos dias que ali passei. Guardo boas recordações. A viagem de dia era espectacular mas de noite, o mar alterava-se e até cheguei a marear, devido aos fortes solavancos das vergastadas das vagas e aos cheiros das máquinas. Fui muito bem tratado. E, de facto, lá no barco, a faina era dura mas comia-se bem: a mesa era farta e variada, não faltava nada. Toda a gente se servia em torno de uma enorme mesa rectangular e comia o que quisesse e lhe apetecesse. A temporada era de seis meses e havia provisões em abundância. A jornada era dura mas era paga a dólares. Era uma autêntica babel. Sobretudo oriundos de América Latina.

Mais tarde, quando já não tinha nada para comer e água potável, de noite, até cheguei a sonhar com aquelas boas refeições, mas depois, quando acordava era a desilusão. Olhava para o fundo da canoa e estava completamente vazia: a fome no mar é cruel! Dois bidões de água já vazios, uma toalha, as velas, uma lona, a capa que haviam oferecido e só quase a roupa que trazia no corpo. No entanto, por vezes, o fundo da canoa era uma banheira. À noite sentia um grande desconforto. Fome, sede e ainda por cima dormir mal, é muito violento.

Felizmente que o contentor, onde guardava o gravador, a máquina fotográfica e o pequeno transístor, não tinha metido água e estavam salvaguardados. Porém, nos dias de maior abandono e fraqueza, cheguei realmente a arrepender-me não ter aceitado os conselhos daqueles bravos pescadores... Mas era tarde. Estava ao sabor das águas , aos caprichos da sorte. E não podia dar-me por vencido.

Decorria a época das chuvas e essa era a pior altura para se navegar numa canoa naquela zona. Ainda se fosse na Gravana: o tempo refresca, os ventos são constantes e não há tornados. Coincide com o Verão no Hemisfério Norte. No entanto, eu acreditava que, sendo largado um pouco a sul daquela ilha, na grande corrente equatorial - e bastavam mais umas 20 ou 30 milhas - que ficaria livre das maiores turbulências . Ele porém não me deu essa oportunidade. E colocou-me num dilema: "Ou fica a bordo a trabalhar ou a canoa tem que ser largada ao mar".

Na impossibilidade de navegar para Oeste, decide-me então por não abandonar a canoa e aproveitar os alíseos e as correntes que correm em direcção a Norte, na esperança de alcançar a Ilha de São Tomé e adiar a aventura para outra oportunidade. Só que, ao fazer isso, eu ia realmente apanhar, logo ao fim do primeiro dia e mal a noite havia caído, um violento temporal, que me fez perder a maior parte das provisões e dos apetrechos.

Eu já havia enfrentado tempestades semelhantes nas duas anteriores viagens (nos 3 dias São Tomé ao Principie e nos 13 de São Tomé à Nigéria), pelo que não era uma situação nova para mim: só que o tornado surgiu de repente ; eu não tive tempo de reduzir a vela e uma enorme vaga colocou-me de través, encheu a canoa de água, tendo perdido quase tudo: umas coisas tive que me alijar delas para aliviar o lastro, outras foram levadas pelo vento e pela fúria do mar.
Estava agora a 22 dias, praticamente à deriva. Os remos improvisados, com barrotes do estrado e pedaços arrancados aos bordos da canoa, junto à popa, eram demasiado rústicos para poder navegar com o mínimo de condições. Eis de seguida, o registo de alguns dos momentos vividos nesse longo dia - afinal, um dia, cheio de dificuldades como tantos outros que ainda tinha pela frente.
De referir que, naquela região equatorial, o sol nasce às 5.30. TMG e põe-se às 17.30 da tarde: doze horas de dia e doze horas de noite.Praticamente não há alvorecer nem crepúsculo: a passagem da noite para o dia ou vice-versa, é quase repentina: às cinco da manhã, nas noites sem luar, é noite escura; meia hora depois, em céu limpo, quando a manhã surge descoberta, abre o dia e irrompe o sol glorioso do "fundo" das águas..


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