
Recebeu-me de uma forma muito amável, no alto das escadas, muito sorridente, naquela sua expressão, a que o público também se habituou, sempre que aparecia em palco. Amália era íntegra, a hipocrisia e o fingimento não faziam parte do seu carácter. No fundo, era assim para toda a gente - para os amigos e gente anónima. Amália não tinha duas faces. Só quando cantava o fado, então é que o seu rosto era a dor ou a alegria das composições que interpretava.
Logo que transpus o último degrau, cumprimentou-me com um beijinho, levando-me de seguida para junto de um grupo de amigas, que estavam lá mais à frente, a um canto da casa do lado esquerdo e junto à janela, que corresponderam simpaticamente. E lá passei um grande bocado da tarde. Curiosamente, não se falava de outra coisa senão de sexo. Claro, de uma forma trivial: de fofoquices. Sem qualquer carácter obsceno. E foi com estas palavras que me apresentou às suas amigas: "Você também gosta de falar de sexo?!... Elas são marotas!... Não faça caso que elas sabem muito mais do que eu!..." - "Estejam à vontade"- respondi. "Eu também gosto de conversar sobre essas coisas...

E, de facto, mesmo reconhecendo que a conversa andava à volta de questões relacionadas com o amor, o sexo, episódios de namoricos, cenas de filmes românticos e coisas do género, tive a percepção de que, Amália, estava longe de imaginar a pergunta marota que eu levava engatilhada - Costuma-se dizer que as boas reportagens são aquelas que vêm ao encontro do repórter e não as programadas - E, em boa parte, foi o que sucedeu..
Não manifestei a menor pressa em fazer qualquer registo no gravador. Por algum tempo, quase me ia esquecendo que estava ali para entrevistar Amália. Direi que não fui um participante activo nos diversos diálogos mas um ouvinte muito atento - Pois, embora bem recebido, não fazia parte do seu núcleo íntimo das suas amizades . Mesmo, perante um ambiente, tão descontraído, tinha de saber ocupar o meu lugar - E, quando se está perante alguém que diz coisas engraçadas, que nos dão prazer, é preferível falar menos e ouvir mais. Foi esse o meu papel
De resto, Amália, até nem era das pessoas que mais falava. Gracejava, divertia-se dando umas piadas para apimentar a conversa.
Pelo que me apercebi, aquela restrita tertúlia, reunia-se com Amália, não tanto para lhe ouvir as histórias ou desabafos, mas para lhe servir de corte - Tal como os bobos e as damas na corte dos réis. Adoravam Amália e reconheciam-na como a diva, como a rainha. Estava lá também o irmão Vicente, a sua irmã Celeste e a pintora moçambicana Maluda e mais duas amigas. Não as reconheci, mas pareceu-me que eram as visitas especiais daquela tarde. Mas quem se impunha era Maluda - Sentia-se tão à vontade, que parecia fazer parte da casa, tal como o irmão e a irmã da Amália.
Maluda era de complexão forte - a saúde é que acabou por ser fraca e a levou cedo. Fazia parte do restrito grupo das pessoas íntimas de Amália - Também se promoveu à sua custa. Se não fosse essa relação estreita, estou convencida que as famosas janelas, pintadas pela artista moçambicana, teriam ficado no anonimato.
Não tinha papas na língua. Era ela a moderadora, quem trazia os temas à baila. E também a voz mais troante, até parecia ser a governanta da casa. O Vicente ria-se muito mas quase não abria a boca. A Celeste, também sempre muito alegre e participativa. As outras duas amigas, riam-se como as crianças, por tudo e por nada: - Riam-se do que contavam e das risadas que provocavam
Amália, mesmo não sendo a que puxava pelas histórias, era a voz que mais sobressaía. Sempre bem disposta. E com os seus apartes. Mas não falava dela. Se, no pequeno grupo, imaginássemos, em vez de pessoas, instrumentos ou uma sessão de fados, dir-se-ia que, as demais presenças, eram simplesmente instrumento de cordas, as guitarras que acompanhavam, e, Amália, a eterna cantadeira - Amália denotava uma grande sensibilidade e curiosidade em ouvir as pessoas que faziam parte do seu núcleo de amizade e gostava de as pôr a falar. As pessoas inteligentes não gostam de perder tempo a expandir-se em trivialidades. Mas sabem ser socáveis. E gostam de ouvir.
