Jorge trabulo Marques - Jornalista - O lado menos conhecido do poeta - Do repórter que foi e de que não há registos destes seus trabalhos em antologias ou na Internet - Herberto Hélder, em Angola, “Sob o signo dos Peixes” com os pescadores dos dongos da baía de Luanda - Repescado por Jorge Trabulo Marques - jornalista - Caso faça uso de algum texto, não se esqueça de citar a fonte - Pois foram horas gastas na transcrição - linha a linha - neste trabalho. - Além da composição.
Dizia Herberto Hélder: - “Houve uma vez um senhor chamado Morávia , autor
de romances e de ensaios. Também escrevia reportagens Há quem diga que sabia
dos ofícios. Esse senhor reivindicava para as suas crónicas um estilo
implacavelmente narrativo e directo, conforme convinha à própria dignidade dos
acontecimentos. A secura seria o seu privilégio- Também era preciso sabê-lo
ler. Sabia-se, e com isso ganhavam os jornais e os leitores que, por acaso, o
que queriam era compreender. Pois foi assim que Morávia começou a sua crónica
sobre o evento mais sensacional do ano: «Os· americanos aterraram, hoje às tantas horas, na superfície da lua» Por
muito que se não .credite, o repórter não citava qualquer poeta.
Julgo -
também - que a literatura é a mais corrosiva das lepras jornalísticas. E querida dos frustrados que
naufragaram nas redacções da imprensa generosa.” Herberto Hélder - 1971
VI LOGO QUE
HAVIA NA SUA ESCRITA ALGO MAIS QUE O REPÓRTER FACTUAL – POESIA E INQUIETUDE E FILOSOFIA.
A primeira
vez que me apercebi, de que o então repórter, Herberto Hélder, era algo mais que o vulgar jornalista, de que o mero enviado a fazer uma reportagem sobre os
pescadores da baía de Luanda (assunto que me tocava particularmente, dada a
minha estreita ligação que mantinha com os pescadores santomenses e as suas
pirogas), sim, mas que também havia nele
o talento e a subtileza de um remanescente
poeta e filósofo, foi quando li na revista Notícia, uma reportagem com
este título: SOB
O SIGNO DOS PEIXES
–
“Entre os perigos de uma despersonalização do
trabalho humano pelas exigências tecnocráticas e as insuficiências do labor
artesanal, a aspiração é a mesma: o prazer de estar no mundo” – Lide da REPORTAGEM
DE HERBERTO HÉLDER // FOTOS DE JOAQUIM CABRAL - Cujo conteúdo tomo a liberdade de
transcrever integralmente, mais à frente, à exceção das fotos, que irei ilustrar com algumas minhas e com outras antigas, que fui buscar à Internet,
dada a deficiente qualidade das copias
onde pude consultar o exemplar da citada revista.
Na verdade, depois que li, essa quanto ousada como excelente reportagem, nunca
mais me esqueci do seu nome. Infelizmente, um grave acidente, no carro onde era
conduzido para uma reportagem, ao serviço daquela extinta revista semanal, tornaria
efémera a sua colaboração de
redator e repórter.
HOMENAGEM PRESTADA PELO AUTOR DESTE SITE - NOS TEMPLOS SO SOL, O ANO PASSADO NO EQUINÓCIO DA PRIMAVERA - A Herberto Hélder e Friedrich Hölderlin
SOB O SIGNO DOS PEIXES
"Alguns caranguejos, algum peixe miúdo. Coisa de pobre. que nem dá para negócio. O esforço dos músculos obedece ao ritmo de uma toada onde surge a mais viva poesia. O negócio procura-se como um jogo cuja coluna vertebral é uma surpreendente honestidade"
ALGUNS nostálgicos da literatura optariam por uma
de três ou quatro maneiras,
suspeitas de mostrarem estilo, para
começar uma crónica sobre pescadores. Fariam talvez uma incursão pelas éclogas ditas piscatórias: não ficaria mal de todo uma
citaçãozinha de Bocage, por exemplo. Ou – quem sabe? - falariam da emblemática
cristã lo Peixe, dizendo que, historicamente, ela se deveria a terem sido
pescadores os primeiros apóstolos. À margem, comentariam o valor iniciático dos
símbolos. Porque o título se prestaria, lançar-se-iam, porventura, na exegese
astrológica, e teríamos: os Peixes são um signo animal, duplo e de água.
