Jorge Trabulo Marques - Jornalista e antigo navegador solitário em pirogas de S. Tomé
JAMAIS PODEREI ESQUECER-ME DESSA LONGA NOITE, ANTE A SOLIDÃO DO MAR E DO CÉU - Até porque, se tratava de uma data em que nasceu a minha saudosa mãe: ou seja, no dia de S. MartinhoAngola comemora, este sábado, o 48.º
aniversário da Independência Nacional, cujo acto central vai decorrer em
Saurimo, província da Lunda-Sul.
Naquele dia 11-11-1975 Quando, na madrugada de 11 de Novembro de 1975, o saudoso
Presidente António Agostinho Neto proclamou solenemente, em nome do Povo
Angolano, perante a África e o Mundo a Independência Nacional, nascia um novo
país e sagrava-se a esperança de todo um Povo – Infelizmente, ainda hoje os
dois maiores partidos – MPLA e UNITA -
acusam-se mutuamente e não se entendem, lá muito bem.
“Um dia de muita alegria para muita gente e para mim
um dia tão triste!” - Desabafava eu
para um pequeno gravador, o meu diário de bordo, dia em que minha mãe, nascida em 11-11-1915, completaria 62 anos, mas faleceria em
08-09-1967
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Baú onde pude preservar as memórias que me restam |
Sim, pude testemunhar esse ambiente de entusiasmo e de grande esperança,
algures no Golfo da Guiné, depois da meia noite e por algumas
horas ao correr da madrugada, ao sabor do vento e das
correntes, perdido a bordo de uma frágil piroga; através de um pequeno
transístor a pilhas, que pude preservar num simples contentor do lixo das
constantes tempestades e das vagas que me flagelavam, além de um pequeno
gravador onde fazia o registo do diário de bordo e da máquina fotográfica.
Tenho ainda comigo esse registo histórico, bem como, de resto, as seis cassetes
de todo o diário, das quais me venho servindo para o transcrever
rAlgures no Golfo da Guiné, 11 de Novembro de 1975
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Um dos tubarões pescado |
Diário de Bordo 1 - Já é manhã do 22º dia. Passei uma noite normal. Estive muitas vezes acordado. Não dormi assim muito mas não choveu. Estive a ouvir a rádio até altas horas, até quase de manhã, sobre a reportagem da independência de Angola. Portanto, hoje é dia 11 em terra.
Amanheceu uma manhã bastante agradável: o mar não está assim muito agitado e o céu não muito encoberto. Apenas umas nuvens de onde em onde.
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Meus pais, que nunca os esqueci e cedo me deixaram |
Eu disse, ontem, que, quando não se possuía uma boa vela, um perfeito domínio da embarcação, era preferível deixá-la à deriva. De facto, cheguei a essa conclusão, mas, atendendo a que devo estar muito próximo de terra e porque as correntes já não devem ter grande força, talvez valha a pena pôr à prova os modestos recursos que disponho.
Não podia deixar de me referir à companhia dos meus fiéis tubarões...continuam!...Isso é infalível!... A dar aqui as suas voltinhas, a fazer a sua escolta à canoa.
SENTIA-ME ARREDADO DE TUDO - O MEU CALENDÁRIO NO MAR ERA DIFERENTE DOS DIAS QUE CORRIAM EM TERRA
Diário de Bordo 2 - São mais ou menos oito horas da manhã do 22º dia, ou seja dia 11 em terra. Realmente experimentei a vela. Andei cerca de uma hora e tal, mas praticamente já não havia vento. Há uma calmaria muito grande. Tudo leva a crer que haja trovoada lá para o fim da manhã ou princípio da tarde. Oxalá que sim; uma trovoadazita até faz bem para acelerar o andamento da canoa, se não nunca mais saio daqui!... O problema é este: só há vento quando há trovoadas. O pior é que nessas circunstâncias é difícil navegar, porque há que ter toda atenção na segurança da canoa. Portanto, neste momento, limito-me a aguentar os balanços da canoa e o calor, que está já a fazer sentir-se, até que venha um bocado de vento, que, com certeza, virá acompanhado de alguma trovoada, que está já a formar-se ali para leste. Aguardemos.
Diário de Bordo 3 - Quanto ao meu estado de saúde, doem-me bastante as costas, o pescoço, tenho inúmeras borbulhas nos braços e nas pernas e a vista muita cansada de olhar para o horizonte e também dos reflexos do sol. De resto ainda não sinto qualquer perturbação: mas tenho aqui medicina, uns comprimidos e algumas vitaminas. Enfim, espero que não surja qualquer complicação no meu estado de saúde.
Estou ouvindo rádio, que uma vezes constitui realmente o meu passatempo favorito, outras, enfim, é o silêncio, a solidão única coisa que me agrada.
AO FIM DA MANHÃ, CONFIRMAVAM-SE OS MEUS RECEIOS - Surge a tempestade: o que eram sinais de velada ameaça, subitamente, transformam-se num afrontoso pesadelo - O mar!... O mar!... Quando se enfurece, o mar é sempre igual em qualquer parte.
Diário de Bordo 4- Neste momento estou a enfrentar violenta tempestade! Tive que lançar a âncora flutuante. A canoa correu sérios riscos!...Nunca estive em tantas dificuldades como agora!… mesmo assim o tempo acalmou ligeiramente, mas ainda continua a tempestade a sentir-se e arrastar-me agora de este para oeste!… Está a retardar novamente a minha viagem!... Devem ser aí umas 11 horas da manhã!…Estava uma manhã estupenda e, de um momento para o outro, apareceu esta tempestade que ameaça a todo o instante virar a minha canoa.
