Na verdade, após ali ter ido parar, depois dos longos 38 dias de solidão no mar, muitos dos quais sem comida e bebendo água das chuvas ou água salgada, só vim a saber que era a Ilha de Bioko (ex-Fernando Pó), quando me pus a caminho pelo mato adentro, até à sede de uma Finca (roça). Ali fui bem recebido, porém, quando o sargento da Polícia chegou, tudo mudou de figura - Este desatou logo aos berros a incriminar o funcionário da Finca por me ter acolhido e dado de comer. Seus Traidores! Seus encobridores! - "Amanhã quero que se apresentem no meu gabinete! " mas o encarregado, acabou também por ir no mesmo jipe. Embora, já noite, obrigou-me a ir mostrar-lhe a canoa, que já estava toda desfeita pelo impacto das ondas na areia, e também dado o estado em que já se encontrava; então mais raivoso e desconfiado ficou, pensando que fosse eu que a tivesse destruído e queria saber onde eu tinha escondido as armas
De regresso à Finca, forçou-me a manter-me de pé, a ficar em sentido, frente a uma secretária, durante várias horas: às vezes eu caía, pois eu mal podia andar, quanto mais estar de pé, mas ele imediatamente me puxava pelos cabelos ou berrava - Ponha-se de pé! Respeite a autoridade!! - E lá tinha eu que apelar às forças que me restavam, durante o tempo em que durou o longo e exaustivo interrogatório e revistou minuciosamente os poucos trapos que me restavam. Ainda hoje me custa a crer como não me confiscou os rolos e as cassetes -
Eis algumas passagens do pesadelo vivido naquela ilha, descrito mais tarde:
"Serão 10 horas da noite, chega finalmente o esperado carro da polícia. Dentro dele saem dois indivíduos que imediatamente se dirigem para o interior da casa onde me encontro. Entram e limitam-se apenas a dar as boas noites num tom frio e meramente formal. Não estendem as mãos a quem quer que seja.Mostram-se sisudos e com ar de muita importância.Não vêm fardados. Têm, apenas, sobre o bolso da camisa a esfinge do Presidente Macias.Mas o seu aspeto não ilude ninguém.Têm modos duros e a sua presença provoca um certo ar intimidativo e de gravidade nos circunstantes, que .subitamente param de falar e se entreolham como que alarmados. Os que estão sentados têm que se levantar. (...) Reina um ambiente de severa circunspeção. Tudo leva a crer que se vai proceder a uma espécie de julgamento sumário. Sou olhado com manifesta suspeita e desconfiança. Como se acaso se tratasse de um perigoso criminoso.(...)
Sobre a mesa está a relação das minhas coisas e toda a minha documentação pessoal. Começam as primeiras inquirições. Um deles, que presumo ser o chefe, deita-me uma vez mais um olhar severo e principia a mexer na papelada que tem à sua frente. Analisa-a e revolve-a várias vezes, depois volta-se para mim: Que atrevimento foi o teu de vires aqui espionar a nossa ilha?!!...Que barco te largou?!!...Que abuso foi o teu de entrares clandestinamente na República da Guiné Equatorial?!!...Não sabes que te podemos matar?!!...Ou não tens consciência da gravidade do crime que cometestes?!...Vá! Responde!!...
Chefe! Não cometi crime nenhum! Não venho espionar a vossa Ilha.Sou um náufrago!... (...) Não vê que estou com o corpo fraco; já há muitos dias que não como nada e necessitava que me prestassem a vossa assistência, fossem misericordiosos para comigo ou me levassem para um hospital.-Não mintas!! Não sejas fingido e mentiroso!!!...Daqui a bocado, já te digo onde é o hospital.
A relação das minhas coisas já havia sido conferida e descriminada pela Comissão Administrativa da finca, estava tudo anotado. No entanto, ele faz questão de conferir tudo.As cassetes são escutadas uma por uma. Os meus papéis, inspecionados até ao mais ínfimo pormenor. Faz anotações sobre anotações. Verificando que faltam algumas coisas(que havia oferecido aos trabalhadores da finca),ordena ao encarregado que quer o resto das coisas e a presença de todos os indivíduos que as aceitaram.
(...)Passa já da meia-noite. Todos se encontram já deitados em suas casas. São acordados e obrigados a comparecerem, com o blusão de oleado, a lanterna, duas camisolas e os bidões de plástico. (...) Seus canalhas!! Seus encobridores!... Seus patifes!. Seus traidores! À manhã, pelas 9 horas,quero-os no meu gabinete!"