Deixava falar as amigas . Mas não se distanciava do diálogo. Era participativa. E as suas palavras (mesmo não cantadas) soavam com a sonoridade, que lhe é própria, tal como só ela as sabia dizer: soavam à voz inconfundível da grande fadista - A voz da Amália era sonoramente bela, falada ou cantada. O falar de Amália era tão agradável como os fados cantados - Como ela, dificilmente surgirá algum dia quem a imite.Já ali havia estado por duas vezes, em sua casa, mas apenas durante o tempo tomado para as entrevistas - Agora, de forma algo inesperada, passava ali uma tarde. - Sentia-me como se fosse uma visita habitual da casa da Amália - Até que, por fim, e vendo-a tão bem disposta, achei estarem reunidas as condições para lhe colocar algumas questões(delicadas) sobre a sua vida pessoal - "Como havia sido a sua primeira relação sexual"
E, não querendo que o barulho das outras vozes, pudesse afectar a qualidade gravação (mas sobretudo para estarmos mais à vontade) - perguntei-lhe se não se importava de nos sentarmos nutro sítio - Fui então que me conduziu para o lado oposto da sala, próximo do último degrau da escadaria, onde nos sentámos junto a uma pequena mesa, com o gravador sobre a superfície da mesma.
"Então diga lá o que me quer?!..." - pergunta-me ela, visivelmente bem disposta. Respondi-lhe: "Vamos falar sobre o que estavam a falar... Umas palavrinhas da Amália...Diga o que quiser sobre o assunto...E seja sincera como costuma ser e estavam a ser..Eu gosto muito de a ouvir cantar e também falar". Tive o cuidado de não usar o termo sexo para não lhe criar alguns antagonismos. Pese o facto, como disse, da conversa se haver estendido, praticamente sobre fofoquices desse género.
Sem dúvida, deram-me muito prazer aqueles momentos de convívio- No entanto, o meu objectivo principal era a entrevista, que eu não queria perder. Não tirava da mente esse desejo porfiado. Diria que agi (sem falsa modéstia) um pouco como o prestigiador. E, antes de contar o resto da história, vou explicar de seguida - talvez as razões de algumas dessas propensões
Devo dizer que, na conversa prévia, que tivera de véspera com Amália Rodrigues, eu fora um pouco omisso. Mas também devo sublinhar que não a traí porque as perguntas foram sempre muito claras, só que progressivas... Ao mesmo tempo que não deixava de a fixar... Encantado pelo que me ia dizendo... Não tanto pelo facto das suas confissões mas pela sua sinceridade. Claro que ela estava absolutamente segura do que dizia....Longe de se poder afirmar que estivesse hipnotizada... Só que se esquecera que havia ali um gravador... Mas, às tantas, lá se deu conta para onde estava a resvalar... e despertou para outra realidade... Depois foi um grande bico de obra, como explicarei adiante... Tive que sair de lá a correr... - Quase me ia precipitando ao descer as escadas... ela e a sua "corte" correram todos atrás de mim. Vieram até à rua... Só descansei, quando apanhei um táxi... E até o taxista se apercebeu, perguntando-me o que é que se havia passado à porta da Amália.
A Maluda era a mais danada e inconformada...Mal eu dei ares de desandar, correu logo atrás de mim, como uma cavalona... "És mais parva do que ele!... Foste logo a falar da tua vida pessoal!..." A sua ira dava em recriminar a Amália .Já nem sequer eu era o mau da fita, mas a sua amiga.

Estou convencido que se me apanhassem, tiravam-me o gravador e ainda levava uma tareia. A entrevista ficaria a meio. Ficou aí nuns 10 minutos. A Amália arrependeu-se e quis tirar-me a cassete e o gravador... "Sou uma figura pública!...Mas que tonta estou eu!... Que disparates estou eu para aqui a dizer?!..." Ainda tenho estes desabafos gravados. Ora, mas que culpa tinha eu de dizer aquilo que não lhe convinha dizer?!... Era adulta e crescida. De resto, até achava que não havia dito nada especial ou de escandaloso... Mas ela subitamente muda de opinião. Ainda lhe propus desgravarmos e começarmos outra entrevista, ainda anuiu mas acabaria por não aceitar. Eu é que não podia era ficar sem o gravador, porque não era meu mas da estação onde trabalhava - Tirou-mo das mãos. Tentou tirar a cassete do seu interior mas a mola estava partida e não saltava para fora.Eu disse-lhe: "Amália, tenha calma... Eu dou-lhe já a cassete... Dê-me o gravador por favor que não é meu ou então vamos começar de novo..."
