Jorge Trabulo Marques – Jornalista e investigador - Navegador solitário em pirogas - três travessias - e líder da 1ª escalada ao pico Cão Grande

Há momentos que podem significar o esforço de uma vida - Nunca
me aventurei atrás de distinções ou de medalhas – Mas, ao menos, como recompensa,
não tivesse contado com a incompreensão: preso e espancado pela PIDE, com
pesada coima da Capitania dos Portos, após a atribulada travessia de
canoa S. Tomé ao Príncipe - Dezassete dias detido na Nigéria, após os 13
dias de travessia desde a Ilha de S. Tomé: Preso na Guiné Equatorial - numa das
pisões mais sinistras de África - após o longo calvário de 38 dias à deriva,
desde Ano Bom.
Finalmente alguém se lembrou de me dar um quadro, um lindíssimo desenho do Pico Cão Grande, de autoria Emma Harkämper – Oferecido por Catherine de Freitas, um dos membros da Associação Desnível. que eu aceitei como um prémio - e cujo significado torno extensivo aos meus companheiros santomenses.
Tal como então referi no
meu blogue - https://canoasdomar.blogspot.com/2015/11/casa-da-gruta-em-cascais-encheu-para.html - a Casa da Gruta, em Cascais, encheu para ouvir
falar da escalada, há 40 anos, do Pico Cão Grande, em S. Tomé - Despertando a
curiosidade de alguns dos mais conceituados praticantes do alpinismo – Falou-se
também da posição geoestratégica das Ilhas do Equador e recordou-se a ponte
aérea com o Biafra
| Rogério Morais - Coordenador e Presidente da A.Desnível |
Palestra sobre os 40 anos
da escalada do Pico Cão Grande – Três horas de entusiástico convívio e
fraternal diálogo, em que as ilhas de S. Tomé e Príncipe, embora bem
longínquas, estiveram continuamente no pensamento de todos os presentes, não
apenas do tema em questão mas sobre outras abordagens - Incluindo a sua posição
estratégica no Golfo da Guiné e a ponte aérea - S. Tomé - Biafra - Mapas
dependurados, além de um desenho artístico de autoria de Emma Karkamper, como
pano de fundo música típica desta maravilhosa ilha, muitos slides projetados
numa das paredes, com imagens do
Cão Grande, monumental monumento da natureza, verdadeiro ex-libris da sua
geografia, mas também outras fotos recordando a mais ousada escalada, há 40
anos, numa das mais difíceis agulhas da Terra, este o ambiente, observado e
vivido, ao longo de quase três horas, na Casa da Gruta, em Cascais, que
terminou depois da meia noite e meia hora, já do dia de hoje
Semanas antes da conquista do Pico Cão Grande,
cheguei a sugerir ao então Primeiro Ministro Leonel D'Álva, que o Pico Cão
Grande, passasse a ser chamado de Pico Independência, justamente pelo facto de
acreditar, que, coincidindo a conquista do cume, com o ano
da Independência de S. Tomé e Príncipe, esta seria também uma forma de
assinalar tão importante acontecimento - A sugestão acabou
esquecida e a mudança de nome não se impôs.
Por um lado, porque, uns dias
depois da escalada final, eu partiria de canoa para outra aventura, e,
por outro, porque, naquela altura, estando-se, nestas maravilhosas
ilhas, ainda a dar os primeiros passos na construção de uma
Pátria Soberana, Livre e Independente, havia outras preocupações
- Mas, tradição é tradição, e, depois de já ter sido batizado
de "Caralhete", no tempo colonial, talvez seja
mesmo preferível continuar com o mesmo nome
- até porque, monumentos à independência, já existem e podem fazer-se
ainda mais, o que não é possível de fazer é outro Cão Grande, como aquele.