Qualquer das hipóteses abriria campo para uma retórica
dramatizante do quotidiano, sobre a pompa cultural. Podia pôr-se por cima e pelos lados um esvoaçar lírico de evocações e inovações. Para servir quente.
E uma receita destinada a quem não possui muitos respeitos
pelos simples factos que, em sí mesmos, na sua objectividade, contém a carga
dramática que nenhuma literatura lhes proporcionará.
Houve uma vez um senhor chamado Morávia , autor de
romances e de ensaios. Também escrevia reportagens Há quem diga que sabia dos
ofícios. Esse senhor reivindicava para as suas crónicas um estilo
implacavelmente narrativo e directo, conforme convinha à própria. dignidade dos
acontecimentos. A secura seria o seu privilégio- Também era preciso sabê-lo
ler. Sabia-se, e com isso ganhavam os jornais e os leitores que, por acaso, o
que queriam era compreender. Pois foi assim que Morávia começou a sua crónica
sobre o evento mais sensacional do ano: «Os· americanos aterraram, hoje às tantas horas, na superfície da lua» Por
muito que se não .credite, o repórter não citava qualquer poeta.
Julgo -
também - que a literatura é a mais corrosiva das lepras jornalísticas. E querida dos frustrados que
naufragaram nas redacções da imprensa generosa.
«Vê como eles não têm pressa» - disse-me um amigo,
apontando para três ou quatro dongos que vagarosamente passavam pela bala, ora
a vau, ora a remo descansado. Observação atirada um pouco· ao ar, mas onde se revelava
o espírito que anima o artesanato, em oposição às velocidades industrias. Esse
vagar - o valor da ligação íntima do corpo do homem à tarefa ou à obra - dá ao trabalho artesanal
(que inevitavelmente acabará por ser devorado pela produção serial) um encanto,
um pitoresco, e mesmo um sentido religioso e ritual, que fascinarão uma nossa
sensibilidade ao que é natural e vivo.
Por outro lado, algures, no extremo da festa tecnocrática,
começa-se a contestar uma certa moral de
trabalho despersonalizado e do ganho , e vê-se que, com as suas produções em
bruto, o homem não é mais feliz. Contudo, há alguma coisa a dizer acerca da
felicidade dos que andam vagarosamente pelas baias. É que também não são felizes. Na verdade,
labutam duramente e vivem mal.
A respeito deste conflito da técnica e do
artesanato, e da realização do mais fundo desejo do homem - a alegria de viver
- propôs alguém uma generosa e bela utopia. O homem é um ser lúdico e erótico
mas necessita de sobreviver, e não se deve considerar um mal tudo o que a
técnica lhe tem oferecido. Um dia a máquina produzirá em seu favor, e o
homem, liberto da velha sujeição e da
moral sobre ela instituída, poderá criar, em termos concretos, a nunca relegada
aspiração - a Idade de Ouro. No jogo e no erotismo encontraria ele a sua
legítima expressão vocacional
Não é talvez isto um sonho ligeiro, mas ligeireza
será decerto ter hoje por felicidade a vida arcaica dos pescadores que nos seus
dongos cruzam a baía (com um ritmo e uma estranha graça rituais. desalojados
dos fundos do tempo). O encantamento que acordam em nós subtrai a consideração de uma existência penosa.
Já algumas vezes os víramos, de noite, estendidos
na areia da Ilha. Enquanto as redes esperavam o peixe, eles dormiam. Voltariam depois ao mar, para levantá-las. Esta pesca. artesanal, decerto menos
produtiva e rendosa do que a praticada pelas traineiras, apetrechadas já com
radar e dispositivos para recolha das redes, ainda se faz em escala
considerável em Luanda. Julgamos que também noutros pontos do litoral angolano.
No entanto, como verificámos, algumas alterações têm vindo a ser incluídas no
apetrechamento. Há quem tivesse substituído o dongo, embarcação parente da piroga,
por barcos semelhantes aos dos pescadores metropolitanos - chatas mais estáveis
e eficazes. Nalgumas delas instalaram-se mesmo motores.