Diário de Bordo 5 -O mau tempo continua a fazer sentir-se!... Não sei qual o destino onde vou ter!… É difícil neste momento fazer qualquer prognóstico… É um tornado dos maiores que tenho enfrentado...E o pior foi encontrar a minha canoa na posição pior de segurança, porque, a canoa, tem uma posição em que pode enfrentar mais ou menos as tempestades...Tive que lançar a âncora e um bidão de plástico que força com que a canoa fique ligeiramente de proa à vaga…De qualquer modo, a situação continua melindrosa!... Agora não chove mas está a fazer uma grande ventania e o mar está muito cavado!... Estou a ser arrastado para Sul, portanto, estou a ser retardado!... As perspetivas de chegar a terra, estão a ser cada vez mais morosas. É realmente uma situação verdadeiramente dramática!... A canoa esteve há pouco à beira de se virar!... Só por muita sorte, só por milagre não se virou!...
NESTES MARES, EM QUE OS DIAS SE REPARTEM POR IGUAL COM AS NOITES, TUDO É SÚBITO E INESPERADO: Uma simples nuvem no horizonte num claro céu azul e limpo, tanto pode significar o princípio de uma tempestade, como de uma podre calmaria - Agora, as alterações climáticas estão profundamente alteradas, em todo o planeta; não sei se, naqueles mares, para pior ou melhor - Mas há 44 anos, eu vivia ali um longo e tormentoso drama Ao sabor dos ventos e das correntes e balanceado para todos os quadrantes.
Diário de Bordo 6 - Sinceramente, o tornado já passou... Está agora a notar-se a ressaca... Estou bastante afastado da Ilha de Fernando Pó, muito afastado!...Estou convencido que não vou ter a oportunidade que já tive...Neste momento, não sei qual a minha posição; estou bastante para Sul!... Não sei se voltarei a ter a oportunidade que já tive!... Afinal o que me interessa é terra e eu parece que estou a brincar com o meu destino!... Não pode ser!... Estou francamente perturbado neste momento!... Vou ver se consigo conservar o máximo de calma!... Mas já estou saturado... Estou cansado... Estou com fome!… Estou longe de terra! Agora estou muito mais longe do que já estive!
Mais afastado de terra e fatigado. Não estou desiludido ou desesperançado. Pelo contrário, sinto-me mais forte e mais habilitado. O mar já não é aquele lençol líquido rebelde e ondulante, a sua fisionomia está moribunda e não demorará a quedar-se numa ténue e plácida superfície.
Minha Mãe nasceu em 11 de Nov 1915, dia , de S. Martinho - Mas partiu aos 52 para a eternidade - Minha irmã, deixaria as duas duas filhas, ainda crianças, ao 38 anos - O meu irmão, José, aos 48, deixando também um filho e uma filha, ainda menores.
Estava em S. Tomé, era militar para onde embarcara a bordo do paquete Uíge para concluir um estágio da Escola Agrícola de Santo Tirso, na Roça Uba-Budo,mas onde não encontraria o mínimo de condições, devido à rudeza e à prepotência colonial com que ali me confrontei.
Tinha então 18 anos, era jovem e alimentava um mundo de sonhos mas o que fui ali conhecer, naqueles primeiros anos, na beleza paradisíaca de uma Ilha equatorial, foram desilusões e humilhações, umas atrás das outras – Só 12 anos mais tarde voltaria à minha aldeia mas já não ia encontrar a minha mãe viva, que falecera, ao fim de um penoso calvário de doença prolongada, quando eu prestava serviço militar nesta antiga colónia portuguesa.
Estava em S. Tomé, era militar para onde embarcara a bordo do paquete Uíge para concluir um estágio da Escola Agrícola de Santo Tirso, na Roça Uba-Budo, mas onde não encontraria o mínimo de condições, devido à rudeza e à prepotência colonial com que ali me confrontei.
Tinha então 18 anos, era jovem e alimentava um mundo de sonhos mas o que fui ali conhecer, naqueles primeiros anos, na beleza paradisíaca de uma Ilha equatorial, foram desilusões e humilhações, umas atrás das outras – Só 12 anos mais tarde voltaria à minha aldeia mas já não ia encontrar a minha mãe viva, que falecera, ao fim de um penoso calvário de doença prolongada, quando eu prestava serviço militar nesta antiga colónia portuguesa.
Cumpria então parte do serviço militar - visto a recruta tê-la ido fazer a Angola; seis meses no curso de sargentos milicianos, na ex-Nova Lisboa e, depois, mais seis meses no curso dos Comandos, em Luanda.
Sabendo da gravidade da doença que então minha mãe padecia, fiz todos os esforços, junto a instituição militar para a poder visitar mas não fui autorizado: pois a mentalidade da tropa colonial não se compadecia com sentimentos pessoais - Deixara a minha aldeia aos 18 anos e nunca mais a voltaria a ver.
Dizia-me ela no momento da despedia, em que me dava o último beijo: adeus meu filho, que já não te volto a ver - E, de facto, não se enganou, tal como a premonição, que eu tive, no dia da sua morte, antes mesmo de receber o telegrama a dar-me a triste notícia
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