Algures no Golfo da Guiné, 23 de Novembro de 1975 - Há 46 anos - Jorge Trabulo Marques - Não arrisquei a vida em busca de efémeras glórias e de medalhas, nem as desejo aceitar mas por que me bati por nobres ideais e quis dar sentido à minha vida
| Navegando com a pequena vela de tempo |
Estou muito fraco. Mal me posso levantar: tenho-me limitado às tarefas mais indispensáveis. A pôr a roupa a secar e a despejar a água que se acumula no fundo da canoa. Mas tudo isto é exaustivo!.. Exige-me um inaudito esforço e eu estou muito fraco!.. . Disponho apenas de uns três ou quatro anzóis. Mas não tenho iscas; não vale a pena lançar a linha e o anzol. .
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| Travessia Nigéria S.Tomé - 12 dias - Março 1975 |
Muitas vezes, prostro-me de joelhos junto à borda de canoa para ver se apanho algum peixe à mão. Há sempre peixes de todos os tamanhos à volta da canoa e acompanhá-la. Alguns vêm à cata das lapas que nascem no costado. Mas quando estendo o braço para os apanhar, escapam-se-me; são mais rápidos de que eu! Mais das vezes acabo por desistir e deito-me no fundo da canoa para poupar as minhas forças – Pois, mesmo atolado numa autêntica salmoura, tenho necessidade de descansar. Nem que fosse sobre um tapete de pregos. - Até porque não consegui dormir em toda a noite.
Jornal novo
-HISTÓRIA SINGULAR DE UM NAVEGADOR SOLITÁRIO
25-09-76 Está na nossa frente. Chama--se Jorge Marques
e tem 30 anos. Percebe-se nele qualquer coisa li de estranho. Não, não é um
homem vulgar. Como os iluminados, fala quase em êxtase, conta as
suas odisseias como se recitasse um poema.
Recusou
a vida comum à maioria dos mortais. fugiu do quotidiano chato e medíocre,
mergulhou no mundo do sonho e da aventura.
Náufrago
voluntário e alpinista por vocação as suas proezas transcendem o âmbito e o
«muodus vivendi”. do indivíduo entregue à satisfação das necessidades
imediatas.
(…) Ele
correu perigos que assustariam o mais corajoso, incorreu em temeridades que não
visavam o lucro mas uma meta mais longínqua, Um insatisfeito desejo de se
afirmar e de demonstrar que moram com o homem, e com ele vivem, recursos
insuspeitados e adormecidos.
Não se
pense que nos referimos a um aventureiro gratuito, que apenas pretende chamar
sobre si as atenções, sem objectivos altruístas ou intenções louváveis. Nada
disso, Jorge Marques esteve vários anos em S. Tomé , terra a que ficou ligado
por laços imperecíveis, e as suas iniciativas explicam-se
primeiramente pela vontade firme de ser útil ao próximo.
Concretizemos: os pescadores santomenses são muitas vezes arrastados
pelas fortes correntes, ao perderem a terra de vista deixam que o desânimo os
invada. Ora o nosso compatriota, com uma viagem de 38 dias sem
qualquer assistência , revela-lhes que é
possível sobreviver entregue a si próprio.
(..) No
mundo moderno, Jorge. Marques representa algo de insólito. Pensa este
transmontano ser possível percorrer a rota de Fernão Magalhães
se lhe facultarem os meios indispensáveis. O Golfo da Guiné viu percorrer as
suas águas este navegador solitário, este louco razoável, este sonhador do
concreto.
(…) As
gravações a que procedeu no mar são empolgantes e transmitem o estado de
espírito do homem que se encontra só ê não conta senão com ele e com Deus. A
resistência do homem à fome, à sede e ao desespero, constituem uma constante do
seu relato .. É comovente a transcrição do feito de Jorge Marques, o
qual justificava a publicação de um livro, contendo, em pormenor, o
que a escassez do espaço de. um jornal não comporta.