Escalada Vertical ao pico Cão Grande Cão https://canoasdomar.blogspot.com/2012/02/cao-grande-em-sao-tome-grande-escalada.html - E também https://canoasdomar.blogspot.com/2020/08/pico-cao-grande-em-s-tome-epica.html
Desmontagem de uma encenação https://canoasdomar.blogspot.com/2016/01/escalada-do-pico-cao-grande-em-s-tome.html Acidente no Pico Cão Pequeno https://canoasdomar.blogspot.com/2016/03/sao-tome-acidente-na-escalada-do-pico.html - Rumo ao Sul https://canoasdomar.blogspot.com/2016/02/pico-cao-pequeno-rumo-ao-sul-e-latitude.html
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| Foto um pouco baça e danificada mas é um belo testemunho |
Não disponho das imagens desse auspicioso momento – se bem que, para nós, fosse mais de pesadelo de que de alegria, dada a iminência de uma tempestade e de não termos a certeza se regressaríamos vivos ao sopé - , sim, não disponho de nenhuma fotografia desse dia, porque, uns dias depois, deixava S. Tomé a bordo do pesqueiro americano, Hornet, para ser largado, numa frágil piroga, a sul da Ilha de Ano Bom, na corrente equatorial, que me levaria mais outra aventura de 38 dias à deriva no Golfo da Guiné https://canoasdomar.blogspot.com/2019/11/perdido-no-golfo-da-guine-37-dia-estou.html
De facto, o alpinismo é um dos desportos mais arrojados e nobres, entre as várias modalidades desportivas, por isso mesmo, não só exige preparação técnica adequada, de molde a evitarem-se riscos desnecessários, como também, qualidades humanas de elevada craveira - coragem, equilíbrio mental e determinação, sentimento de lealdade e companheirismo para com os elementos da equipa, porque, a escalada, é sobretudo, um desporto de equipa. - mas ao mesmo tempo de um grande desprendimento e humildade - É dos tais desportos que não encaixa no perfil dos vaidosos, desonestos ou batoteiros.
Não se faz uma escalada, para competir seja como quem for. Não se luta contra ninguém, nem para agredir a própria Natureza mas para se ir ao encontro da sua harmonia ou do que ela tem de mais belo e aparentemente agreste e desafiador - Buscar o prazer da superar o grau de dificuldades, que a mesma se nos apresente. Não se escala uma parede aprumo como quem joga futebol e procura meter um golo na baliza do adversário - Mas há, no entanto, quem ouse fazer escalada, não para melhor conhecer e desafiar as suas próprias capacidades ou pelo gosto que tem pelo contato estreito com a natureza, mas unicamente para exibir a sua vaidade e comercializar - E, então aí, vale tudo: até a batota, a desonestidade e a mentira.
Sou natural da aldeia de Chãs (20 de Janeiro de 1945) do concelho de Vila Nova de Foz Côa, onde, nos últimos anos, após ali ter descoberto, em 2002, vários alinhamentos pré-históricos, com os equinócios e solstícios, tenho sido o responsável pela coordenação de vários eventos culturais. Sou jornalista (da ex-Rádio Comercial RDP), tendo vivido vários anos em São Tomé – ilha onde desembarquei, em Novembro de 1963, para um estágio, na Roça Uba-Budo, da Companhia Agrícola Ultramarina, do meu curso de Agente Rural, da Escola Agrícola de Santo Tirso. Várias foram as profissões que aqui exerci, até os primeiros passos do jornalismo, assim como também muitas foram as vicissitudes, bem como os dias mais felizes da minha vida, aqui vividos, entre aquela distante data e Outubro de 1975, cujas histórias dariam talvez matéria para alguns livros. Mas ficará para ocasião oportuna.| Agosto -015 - Reencontro com o Cosme, em sua casa |
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| Cosme - A escassos metros da crista |
| Agosto -2015 - Reencontro com velhos amigos |
Estas algumas das afirmações que, por várias vezes, ouvi de velhos angolares (autóctones de uma conhecida etnia fixada ao sul de S. Tomé), entre outras histórias de feitiços e de homens gabões; designação dada aos trabalhadores das roças, vindas de outras colónias, em situação de degredo ou sujeitos a contratos miseráveis, que preferiam o refúgio do interior do espesso obó ao regime brutal e de semiescravidão em que prestavam serviços nas grandes propriedades agrícolas, acabando, enfim, por ali viverem no mais completo abandono e isolamento, decididamente arredados de tudo e de todos, já que a própria condição insular do meio não lhes permitia outra alternativa.