(...) São quatro da manhã. À nossa frente sobressai uma mancha de luzes. Vejo que é um centro urbano.Tem aspeto de ser vila ou cidade (presumo que tenha sido Luba): "Que lugar é este? - indago."¿Por qué?! .. ¿Qué te importa saber eso! - Responde o chefe da polícia. Fica situado à beira-mar, e, pelos barcos pesqueiros que estão fundeados na baía que o ladeia, denota ser um razoável centro piscatório. Após algumas voltas pelas suas artérias, eis que o jipe abranda e sou imediatamente conduzido ao interior de um edifício. É uma esquadra, não tenho a menor dúvida. À porta está uma sentinela e a inscrição: Policia Nacional de Seguridad
Entro para o gabinete do chefe da esquadra, para onde também são encaminhadas as minhas coisas.Fico de pé frente à sua secretária. Momentos depois manda-me descalçar, passam-me as mãos pelos bolsos e ordena que seja conduzido a uma cela.Aberta a porta, sou empurrado de rampelão lá para dentro.Entorpeço e caio.No chão estão algumas pessoas deitadas que não vejo. Debruço-me e tacteio para tentar descobrir um espaço onde possa deitar-me.Mas só toco em corpos, quase amontoados, estendidos lado a lado como se fossem sardinhas enlatadas.De pé não consigo ficar porque me sinto demasiado fatigado.Necessito de dormir de qualquer maneira nem que seja sobre espinhos.Por fim,lá me deito.De lado e com as costas voltadas para a parede.No chão apenas uma esteira a separar a frieza do cimento.Mesmo assim adormeço que nem uma pedra.
Nove horas da manhã. A cela é aberta e somos acordados. Todos me olham estupefactos e surpresos. A minha surpresa também não é menor. Entre os meus companheiros de infortúnio há duas crianças, duas mulheres e quatro homens (trabalhadores nigerianos. As crianças são ainda de peito.Isto impressiona-me, meu Deus
Ainda no período dessa manhã, meteram-me numa carrinha, que fazia de transporte público, ladeado por dois polícias armados de metralhadoras, os quais, após ter chegado a Malabo, me conduziriam à cadeia da morte - Mal transpus o portão, vi logo que estava metido num grande sarilho. O ambiente era de facto sinistro. Ouvi logo gritos de prisioneiros a serem inquiridos e torturados. Os dois policias (que, de resto, até tinham sido simpáticos, tendo-me até comprado umas bananas pelo caminho, por se terem sensibilizado com o meu estado de fraqueza) quando me entregaram aos carcereiros, foi como se me tivessem lançado às feras: agarraram-me pelos braços e levaram-me aos empurrões até à cela, visto eu mal poder andar - e ainda para mais algemado. Aberta a porta de ferro, fui de novo empurrado: as algemas só mais tarde mas retiraram, tendo entretanto urinado nas calças: ou seja, só me desalgemaram depois de ter sido submetido a mais um longo e exaustivo interrogatório, após o que voltaram a encarcerar-me na dita cela de alta segurança, de reduzidíssimas dimensões, na qual dispunha apenas de um balde para as necessidades e de um banco para me deitar, que não tinha mais de metro e meio de comprimento. Mesmo assim eu era um felizardo: a maioria das celas, só se fosse a esteira que o próprio condenado levasse.
PIOR DE QUE CELA, AUTÊNTICA LIXEIRA DE RATOS E DE CHEIROS NAUSEABUNDOS
Quem fornecia a comida aos prisioneiros, eram os familiares. Lá dentro não havia cozinhas nem refeitórios. Ao lado da minha cela, situava-se a casa de banho dos guardas prisionais, que me mandava um pivete insuportável, mas que eu não podia utilizar. Havia baratas e percevejos por todos os lados.
As ratazanas entravam na minha cela, chegavam a passear-se por cima de mim e a morder-me nos dedos dos pés, quando me deitava - Por vezes no chão, pois não conseguia estender-me e segurar-me no banco. Também nem sequer dispunha de uma torneira ou de um lavatório. Para beber um copo de água tinha de o implorar aos guardas, que só mo levavam quando lhes apetecesse.