A descrição dos 38 dias que passou à deriva numa piroga no Golfo da Guiné, se levada ao cinema, daria um filme memorável, principalmente se o realiza dor extrair da odisseia a espantosa variedade de facetas que ela oferece” – Excertos
A fome é terrível! É terrível!... Não sentir nada no estômago, é um sofrimento, muito doloroso!... Valha-me ao menos este ar puro que respiro. Quando me levanto, tenho a sensação que é apenas o ar que me alimenta. Fustiga-me o rosto mas entra-me pela boca e pelo nariz em rijas lufadas, ásperas, violentas, mas muito revigorantes, que me desentorpecem o corpo.| Bandeira de STP - |
A fraqueza é imensa e deixa-me bastante debilitado. Tenho-me mantido num profundo silêncio - Foi um dos dias em que não meti nada à boca e falei muito pouco para o meu gravador.
NASCER DE SOL MARAVILHOSO – PENA QUE A SUA LUZ DEPOIS DE IRROMPER FOSSE TÃO BREVE...
Até por volta da meia-noite o mar manteve-se calmo, com uma ligeira brisa do sul, mas eu sentia-me muito ansioso e não conseguia adormecer, receoso que pudesse ser atirado para qualquer zona da rebentação da costa, embora confiante de que ao menos pudesse passar um resto de noite com alguma tranquilidade. Mas, subitamente, voltei a sentir o ímpeto da corrente de oeste para leste, acompanhada de forte ventania - E jamais tive um minuto de descanso.
De volta e meia, algumas das espadanadas cristas, rebentavam ao meu lado, lançando-me fortíssimos jatos de água e encharcavam-me completamente. Por mais que pegasse no vertedouro, não lograva suster o seu afluxo, que não parava de marulhar e de se acumular. Por isso mesmo, não conseguia arranjar sequer um palmo enxuto, sobre o qual pudesse deitar-me e ter alguns minutos de descanso.. E cai a noite...Escurece o céu e também escurece o mar. E mudam as correntes e os ventos.... Agora ainda mais intensos... Sempre o eterno capricho dos ventos e das correntes.... Para onde me levará esta força descomunal?!... Que poder ou entidade sobrenatural rege ou poderá opor-se a estas forças indomáveis que tumultuam e rodopiam em torno de mim numa zoada enegrecida e da mais confusa desordem?... Forças da Natura que, em vez de se acalmarem com a solidão noturna, recrudescem de violência...
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| Erguendo-me à Luz de Deus nos penhascos da minha aldeia |
| Neves - S. Tomé |

Sei, no entanto, que mesmo que gritasse, ninguém ouviria os meus gritos - Serei porventura a mais desgraçada e abandonada criatura que se pode ser na vida. Mas eu quero viver. Viver até à mais débil energia, até ao último sopro de vida. Há, porém, uma realidade, incontornável, que eu não posso ignorar: a morte está sempre ao meu lado. Umas vezes mais terna e sedutora, ofuscada pela beleza das manhãs e tardes calmas e deslumbradas, quando as águas se aquietam, brilhantes de escamas fugidias de pérolas e de rubis. Outras sob o disfarce de crepúsculos de oiro, tingidos por aguarelas e transparências de vitrais ou até sob a capa da luz branca de luas enormes e nostálgicas que vagueiam e espreitam, lá do alto, por entre grossos novelos de nuvens, em límpidos céus de veludo, com lábios sedutores de um brilho de inigualável ternura, namoro e mistério. Ou, então, como agora, com a sua face mais hedionda, completamente desfigurada e atormentadora, possessa e atiçada pela crina de ventos soltos e endiabrados.