| 1970 - princípio de uma longa caminhada |
| Com o Chico - Carregador e Guia |
Creio firmemente que não. .A escalada ao Pico Cão Grande, não é uma aventura impossível. Desde que o ando a tentar e isto já lá vai em mais de quatro anos, sempre acreditei que algum dia o haveria de escalar . Ora, esse dia, dados os últimos progressos realizados com o meu companheiro, Pires dos Santos, julgo que poderia surgir brevemente, hoje mesmo ou e manhã, acaso as condições atmosféricas, que se têm feito sentir, melhorassem completamente.| Nov- 2014 |
Escrevia, eu em 23/8/73. Numa das páginas que guardo sobre as minhas impressões colhidas nas sucessivas escaladas que empreendo a este Pico, e em vésperas de ali me deslocar, as seguintes frases: "Escalar o Pico Cão Grande é uma tarefa muito difícil, eu sei, mas não acho impossível. No meu íntimo é quase uma certeza absoluta de que, se ainda não for desta vez, que lá vou, será por ventura noutra , mas que o hei de subir até ao cume, há-de ser um facto, uma realidade! Não tenho dúvidas. É uma questão de tempo. De saber esperar. Ah! e esperar custa realmente tanto! Tanto que até já sinto em mim uma onda de revolta, de impaciência - Por: isso, e para que esta sensação de revolta que trago comigo, não se transforme num desafio permanente, somente escalando-o e vencendo-o, ficarei descansado.
E certo que o Cão Grande está praticamente escalado. Restam-nos uns escassos dez metros Os mais difíceis, naturalmente, visto ali e parede ser completamente lisa e sem fendas e ainda dada a enorme saliência que temos de transpor, mas nem por isso tais obstáculos se nos afiguram impossíveis de vencer. .A esse ponto já lá fomos mais de meia dúzia de vezes, tentando a sua subida, final. Porém, lutamos sempre com dificuldades maiores às nossas possibilidades e força de vontade. Da última vez que que lá estivemos, íamos preparados com material e tínhamos estudado a técnica mais adequada para o conseguirmos; devido o mau tempo que entretanto se fez sentir, nem sequer pudemos alcançar o tal ponto máximo que anteriormente já tínhamos atingido.Além disso, a aliar ao insucesso que tivemos por não contarmos com o factor das condições atmosféricas, o Pires dos Santos, ficou ferido com um enorme golpe num pulso, quando empreendíamos a descida , por uma pedra que se desprendeu e o foi atingir. Devido a essa circunstancia, imprevista, a sua descida, alias a de ambos, tornou-se muito mais difícil e morosa. Comigo o perigo esteve praticamente iminente em certa altura da ascensão; escorreguei com o material que que levava e só por uma ponta do destino não me precipitei de umas duas centenas e tal de metros de altura. Mas felizmente que, não obstante aquele azar do meu companheiro, a sorte esteve mesmo assim a nosso lado.
Não fosse realmente a chuva que ultimamente tem caído, já lá teríamos voltado mais uma vez. É que, para nós, a escalada a este Pico, já é algo a que nos habitámos, sejam quais forem as dificuldades e contratempos que tenhamos que enfrentar, nada obstará a nossa determinação, enquanto não conseguirmos o verdadeiro ponto culminante da sua grandeza e perpendicularidade. E esse ponto será, pois, a crista, como é bom de ver, onde jamais algum ser humano pôs os pés. Aliás, creio que em nenhum dos pontos por onde temos passado. Motivo este porque, em cada meta atingida, no termo de cada obstáculo vencido, temos sentido, igualmente, a par do enorme esforço despendido, das muitas canseiras e desperdício de energias, uma sensação de vitória num misto de grande emotividade.Pois, o Cão Grande, toma, de facto, dada a sua característica natureza e configuração, a forma de uma autêntica torre. Subir, pelas suas faces ou arestas lisas e escorregadias acima, é realmente obra que exige muito trabalho, perícia, assim. como também muita vontade e espírito de sacrifício. Mas também, à medida que o vamos subindo e nele ganhando a sua ascensão, parece-me que não deve haver panorâmica mais deslumbrante. A nossos pés, lá bem ao fundo, o perigo desenha-se-nos perfeitamente, também é bem certo; todavia, vale bem a pena correr-se esse e risco, já pela agradável e indescritível sensação, que se tem perante a nítida a ideia de se estar perante o centro de um grande jardim magnifico, que será, pois, toda aquela luxuriante, po1icroma e imensa floresta que ali nos rodeia.
Em tempo de tempestade de chuva, quando, sobretudo, esta nos apanha de surpresa e nos fustiga em toda a sua intensidade, principalmente no transpor de alguma aresta ou saliência, nessa altura, já não é só uma sensação de vazio, é também de uma grande insegurança e de abandono E, em tempo de calor, quando o sol incide perpendicularmente com o vigor e fulgor de todos os seus raios, que sentimos? Como se comporta a nossa resistência ante a inclemência do astro rei do Equador? Oh! que remédio temos senão expormo-nos completamente ao brilho e ao calor abrasador que irradia! Nessa altura, a sede aperta-nos e o suor escorre e cola-nos as nossas roupas ao corpo, roubando-nos forças e dando-nos uma evidente sensação de fraqueza, quebrando-nos o ritmo da nossa já de si lenta progressão..