Os amadores de pitoresco estão alarmados, mas os
pescadores com quem conversámos confessam-se satisfeitos-; com as inovações.
Dizem que pescam mais e com menor esforço. Não lamentamos, com certeza a
decepção dos coleccionadores de imagens folclóricas, mas inquieta-nos (..) não apenas o que diz respeito aos
pescadores da baía de Luanda, evidentemente que o trabalho humano esteja a
perder a sua qualidade de acto existencial , de jogo e rito para transformar-se
num pesadelo de onde se exclui todo o prazer
de uma inserção natural no
mundo. Este problema, por uma parte, e a
melhoria que o labor mais racionalmente organizado traz ao ser humano, por outra - levantam na ponderação de cada um
embaraços que se não resolvem facilmente. Talvez seja mesmo o tal
utopista e único a favorecer-nos alguma
esperança.
Não é este, entretanto, o tema escolhido para a
nossa reportagem. Desejamos marcar apenas não ser o pitoresco o que nos atrai,
e temos em conta os prejuízos que a técnica introduziu no espírito do
trabalho e nos hábitos humanos em geral.
Ei-los à nossa frente – os dongos sem poemas, ou
as chatas que, embora mais evoluídas, não o são tanto que a pressa as
distancie. A lentidão do espectáculo move-nos a quase a aceitar um estilo
deambulatório, espraiado, curvo que nos repugna em jornalismo. Queríamos
introduzir aqui uma trepidação de
imagens frontais e as vivacidades de um diálogo que não há.
Este mundo revela docemente para a imobilidade. Podia fazer-se um quadro. Nunca mais deixa de ser pela e meia da tarde , e os três homens que se preparam para meter a chata ao mar estão ali desde sempre. Têm uma falsa desatenção, um remanso oblíquo de respostas, a desconfiança sorna e sagaz dos pobres. Estamos a desejar-lhe boa sorte mas não é isso coisa que se diga. Tudo o impede o pudor , o sentido do ridículo e o adivinhar que eles conhecem das palavras um lado que nós ignoramos. O lado que se poupa . De qualquer maneira, com votos de boa sorte ou sem eles terão estes homens a sua sorte, que nunca poderá ser muita. Diante de coisas tão reais , os votos da convenção moram do lado das palavras inúteis. E aqui fica pendorada a litografia de umas seis horas e meia da tarde inconsumíveis.
«Às oito a gente vorta. A gente vai deitar as
redes”
Parece um milagre que esta voz que aparece
inesperada, mente. Alguém diz que vai chover, e a mesma voz canta.
«Pescador não tem medo de chuva. Só tem medo de
tempestade»
Às oito estão realmente de volta. E enquanto os
peixes vão caindo na cilada das redes
estendidas, os homens dormem na praia, embrulhados nos seus panos ou debaixo dos casinhotos de estacas e folhas
de palmeiras . Joga tudo certo: a malícia das redes, o sono dos pescadores, as
horas que se somam pacientemente. O dia abrirá, os homens partirão de novo, agora
para levantar as redes – e isso como vagares e subtilezas.
Passa da sete da manhã quando o barco dá em seco.
Considera-se misterioso por enquanto saber
se a pescaria foi farta ou não. Sinais, nenhuns. Gente impenetrável,
esta. A mesma deslizante destreza com que saltaram para dentro do barco, têm-na
agora ao saltar para a água.
Vindos não se vê bem donde, chegam os primeiros
compradores. Algumas mulheres e rapariguinhas, um motociclista, um senhor
lépido, uma dona de casa investigadora. -
«Tá-tá. Rrrrrr. Ula.
Ula
Vai vai.
Vai.
Cima, cima
Cima.
Puxa, puxa.
Puxa
Sobe. Sobe.
Sobe.
Tá-tá. Rrrrrrr. Ula
Ula»
Quando o barco já está sem seco e enquanto dois
dos homens estendem as redes na praia ,
para secarem, um dos outros vai dar um
mergulho. Tudo isto é inevitavelmente belo e grande: Compreenda-se: não é o pitoresco
o que nos comove, mas a verdade de cada pequena coisa que sucede. Nada existe
aqui que não seja rigoroso e importante.
