Jorge Trabulo Marques - Jornalista e investigador - Antigo navegador soliário em pirogas no Golfo da Guiné
Algures no Golfo da Guiné, 24 de Novembro de 1975
A baleia não ataca como o tubarão ou como a orca assassina, mas é um enorme perigo solto no mar - Quem se aproximar onde elas andem a abocar os cardumes ou então se levante debaixo de alguma pequena embarcação, o mais provável ou é ser engolido no meio de outros peixes ou então ser afogado
É noticia da Lusa, de que, "dois homens estavam a pescar numa lancha quando uma baleia se aproximou e provocou o acidente, na costa leste da Austrália - Que se virou por volta das 06:00 (21:00 de sexta-feira em Lisboa), nas águas de La Perouse, 14 quilómetros a sudeste de Sydney, disse a polícia..
Diário de Bordo 1 Já é manhã do 35º dia. Acordei com o barulho de uma enorme baleia aqui próximo da canoa....De noite trovejou... Choveu um pouco mas passei-a normalmente. Claro, quase sempre acordado

Sim, tal como desabafei para o meu registo gravado, que guardo no contentor de plástico que se vê na imagem (a outra do lado, é a cauda de uma das baleias avistadas) acordei mais cedo e assustado, com o barulho de enorme balanço, Acordei estremunhado. Ato contínuo, ergui-me a ver o que era, supondo que tivesse sido apanhado pelas ondas da quilha ou da esteira de algum barco. Mas o rugido e o cheio nauseabundo a peixe , fez-me logo pensar que era um enorme cetáceo que tinha vindo à superfície a respirar, que se levantou abruptamente a escassos metros da proa. Expelindo um bafo tremendo, que parecia ter emergido das profundezas mais fundas dos abismos.
Não sei como a não a escaqueirou. Deu uns valentes esguichos e até ainda me molhou com uns espirros . Apanhei em cima de mim uma espécie de chuva miudinha, mas a tresandar a uma podre maresia.
Não é a primeira vez que se levantam junto à canoa. Mas desta vez, corri o risco de ser abalroado. Foi mesmo muito rentinho.... Tive muita sorte!... Mas elas são cautelosas e eu até gosto de as ver - Deus as proteja dos assassinos que as pescam e de forma tão bárbara; se calhar veio por curiosidade para ver que estranho corpo era o da canoa, que tem o costado como a barriga dos peixes. Ainda por cima de um azulado claro - Um gesto amável dos pescadores do Hornet, nos dias que passei a bordo do pesqueiro americano, de São Tomé a Ano Bom, onde fui largado - Foi pena não ter sido na corrente equatorial, um pouco mais a sul, mas, enfim, estava escrito que deveria ser este o meu destino. . Estava pintada de alcatrão, pelo pescador santomense, que a talhou num tronco da floresta - Se tivesse mantido a mesma cor, certamente que não teria sofrido tantos ataques dos tubarões, atraídos que são por tudo quanto se movimente, brilhe ou branqueie. Não sei se é por esta mesma razão que à volta da canoa, há quase sempre peixes das mais variadas espécies - e sobretudo muitos tubarões pequenos. Felizmente que os perigosos gigantes, solitários, que a atacam, são mais raros. 

Continuo a beber água das chuvas, misturada com água do mar. Não tenho anzóis para pescar. Mal me posso mexer, mas lá tenho que pegar no vertedouro para escoar a água que rapidamente se veio juntar à salmoura já existente, que chocalha constantemente no fundo da canoa. Que não cessa de entrar pelas pequenas rachas e de se avolumar. Sinto-me fraco mas também já nem sei até que ponto esta banheira ainda possa resistir. Se quem vai ceder primeiro, serei eu ou é a canoa que se vai abrir e voltar. Este tempo chuvoso, rouba-me as fracas energias que ainda vão dando vida ao meu tão maltratado corpo. Estou enregelado, sinto-me entorpecido dos pés à cabeça, ensopado de água até aos ossos. A chuva não pára de cair e as horas arrastam-se lentas, ensopadas, penosas e desgastantes.
Geralmente, só adormeço de cansaço, quando a madrugada já vai entrada. Raro acontece antes da meia-noite. Por um lado, é o grande desconforto de ter o estômago vazio e o fundo da canoa ser duro e estar encharcado. Pois o colchão (de praia) há muito rebentou e de nada me serve, Por outro lado, são os muitos pensamentos, a imensa incerteza de que a canoa não resista. .É o que mais me preocupa. E também tenho muito receio de ser abalroado - Sim, já vi alguns barcos no horizonte e já uma manhã um cargueiro passou muito próximo de mim - E eu agitar a minha capa, agitar e apitar e ele a passar ao meu lado, como um monstro....É talvez ainda maior o desapontamento e a crueldade, que quando se mostra um rebuçado a uma criança e se lhe nega, ante os seus olhos ávidos e espantados.... É intraduzível a tristeza e a deceção que se apoderou de mim... Senti-me então a criatura mais abandonada e triste deste mundo....E mais me convenci que só podia depender de mim, da minha força de vontade.