Todavia, sempre que regresso do Cão Grande, quase sempre um tanto desiludido por não ter chegado justamente a realizar todo este meu espírito aventureiro e ambição de ir onde nunca ninguém chegou, de atingir um ponto até agora considerado inatingível, pergunto a mim mesmo se todas os tentativas que tenho empreendido a este morro, se, com todos os esforços despendidos, os inúmeros sacrifícios e riscos em que tenho posto a minha vida, sim, se com tudo isto sou útil à sociedade, se dou alguma coisa em troca da experiência adquirida. Sim, talvez à primeira vista aparente que não; pois subir um monte, um pico, mais difícil ou menos difícil que o "Cão Grande", talvez isso, ao fim e ao cabo, pouco possa representar. Mas eu creio que em tudo isto, para além do aspeto desportivo propriamente dito, da escalada em si, há algo mais importante. Julgo que o seu valor está precisamente no significado que a força de vontade pode conseguir: o querer humano sobre as adversidades.| Nov.2014 |
Eis porque tenho tentado. Tentado sempre. Já há mais de quatro anos que me encontro empenhado nesta árdua como arriscada empresa. E será muito difícil desistir entretanto. Desde o principio deste ano, tenho ido acompanhado. Antes, as minhas escaladas, eram solitárias. Porem. Reconhecendo que era trabalho extremamente difícil para mim, que ia mesmo além das minhas possibilidades, ir sozinho, resolvi arranjar um companheiro. E tive sorte., nessa escolha, posso dizê-lo com franqueza. A pessoa escolhida foi o Cosme Pires dos Santos Para mim é apenas o Cosme, assim como para ele sou apenas o Jorge. Contrariamente à minha pessoa, tem já as suas responsabilidades familiares, pois tem mulher e um filho a seu cuidado. É natural da Ilha de S. Tomé, da Vila da Trindade. Tem-se revelado um companheiro extraordinário e com qualidades excecionais para a prático do montanhismo. Diz desenvolveu esse gosto, nos domingos, em que vai à pesca, a subir e a descer as escarpas, ao longo da praia, na pesca à linha ou ao gancho. À sua valiosa colaboração, ficam-se a dever muitos dos êxitos já alcançados naquela pedra, que, pela sua grandeza e verticalidade, é de facto uma autêntica vertigem, um autêntico monumento à natureza, por sinal, ali bem pródiga.| Cosntantino Bragança |
| Constantino Bragança |
Igualmente, muito fico a dever a um outro seu conterrâneo, de nome Sebastião, que, desde a primeira hora que me dispus a subir esta pedra, me tem servido de guia e acompanhado à sua base. Sem a sua prestimosa como impagável colaboração, dificilmente teria tentado escalar o Cão Grande. O acesso é muito difícil. Da estrada, até lá, ainda é· um grande bocado através de uma floresta densa e emaranhada e onde existe a terrível cobra preta, que ele mata com muita coragem e agilidade.
Como já disse atrás, a escalada a este está praticamente realizada. Seria, pois, motivo para, neste momento, eu me sentir talvez mais satisfeito, por acreditar que a vitória sobre difícil pedra, está mais próxima do que nunca. Mas não. Apesar, de no fundo do meu coração, subsistir uma grande esperança de poder alcançar o cume, a quase certeza de estar ao alcance das minhas possibilidades, sinto, no entanto, uma onda de tristeza, embora também de felicidade ao mesmo tempo. Feliz por saber que se vence sempre quando a força de vontade não nos falece e a vitória é decidida. E eu estou plenamente decidido e confiante para essa vitória.Mas também profundamente tão triste por ver o cume deste pico, simultaneamente, tão longínquo e tão perto, como um dedo da natureza desafiando os céus. E desafiando-me, desafiando-me, mais de que nunca. Porque vou retirar-me sem sentir o prazer imenso dessa vitória da qual tão pertinho cheguei a estar . Porque outra paixão, muito grande. Também mesmo muito grande, que desde há anos se arrasta, me impele que seja satisfeita. Chegou altura. Não posso adiar mais por mais tempo. Até agora tenho adiado. Procurado realizar uma e adiado outra. Chegou finalmente o momento de se passar o contrário. A escalada final do Cão Grande terá que ser tentada noutra altura. Agora também o tempo não favorece. É irresistível esta ânsia que sinto em mim. Vou realizá-la antes que faça sofrer mais o meu espírito.




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