Ela ainda chegou a concordar... Só que depois apercebeu-se que eu não estava a desgravar a entrevista ... Amália tinha um sexto sentido muito apurado.... Só era enganada se queria... Era muito inteligente e muito sensível. Ela quase adivinhava o que ia na cabeça das pessoas com quem falava... Fiquei com essa impressão... Tive esse eco... Ela captou os meus pensamentos como se fosse um radar a captar as mensagens do inimigo... Eu não queria perder o primeiro registo...Até para não ficar sem nada... Sobretudo à medida que ela própria valorizava a entrevista, a que eu até aí não atribuía nada de especial E Amália apanhou-me a vibração... Grande mulher!...Tinha essa ideia fisgada e ela pressentiu-a.. Não tive a menor dúvida. E já não havia nada a fazer senão procurar recuperar ao menos o gravador. E mais se convenceu da marosca, quando eu lhe disse: "Bom mas temos que nos calar senão vai ficar tudo o que agora estamos a dizer..."
Ficou então duplamente ainda mais preocupada e com a sensibilidade à flor da pele.... Rapidamente fez a leitura de tudo o que ia na minha cabeça... Subitamente senti-me como que desmascarado... Mas também nunca dei o flanco e procurei sempre proteger o meu tesouro...Se há coisa que poderá deixar mais frustrado um jornalista é ficar sem a sua entrevista ou sem a sua reportagem. Quantos não recolhem importantes "furos" de gravador escondido ou câmara oculta, mas o meu gravador estava ali pousado sobre a mesa. Ambos estávamos sentados e não havia ali nenhum jogo escondido. Não estava a cometer nenhum atentado ou crime à honra da Amália.
Já havia passado por uma experiência, com quase idênticos contornos, com as confissões de um elemento da ETA, em Las Palmas. Deu-me a entrevista à noite (contando-me como ele e o seu grupo haviam assassinado um general em Madrid - olhos vendados e de cano de pistola apontado aos ouvidos , jogando à roleta russa ), mas, o diabo do sujeito, pouco depois, arrependeu-se e foi bater ao meu quarto para que lhe devolvesse a cassete. Disse-lhe que lha entregaria de manha. Só que eu levantei-me mais cedo e mudei de pensão. Era das mais modestas da cidade onde não eram pedidos elementos de identificação pessoais.
De facto, Amália tinha razão: ela já não confiava em mim nem no próprio gravador: terá pensado que, além da cassete, ele esconderia algum segredo. Estava muito desconfiada. E realmente já não havia apenas um registo mas dois: o da entrevista, de que ela se arrependeu e depois os lamentos dela, as suas justificações, durante vários minutos. Foi então que me voltou apanhar o gravador: "Você não leva o gravador!!!... Vá à sua vida que não leva o gravador!!... A mim não me engana!!..." Bom, nisto o grupo (que até aí se manteve indiferente junto à janela) pára de conversar e faz-se um silêncio sepulcral na sala... Já só se ouve então a Amália a dizer, meia arreliada: "Você não leva o gravador! Vá à sua vida!.."e eu a pedir-lhe, insistentemente, que mo devolvesse. E a Maluda, que já tinha olhado várias vezes para nós e parecia algo desconfiada de que havia por ali gato, pergunta, com voz alterada e meia zangada: "Amália!... o que se passa?!!...O que é que esse gajo te quer fazer?!....Eu já corro com ele!!!.. ...Já trato dele!!.."
Vendo a ameaça iminente da presença da Maluda, seguida pelo grupo, e quando ela lhe responde. "Eu disse umas coisas parvas e não quero que ele leve o gravador!.. Ele não vai levar o gravador!...Não vai levar o gravador!... quero que ele se vá já embora!" Pois bem, aproveitando então o instante em que ela olha em direcção à Maluda, sim, apanhando-a distraída, tiro-lho o gravador e desato a fugir escada abaixo.
Numa grande noite do fado, ao passar frente ao camarim, nos bastidores do Coliseu dos Recreios, ela viu-me: "Mas o que é que você anda para aqui a fazer?!!..." - Tive que me escapar imediatamente dali, antes que fizesse algum escândalo. Mais tarde fizemos as pazes: foi no lançamento do livro de Victor Pavão - "Uma Estranha forma de vida", que decorreu na Adega Machado. Autografou-me o livro e deu-me um beijinho muito querido. Depois pousou expressamente para mim, à frente do retrato da Severa – Obrigado Amália Rodrigues por tão belo momento, cuja foto guardo como um relicário. Também fazia anos em Julho e era do signo Leão, tal como a Bethe. Já vi que cada biógrafo apresenta a sua data, mas creio que você me disse que fazia anos no dia 26 de Julho. Mas também já não estou bem certo...
