Jorge Trabulo Marques . Jornalista e antigo navegador solitário em canoas
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Depois de pisar areia macia, do recanto uma discreta praia, na manhã do dia 27, algures em Bococo e de ter sido humanamente recebido numa finca de cacau, neste mesmo dia sou depois conduzido algemado para um escuro calabouço e, no dia seguinte, a uma sinistra cela do reino de terror de Francisco Macias Nguema

Mal me arrastava de fraqueza mas sentia-me como se estivesse a viver as aventuras de um inesperado Robinson Crusoe - E, mesmo ainda hoje, não sei se sentiria vontade de sair dali tão cedo. Porém, quando me apercebi de que havia um carreiro, muito batido, que ali desembocava e que poderia ser sinal de que a praia não era totalmente selvagem (de resto, pouco depois do nascer do sol e antes de a abordar, já ali tinha visto, na pequena língua do negro areal, um homem à cata de ovos de tartaruga) pelo que não tive outro remédio senão seguir aquele mesmo careiro, que me levaria a uma finca - à sede de uma plantação de cacau. Tal facto, ia-me custando a vida. Tomado por espião e depois de ter passado a primeira noite nos calabouços de uma esquadra, fui transferido algemado para ser encarcerado na então tenebrosa prisão de Black Beach, em Punta Fernando.

Na verdade, após ali ter ido parar, depois dos longos 38 dias de solidão no mar, muitos dos quais sem comida e bebendo água das chuvas ou água salgada, só vim a saber que era a Ilha de Bioko (ex-Fernando Pó), quando me pus a caminho pelo mato adentro, até à sede de uma Finca (roça). Ali fui bem recebido, porém, quando o sargento da Polícia chegou, tudo mudou de figura - Este desatou logo aos berros a incriminar o funcionário da Finca por me ter acolhido e dado de comer. Seus Traidores! Seus encobridores! - "Amanhã quero que se apresentem no meu gabinete! " mas o encarregado, acabou também por ir no mesmo jipe. Embora, já noite, obrigou-me a ir mostrar-lhe a canoa, que já estava toda desfeita pelo impacto das ondas na areia, e também dado o estado em que já se encontrava; então mais raivoso e desconfiado ficou, pensando que fosse eu que a tivesse destruído e queria saber onde eu tinha escondido as armas
"Serão 10 horas da noite, chega finalmente o esperado carro da polícia. Dentro dele saem dois indivíduos que imediatamente se dirigem para o interior da casa onde me encontro. Entram e limitam-se apenas a dar as boas noites num tom frio e meramente formal. Não estendem as mãos a quem quer que seja.Mostram-se sisudos e com ar de muita importância.Não vêm fardados. Têm, apenas, sobre o bolso da camisa a esfinge do Presidente Macias.Mas o seu aspeto não ilude ninguém.Têm modos duros e a sua presença provoca um certo ar intimidativo e de gravidade nos circunstantes, que .subitamente param de falar e se entreolham como que alarmados. Os que estão sentados têm que se levantar. (...) Reina um ambiente de severa circunspeção. Tudo leva a crer que se vai proceder a uma espécie de julgamento sumário. Sou olhado com manifesta suspeita e desconfiança. Como se acaso se tratasse de um perigoso criminoso.(...)
(...) São quatro da manhã. À nossa frente sobressai uma mancha de luzes. Vejo que é um centro urbano.Tem aspeto de ser vila ou cidade (presumo que tenha sido Luba): "Que lugar é este? - indago."¿Por qué?! .. ¿Qué te importa saber eso! - Responde o chefe da polícia. Fica situado à beira-mar, e, pelos barcos pesqueiros que estão fundeados na baía que o ladeia, denota ser um razoável centro piscatório. Após algumas voltas pelas suas artérias, eis que o jipe abranda e sou imediatamente conduzido ao interior de um edifício. É uma esquadra, não tenho a menor dúvida. À porta está uma sentinela e a inscrição: Policia Nacional de Seguridad
Entro para o gabinete do chefe da esquadra, para onde também são encaminhadas as minhas coisas.Fico de pé frente à sua secretária. Momentos depois manda-me descalçar, passam-me as mãos pelos bolsos e ordena que seja conduzido a uma cela.Aberta a porta, sou empurrado de rampelão lá para dentro.Entorpeço e caio.No chão estão algumas pessoas deitadas que não vejo. Debruço-me e tacteio para tentar descobrir um espaço onde possa deitar-me.Mas só toco em corpos, quase amontoados, estendidos lado a lado como se fossem sardinhas enlatadas.De pé não consigo ficar porque me sinto demasiado fatigado.Necessito de dormir de qualquer maneira nem que seja sobre espinhos.Por fim,lá me deito.De lado e com as costas voltadas para a parede.No chão apenas uma esteira a separar a frieza do cimento.Mesmo assim adormeço que nem uma pedra.Nove horas da manhã. A cela é aberta e somos acordados. Todos me olham estupefactos e surpresos. A minha surpresa também não é menor. Entre os meus companheiros de infortúnio há duas crianças, duas mulheres e quatro homens (trabalhadores nigerianos. As crianças são ainda de peito.Isto impressiona-me, meu Deus
As ratazanas entravam na minha cela, chegavam a passear-se por cima de mim e a morder-me nos dedos dos pés, quando me deitava - Por vezes no chão, pois não conseguia estender-me e segurar-me no banco. Também nem sequer dispunha de uma torneira ou de um lavatório. Para beber um copo de água tinha de o implorar aos guardas, que só mo levavam quando lhes apetecesse.
Por outro lado, também tinha de levar com o cheiro das minhas fezes, pois, só de manhã eram recolhidas. Como se não bastasse o estado de desnutrição, que quase me arruinara, tinha agora que levar com os suores e cheiros do meu corpo, pois não tinha onde me lavar. Daí que, quem ali desse entrada, não tardasse a que, ao fim de alguns dias, tivesse a sensação de que, em vez do prisioneiro se sentir um ser humano, se identificasse como um pária e ficasse assim mais propenso a aceitar a condenação como um castigo justo e inevitável. Felizmente, nunca me deixei abater, porque, as adversidades do mar, me haviam preparado para todo o tido de dificuldades, no entanto, a passagem por aquela prisão (breve é certo) constitui uma marca negra nas minhas recordações da Guiné Equatorial e na minha vida.