A morte?!... Como posso eu temer a sombra da minha própria sombra se nem sequer a enxergo?... Que diferença fará a minha triste figura das sombras soltas, do confuso tumulto que campeia à superfície da conturbada planura que a espessa noite impele, transfigura e oculta?!... Noite sobre a qual vogo e ninguém me distingue e nem eu vejo o fundo do madeiro que piso!... Que contraste haverá de mim e das trevas que ondulam por toda a parte e têm como coberto o negrume de um espesso e pesado céu?!...Oh, sim!. Haverá maior solidão do que aquela que povoa o meu coração de mil sobressaltos, angústias e de incertezas?!... Sim, que me confunde e esmaga sob o teto da mesma assombrosa atmosfera em que vagueio, sem rumo e pedido!..
Oh, como posso eu virar as costas à Soberana Morte, se ela me chamar?!... Até porque, se o mar me levar, meu corpo, nunca ficará tão sozinho como agora se encontra....Há uma cova continuamente aberta, que já recebeu milhões de vidas e não se importa de continuar a receber ainda muitas mais vidas! - Que foi a sepultura dos milhares de escravos que, nestes mesmos mares, agonizaram horrivelmente, nos escuros porões dos barcos negreiros ou foram atirados vivos para o tumulto das ondas!.. A morte quando bate a porta, não distingue o escravo do escravizador, do pobre do rico. Levou corsários e piratas, criminosos algozes, sem escrúpulos, que não chegaram a ser mais valentes com as tempestades de que com as suas vítimas. Não poupou e não se condoeu de corajosos e intrépidos pescadores, pilotos e marinheiros. Oh quantas vidas, por aqui já não terão parecido, na vastidão do "Grandíssimo Golfo", nestes mesmíssimos mares de outrora, do passado e do presente!... Mares eternos" Mares de sempre! Mares de inesperados tornados e perigosos tubarões!
Na verdade, já lá vão algumas horas depois que o sol se pôs, e eu continuo sem me poder deitar. Sinto-me exausto e possuído por um desejo irresistível de dormir. Estou para aqui enrodilhado como um miserável trapo. Abrigado debaixo de um toldo para me defender dos espirros das ondas, porém, do que eu não consigo proteger-me e defender-me, é da água que entra através da rachas. Há a que aflora pelo sítio onde assenta o mastro e também ainda a que atravessa as rachas que estão acima da linha das águas. Só que, acima dos 40 cm submersos, os 20 cm que restam, é muito pouco. Entra lentamente mas, como não pára de entrar, vai-se avolumando. E eu não disponho de bombas para a escoar; tenho que o fazer eu com o balde ou com a espátula.Está a molinhar. Vejo relâmpagos a rasgar o negrume das distâncias. Com o barulho das ondas ainda não ouvi o trovão, mas não deve tardar a fazer soar por aí a sua orquestra. Meu Deus!...Este mar não me dá tréguas nem descanso!.. Pelo que vejo, espera-me um resto de noite, ainda mais confuso e atribulado. Uma noite, açoitada por um vento furioso, que parece não se acalmar. Vejo as habituais manchas luminescentes, aqui e além no ondulado negro das ondas, brilhos confusos e terríficos, vindos de mil direções, e certamente também das profundezas, que refulgem, que reluzem e tremeluzem de onde em onde. Que aparecem e desaparecem. São as manchas do plâncton e certamente da fauna marinha das profundidades que o persegue às horas mais escuras e sinistras, que aflora à superfície. Quando fiz a travessia de São ao Príncipe é que eu fiquei arrepiado. Era simplesmente pavoroso ver as ondas em vez de a branquear de espumas, vê-las franjadas de lume. Com explosões que faziam lembrar um mar em chamas. Até a pá do remo parecia sair de um mar a arder. Ou saída da corrente do magma de um vulcão explodindo e cuspindo a sua lava. Estas imagens são muito comuns nos mares tropicais. Agora já estou habituado a esses estranhos brilhos. Não é isto que me assusta ou preocupa. Mas a chuva que apanho no corpo e as tempestades noturnas que só vêm dificultar ainda mais a minha segurança e sobrevivência.




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