Adorava ter sido seu conselheiro. Vi que tinha um fraquinho pela astrologia. E eu também sou um curioso dessas questões. Pois ainda falámos sobre o assunto. Fui o Rasputin de várias damas que me foram apresentadas pela bethe - a russa Ludmila, no Ritz, é que me catalogou desse alcunha. Elas queriam mais alguma coisa: que eu fizesse feitiços aos maridos... pelas mais diversas razões. Mas era consigo que eu me teria sentido um príncipe numa corte real. E olhe que gostaria apenas de ter estado no papel de um mero pajem ou animador de convívios. Marimbar-me-ia para o resto. Mesmo já com a idade que tinha. Sim, não era o sexo... Mas a presença fascinante da sua personalidade!... Nunca mais no mundo vai aparecer figura igual!.
Amália tinha também o seu lado de vespa quando subia aos arames... Que eu dei-me conta disso... Zangada era como uma leoa da selva... Mas, no fundo, ela era mesmo a grande diva: não apenas do fado mas como pessoa. Fora bela, sorridente e escultural, quando nova. E, mesmo quando os anos já avançavam, até parecia que nada nela havia mudado: mais ainda: firmara-se no seu rosto, no seu inigualável perfil, o sorriso, a expressão, o olhar entre o alegre e o triste, a candura e a natural beleza, tal como o escultor que eterniza o instante mais nobre e magnífico do busto de uma rainha ou de uma princesa.
Muito determinada e senhora do seu querer e das suas ideias. Era forte como uma padeira de Aljubarrota mas ao mesmo tempo tão frágil como a flor mais bela de um maravilhoso jardim. Esse é o tipo de mulheres que eu sempre mais admirei. Paradoxalmente, em vez de serem os seus namorados a perderem a cabeça por ela, afinal foi a Amália que chegou quase a suicidar-se por um deles...- E tanta vida ainda à sua frente!... - E logo num primeiro embeiçado!...Ele não merecia tão alto suplício, como, de resto, ela reconheceu. Que desastre, mais fatídico, não teria sido para ela, para o fado e para todos quantos ainda hoje a veneram e admiram!... Espero, todavia, que, quando reencarnar e decida cá voltar à companhia dos terrenos, para uma nova fase evolutiva, tenha aprendido melhor a lição...
Na verdade, a sua vida foi mesmo "Uma estranha forma de vida" - Mas que o destino felizmente soube preservar: "cantarei o fado até que a voz me doa" . E, de facto, só a morte lhe calou a voz mas não a memória e a fabulosa herança dos fados que nos legou.
Os milhões que a adoram e a continuam a idolatrar têm razão, porque ela era inimitável.. O seu nome e a sua voz, agora continuam ligados a uma estação de Rádio – A Rádio Amália, em tão boa hora, lhe dedicaram. Ela partiu mas a sua voz é eterna. Não está connosco fisicamente mas eu estou receptivo às comunicações do seu espírito, quando ela quiser....Quando me apanhar, naquelas noites, lá pelos penhascos da minha aldeia, dialogue comigo, minha alma querida!
Repito o que disse: conservo a gravação mas até hoje nunca a divulguei e, por enquanto, não o tenciono fazer, por respeito à sua memória. Pessoalmente não vejo que me declarasse algo de especial ou de escandaloso. Ela mudou, porém, de opinião, que eu respeitei. Se um dia revelar alguma coisa - parcial ou totalmente, será todavia neste site - Mas nunca aquilo que eu considero que ela não gostaria que fosse além da sua intimidade.
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AMÁLIA É O HETERÓNIMO DE PORTUGAL - DISSE O POETA
"Este é o livro do sorriso da Amália. Eu creio que se podia fazer um estudo sobre o sorriso da Amália. Porque, o sorriso de Amália exprime, simultaneamente, o que em nós há de sorridente e de triste. Porque, mesmo por baixo do não sorriso, vislumbramos dentro, o sorriso que tem sido como a voz , evidentemente, e com todo o fascínio da sua presença, um dos grande segredos do mito que é a Amália, do milagre que é a Amália e da grande sorte de todos nós sermos seus contemporâneos"
"Este livro leva-nos até à infância de Amália. Revive os lugares, as pessoas e, sobretudo, é um documento indispensável para compreendermos precisamente o seu extraordinário percurso"
"Falar de Portugal ou dizer português em qualquer parte do mundo é imediatamente ouvirmos como um eco o nome de Amália. Eu já disse uma vez que Amália é um heterónimo de Portugal" - David Mourão Ferreira
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