Jorge Trabulo Marques
ESTES MEUS OLHOS VIRAM O QUE MUITOS HOMENS NÃO VIRAM E NÃO ENTENDEM -38 DIAS E A NOITES A FIO NUMA FRÁGIL PIROGA - Que depois de sofrer um violento tornado, me deixaria ainda mais desprovido de quase tudo.
Coisas do mar, que os homens não entendem:
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpagos que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões que o mundo fendem,
Não menos é trabalho, que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.”
(Canto V dos Lusíadas, Luís da Camões)
Navegar numa frágil canoa não é a mesma coisa que navegar num iate onde o piloto automático até pode fazer todo o trabalho.. Ali, é necessária uma atenção permanente. Podem fazer grandes travessias e enfrentar as condições mais adversas - e era isso que eu queria demonstrar e já tinha demonstrado nos 13 dias de mar à Nigéria, tal como o teriam feito os primeiros povoadores das Ilhas do Golfo, embarcados do litoral em grandes pirogas e que ainda hoje se constroem na costa de África - Não em S. Tomé, porque as roças ocupavam tudo e não permitiam o abate das grandes árvores, além disso, puxar as canoas de encostas íngremes, não é tarefa fácil, enquanto o litoral africano é vasto e as possibilidades são maiores - Mesmo assim, aquele tamanho, é pouco usual nas ilhas e, quando os pescadores as utilizam, são precisos mais braços - Se é a remo e à vela, no mínimo, são necessárias duas pessoas. E até porque é muito arriscado, dormir sem mais alguém a zelar pela sua navegação - mesmo que se habitue a ter o sono dos gatos, era o meu caso.
Baleia à vista e tornado a formar-se no horizonte, depois de umas horas de podre calmaria - Aves que vagueiam pela imensidão dos mares, antevendo a tempestade, apressam-se a procurar abrigo nos destroços - E a minha piroga, sem rumo e meios para a governar, não passava de mais outro destroço.
Raramente se dorme um sono prolongado e profundo. Os sentidos estão sempre no seu alerta máximo. À mínima anomalia despertam imediatamente. Basta que um tubarão ou um grande peixe, surja lá do fundo dos abismos e roce por baixo do costado. Uma baleia se eleve do seu mergulho, a escassos metros - e isso iria acontecer-me mais tarde. Ou uma vaga faça um estrondo maior. O que é frequente. E a grossura da madeira é tão estreita - a separá-la daquele misterioso mundo das águas oceânicas - que não há som algum que não a trespasse.
Não se deve perder a calma - e só a perde quem não tiver o mínimo de experiência do mar. Mesmo assim, os elementos em fúria, o mar - quando turvado - mete um temível respeito e, nem o mais afoito, deixa de ficar inquieto ou recear o pior. A minha tarefa era pois hercúlea, tal como já haviam sido os 13 dias solitários de S. Tomé à Nigéria. Porém, esta canoa não era tão boa como a outra (estava desequilibrada, só a pude experimentar, quando me fiz à aventura) e o tempo iria trair-me. Mal se pôs o sol - o crepúsculo no equador é muito curto - a noite avançou rápida, espessa e tempestuosa - E tudo se complicaria, a partir daí.
- Na imagem ao lado, o meu baú e o remo improvisado, com um pau e alguns pedaços arrancados à pequena cobertura dos bordos
Ia a velejar a todo o pano pela noite negra adentro, seguindo a força da corrente e impelido pelo vento dominante - vento de popa. E eu devia tê-lo enrolado um bocado ou substituído por uma vela mais pequena - risar a vela e não o fiz. Não tive esse elementar cuidado. Nem sequer olhava para a bússola, fixara uma estrela. E quase nem queria saber da tempestade que se aproximava do sul - à minha retaguarda. Os meus olhos fixavam-se a Norte - pelo menos enquanto o céu não ficou completamente toldado. Os relâmpagos deram-me o primeiro sinal mas eu não fiz caso. Só pensava em navegar....
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