Por outro lado, também tinha de levar com o cheiro das minhas fezes, pois, só de manhã eram recolhidas. Como se não bastasse o estado de desnutrição, que quase me arruinara, tinha agora que levar com os suores e cheiros do meu corpo, pois não tinha onde me lavar. Daí que, quem ali desse entrada, não tardasse a que, ao fim de alguns dias, tivesse a sensação de que, em vez do prisioneiro se sentir um ser humano, se identificasse como um pária e ficasse assim mais propenso a aceitar a condenação como um castigo justo e inevitável. Felizmente, nunca me deixei abater, porque, as adversidades do mar, me haviam preparado para todo o tido de dificuldades, no entanto, a passagem por aquela prisão (breve é certo) constitui uma marca negra nas minhas recordações da Guiné Equatorial e na minha vida.
MAS QUE MAL TERIA FEITO EU? - Para, após 38 longos e exaustivos dias de incerteza e de sofrimento no alto mar, dar entrada num presidio dos condenados à morte?- Cheguei mesmo a pensar se não teria valido mais a pena ter ficado na barriga de um tubarão.
Naquela altura, o pior que me poderia acontecer era acostar em qualquer ponto da Guiné Equatorial, ou nalguma das suas Ilhas ou no continente. Eu sempre pensei que os maiores riscos, não eram tanto as dificuldades no mar, mas a grande incerteza das condições em que poderia ser recebido onde fosse aportar. Quando fiz a viagem de São Tomé à Nigéria, depois de 13 dias solitários no mar, eu não fui maltratado mas não me livrei de ter sido privado da minha liberdade durante 17 dias, após o que me repatriaram para Portugal - Na viagem dos três dias de São Tomé ao príncipe, fui preso e espancado pela PIDE - Ó sorte macaca! Que no mar me protegeste e em terra me abandonaste!
"QUE ATREVIMENTO É ESSE!!" - QUASE ME IAM MATANDO QUANDO HASTEEI A BANDEIRA DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
Na viagem à Nigéria, levei as duas bandeiras: a de São Tomé e Príncipe e a de Portugal Mas, nesta viagem, apenas levei o pavilhão do jovem país independente aonde regressei sem um centavo na algibeira, onde encontrei todo o apoio que precisei para mandar construir a canoa e para a aparelhar.- Sim, e donde parti para grande aventura. No meu cárcere, em Bioko, um de dia resolvi hastear a Bandeira Nacional de São Tomé e Príncipe, -
Quando o carcereiro, que, de volta e meia vinha espreitar a minha cela, topou, mas que heresia!... Foi buscar imediatamente a chave da cela e, ao entrar lá dentro, deu-me um empurrão contra a parede, e, ao mesmo tempo que agarrava nela e a amachucava, levando-a, berrava: Su mercenário! ¿Qué descaro!! Qué falta de vergüenza!!
Não posso dizer que fosse agredido fisicamente, mas humilhado e submetido a uma incerteza psicológica terrível. É que, após ter dado entrada naquele maldito presídio de condenados à pena capital, contava sempre com o pior: de resto, os presidiários que me visitaram pela janela e me levaram comida, avisam-me logo, com esta pergunta: "És político?!..- A que eu respondi: "Não!" Diz um deles: "Então talvez te safes. Mas não digas mal do Presidente, senão... podem decapitar-te!
Eu tinha realmente informações de que não era aconselhável ir parar à Ilha de Bioko (ex-Fernando Pó), governada pelo então Presidente da Guiné Equatorial, Francisco Macías Nguema, sanguinário e déspota ditador, que dirigia então o país sob duríssima mão de ferro, tendo ordenado o espancamento e o assassínio de milhares de opositores, incluindo alguns familiares – Derrubado, em 3 de Agosto de 1979, pelo seu sobrinho, o actual Presidente Teodoro Obiang Nguema Mbasogo através do chamado golpe daliberdade, que depois o condenou a um pelotão de fuzilamento a 29 de Setembro, desse mesmo ano.
Obiang, ainda jovem, com os seus 34 anos (e a juventude é sempre mais tolerante e generosa) era já então o Comandante das Polícias e das Forças Armadas e foi ele que ordenou a minha soltura, depois de me ter mandado chamar ao Comando e após ter passado alguns dias numa das mais tenebrosas prisões de África , onde todas as noites, havia execuções sumárias, já que, quem ali entrasse, só saía de lá cadáver.
Na manhã do dia 3 de Dezembro, quando menos esperava, um carcereiro chegou à porta da minha cela, algemou-me e ordenou-me que o acompanhasse - Senti logo um embate no meu coração, que não deveria ser levado para melhor destino - Mal transpus a cela, sou imediatamente agarrado por outro guarda, tendo à minha frente o Comissário da Cadeia, que já me tinha torturado com infindáveis interrogatórios para me conduzirem ao sítio das execuções.