Na viagem à Nigéria, levei as duas bandeiras: a de São Tomé e Príncipe e a de Portugal Mas, nesta viagem, apenas levei o pavilhão do jovem país independente aonde regressei sem um centavo na algibeira, onde encontrei todo o apoio que precisei para mandar construir a canoa e para a aparelhar.- Sim, e donde parti para grande aventura. No meu cárcere, em Bioko, um de dia resolvi hastear a Bandeira Nacional de São Tomé e Príncipe, - Quando o carcereiro, que, de volta e meia vinha espreitar a minha cela, topou, mas que heresia!... Foi buscar imediatamente a chave da cela e, ao entrar lá dentro, deu-me um empurrão contra a parede, e, ao mesmo tempo que agarrava nela e a amachucava, levando-a, berrava: Su mercenário! ¿Qué descaro!! Qué falta de vergüenza!!
Não posso dizer que fosse agredido fisicamente, mas humilhado e submetido a uma incerteza psicológica terrível. É que, após ter dado entrada naquele maldito presídio de condenados à pena capital, contava sempre com o pior: de resto, os presidiários que me visitaram pela janela e me levaram comida, avisam-me logo, com esta pergunta: "És político?!..- A que eu respondi: "Não!" Diz um deles: "Então talvez te safes. Mas não digas mal do Presidente, senão... podem decapitar-te!Obiang, ainda jovem, com os seus 34 anos (e a juventude é sempre mais tolerante e generosa) era já então o Comandante das Polícias e das Forças Armadas e foi ele que ordenou a minha soltura, depois de me ter mandado chamar ao Comando e após ter passado alguns dias numa das mais tenebrosas prisões de África , onde todas as noites, havia execuções sumárias, já que, quem ali entrasse, só saía de lá cadáver.
Sucedeu, porém, que, por um feliz acaso, talvez milagroso (pelos vistos, a sorte protege os audazes), soa o telefone no corredor da morte - Era o então o Comandante Teodoro Obaing Nguema Mbasongo, atual Presidente da República da Guiné Equatorial, sobrinho do todo poderoso, Francisco Macías Nguema, a ordenar ao Comissário da Prisão para ser conduzido à presença, ao gabinete do então supremo comandante das policias e das forças armadas, que me recebeu, inicialmente de forma austera e desconfiada: com estas palavras: " O que se passa contigo?!... Porque te meteste num canuco e o que vieste aqui fazer?!.. Lamento mas tenho que cumprir as ordens de Sua Excelência e tenho de o executar hoje!...
Respondi-lhe que era um náufrago e para me soltarem as algemas e lhe mostrar a mensagem do MLSTP, que trazia no bolso atrás das minhas calças - Como estava carimbada, não duvidou da sua autenticidade e, ao sentar-se na sua cadeira de vime(enquanto eu ia permanecendo sempre de pé e à sua frente) me passou a questionar de forma mais descontraída e simpática
Bom, lá tive que voltar a repetir o que já havida dito várias vezes, que não era espião e as razões pelas quais me havia metido na canoa e ido ali parar - Mas,

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| A bordo do Hornet |
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| Ilha de Ano Bom |
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| A sul e à popa ia ficando mais distante Ano Bom |
20 de Outubro - 1975 - Desiludido por não ter sido largado um pouco mais a sul e a oeste, lá parti, de regresso a São Tomé, pelo desconhecido oceano a fora, a pensar em refazer nova viagem e com o apoio marítimo de alguém que não me traísse! - . Após um dia de navegação normal, com vento pela popa e à vela - mas sempre perseguido por duas canoas para me roubarem os alimentos, dada a extrema penúria vivida naquela ilha - surge o inevitável temporal: um violento tornado, ao princípio da noite, vindo do sudeste, uma súbita rajada de vento seguida por uma enorme vaga, apanha-me desprevenido e ainda com a nova casca de noz, mal acabada de experimentar, solta-me o leme (que lhe adaptei - e só por milagre também eu não fui atirado, com a cana do leme, para o seio daquela escurissima confusão, que só a curtos espaços os relâmpagos iluminavam) deixa-me a piroga atravessada à vaga e desgovernada, varrendo-me os apetrechos e forçando-me alijar da maior parte de viveres para aliviar o lastro e não ir ao fundo
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| Âncora Flutuante com um bidõe |
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| Enfrentando tempestade |
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| Na noite do naufrágio |








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