Nunca percebi bem como o espírito pode estar presente nos actos simples, e
como o mais simples. acto pode possuir
uma tão completa dignidade
Os fregueses esperam ainda o vagar com que se separam as espécies
de peixes. Tubarões pequenos a um lado (foi o que mala ee apanhou), linguados
noutros, corvinas, raias, um peixe-agulha, duas santolas ainda agarradas à rede
e mexendo aa patas cegamente. ' .
« Quanto?» -pergunta uma mulher, com um grande
pargo na mão.
«Não é pra vender»
«Quanto?» - e outra aponta para uma corvina,.
«Sete escudos».
«É prá quitandeira».
«Dois mil e quinhentos»
Quitandeira vai pelas ruas da cidade vendendo o peixe
em baldes de plástico, baldes que na sua cabeça perdem a vileza dos objectos estereotipados para ganharem um prestigio imprevisto, de
vaso antigo. ·
Quanto a mim. Ignorava que se comesse tubarão.
Estou a dizê-lo com ingenuidade, mas parece que essa ingenuidade é tida por
ridícula, pois Informam-me naturalmente:
«Filete, sim»
De vez em
quando, o cerrado jogo do negócio, que se adivinha cheio de pequenas e imperceptíveis regras, de caladas colisões de interesses, de
concessões ou de exigências ambíguas,
estala como uma exclamação cantada
«Vai, vai»
E o peixe acaba por Ir. Exemplar a exemplar,
sopesado, recusado, recuperado - o peixe vai. Quase vazio o barco, não deixam
os homens de mexer aqui e ali, sempre ponderado e lentos, metendo e tirando debaixo
das tábuas, amarrando e desamarrando. Explicam que já não querem pescar em
dongos, pois as chatas são mais seguras. Juntam-se três, quatro ou mais e
mandam construir uma chata. O propósito é trabalharem por conta própria. Patrão, não.
A quem não daria isso prazer? Mas é tudo assim tão simples? Simples, nem tanto.
É preciso pagar às autoridades marítimas
pelo direito de posse e uso do barco. Calcula-se a importância com base
nas suas dimensões.
«Daqui até aqui e daqui até aqui»
E Indicam o comprimento e a largura da embarcação
«Também as redes paga»
Quanto ao processo de venda do peixe, adoptam,
-conforme as oportunidades e os interesses de circunstância, uma de duas
modalidades: ou firmam contrato (oral) com um negociante, a quem cedem· todo o
pescado ou a maior parte dele, reservando então para as quitandeiras a sobra.
Ou optam pela modalidade a que assistimos: vendem a quem quiser comprar,
fazendo um preço especial para a revenda. Os preços parecem-nos bastante baixos
e notável a honestidade das transações. As artimanhas de venda e compra constituem
parte do jogo, como se verifica em toda a parte, não atingindo aqui porém a
degradação das tácticas puramente comerciais. Decerto que se não mostra o
negócio isento daquelas práticas gerais {sempre duvidosas) da mercancia, mas
não o vimos tocado pelas corrupções correntes. Talvez nunca tivéssemos
assistido a acordos tão limpos.
«Vamos à Samba Cabeleira» - propõe o meu
companheiro de reportagem. Tem a sua fisgada: quer dongos. Pois lá vamos à
procura deles. Bairro bastante pobre, este, com as suas cubatas de canas de folhas de palmeira, as suas crianças, quase
nuas, os seus mosquitos e detritos, e os velhos dongos deitados comprida e
negramente na areia suja. Pescava-se caranguejo. Pesca pobre, melancólica,
resignada. Ao levantar-se a rede da água que dá pelos joelhos, aparecem alguns
peixes miúdos e um· monte de caranguejos. Mau negócio, este. Coisa para gosto
doméstico. Regressamos. A entrada de uma cubata, uma mulher agachada assava
dois peixes pequenos. Crianças corriam à
volta do cheiro.
Que uma aplicação inteligente e generosa da
técnica viesse em auxílio dos homens, e não fosse isso à custa da violentação do mals urgente e nobre apetite:
a alegria de estar no mundo. Voto tal porventura ingénuo, mas que constituiu precisamente
o fundamento fervoroso e dramático da utopia. Cuja síntese , feita divisa, poderia ser: pão e alegria. Ou, no caso: peixe e alegria."
Nenhum comentário :
Postar um comentário