Sucedeu, porém, que, por um feliz acaso, talvez milagroso (pelos vistos, a sorte protege os audazes), soa o telefone no corredor da morte - Era o então o Comandante Teodoro Obaing Nguema Mbasongo, atual Presidente da República da Guiné Equatorial, sobrinho do todo poderoso, Francisco Macías Nguema, a ordenar ao Comissário da Prisão para ser conduzido à presença, ao gabinete do então supremo comandante das policias e das forças armadas, que me recebeu, inicialmente de forma austera e desconfiada: com estas palavras: " O que se passa contigo?!... Porque te meteste num canuco e o que vieste aqui fazer?!.. Lamento mas tenho que cumprir as ordens de Sua Excelência e tenho de o executar hoje!...
Respondi-lhe que era um náufrago e para me soltarem as algemas e lhe mostrar a mensagem do MLSTP, que trazia no bolso atrás das minhas calças - Como estava carimbada, não duvidou da sua autenticidade e, ao sentar-se na sua cadeira de vime(enquanto eu ia permanecendo sempre de pé e à sua frente) me passou a questionar de forma mais descontraída e simpática
Bom, lá tive que voltar a repetir o que já havida dito várias vezes, que não era espião e as razões pelas quais me havia metido na canoa e ido ali parar - Mas, quando o vi soltar uma gargalhada e pedir-me para que lhe contasse mais alguns pormenores dos meus longos dias no mar, disse cá para os meus botões: este é dos meus!... Estou a ver que está a gostar da minha aventura. Por volta do meio-dia, depois de me ouvir, ordenava ao Comissário para me soltarem
POUCOS DIAS DE CATIVEIRO, MAS AUTÊNTICAS ETERNIDADES - QUEM NÃO RECEBESSE COMIDA DO EXTERIOR, MORRIA DE FOME
A cadeia não fornecia alimentação: tinham de ser os familiares. Nos primeiros três dias, quem me passou alguma comida (massa de mandioca, regada com óleo de palma, que mais das vezes a vomitava para a lata das necessidades, pois eu estava magríssimo e, o meu estômago, já não estava habituado a comer alimentos sólidos, há muitos dias), sim, quem me deu alguma comida, foram os próprios condenados, que trepavam curiosos à minha janela gradeada, durante o curto recreio que dispunham, num átrio para a qual a minha cela estava voltada. Creio que, naquela altura, devia ser o único europeu preso. Agora, depois que houve por lá uma tentativa fracassada de Golpe de Estado, em Março de 2004, estão lá presos alguns dos implicados. Mas nada que se compare às tenebrosas condições daqueles tempos.
Nos dias seguintes, passei a receber uma cestinha, com frutos e outros alimentos, por parte do barbeiro do Presidente Nguema, um amável são-tomense, o Sr. Freitas, que era também o representante diplomático e que ali tinha ido a seu mando para recolher informações a meu respeito - Pedi-lhe para lhe mostar uma mensagem autenticada pelo MLSTP, que se destinava a saudar o Povo Brasileiro: mesmo assim, não acreditou na sua veracidade; tendo-me dito, no dia seguinte, que "Sua Excelência, está muito desonfiado das suas intenções; não acredita no que está escrito neste papel, pelo que, enquanto aqui estiver, eu trago-lhe alguns alimentos - Sõ depois, quando fui conduzido à presença do Comandante Obiang, a quem mostrei a mesma mensagem, este ordenou a minha sultura,
Quem entrasse naquela cadeia, entrava para a lista da morte.
Eu bem me apercebi dos gritos lancinantes e de terror dos pobres infelizes, que, depois da meia noite, eram executados, não pelas balas (que isso fazia demasiado barulho e ficava caro, pois, naquela altura, o petróleo, ainda não tinha ali feito jorrar milhões de dólares, sendo então considerado o país mais oprimido e miserável de África) mas por garrotes de asfixiamento!. Dessa sina, felizmente, lá me safei, graças a Teodoro Obiang - Quando ele veio a Lisboa, por ocasião de uma Cimeira da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que decorreu no Centro Cultural de Belém, eu dirige-me lá para lhe agradecer pessoalmente o seu gesto. Estou convencido, que, por vontade do seu tio, eu era fuzilado, dado o estado demência e de paranóia, como Macias dirigia o seu país. Bastava-lhe sonhar que um ministro o queria trair, para o mandar logo matar.
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