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segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Odisseia em piroga no Golfo da Guiné - 23-10-1975 - Passei uma noite dificílima! tirando água permanentemente desta embarcação, que já não é uma canoa!... É uma banheira!...

Tenho a sensação de que não pertenço ao mundo donde vim: reconheço-me um excluído, um inútil - talvez o único elo . em que nele me reveja, seja  apenas o sentimento dos que sofrem a desesperança de nada terem. 

 

Jorge Trabulo Marques  - Já me referi a esta minha aventura marítima em postagens anteriores, neste blogue, l Pelo que, é meu propósito, apenas reportar-me a todo o meu diário num livro que espero - o desejo desde há varios anos - vir a editar  - Pois, sendo jornalista,  não quero servir-me deste espaço, unicamente para uso da minha vida pessoal . Eu resisti e estou vivo, graças a Deus. Mas, nos dias que correm, há muita gente que está vivendo uma odisseia pior de que a minha. Poderei vir a editar mais alguns textos sobre esta minha dramática experiência mas não com carácter regular. Meu Bem-haja pela sua atenção. 

Manhã parda e brumosa. Aguaceiros a pairar por tudo quanto é vastidão... O céu um espesso manto acinzentado!.. 
A incerteza a ganhar foros de domínio sobre a esperança. E a angústia a minar-me à alma.  Momento grave .De profundo vazio. Em que até o próprio Universo se me afigura morto, decompondo-se das suas formas, ante os poderes supremos dos elementos destruidores. 

Mais uma noite que não me dera descanso: chuva e vento. Praticamente desde que as trevas cobriram o mar. 


Procurei proteger-me com uma capa e uns plásticos, mas de pouco me serviu. A água caia-me de todos os lados. Se não era a que vinha do alto, era a que a franja das vagas se fazia saltar a cada instante. Depressa a canoa se transformou num autêntico charco. 


E então que dizer de mim?...Foi horrível!  Uma vez mais uma noite angustiante e horrível!  Aliás, as palavras que verti para o meu diário gravado,  não o desmentem. 

Diário - É já manhã do terceiro dia que me encontro sozinho, neste vasto Golfo da Guiné. 

Só vejo céu e mar!...Este mar escuro! De um azul profundo, escuro! Mais nada!...De vez em quando uma ou outra ave na procura de algum peixe. 

Passei uma noite dificílima! tirando agua permanentemente desta embarcação, que já não é uma canoa!... É uma banheira!...


Água por todos os lados! Estou completamente molhado. Encontro-me náufrago! Não tenho domínio na minha canoa! Perdi o leme. Algumas coisas também...  Até agora tenho mantido a serenidade, tenho-me quedado num autêntico mutismo...Não tenho dito palavras nenhumas, mas ao mesmo tempo tenho a sensação de que tudo aqui tem vida!...E que falo...Falo com tudo o que me rodeia na minha canoa. . . Todas as coisas que aqui tenho, tem formas de gente! de pessoas...Mas não falo.. 

 À força de contemplar o que me rodeava e os parcos objectos que me restavam na canoa, parecia-me encontrar em cada um deles um certo carácter, algo muito humano, uma certa fisionomia ou cumplicidade com o meu sofrimento. 

 Imagem da minha largada das Neves para a Baía Ana Chaves, S.Tomé - Sabia que me ia expor a enormes riscos   - e já os tinha vivido em anteriores travessias de S. Tomé ao Principe e de S. Tomé à Nigéria - mas estes pareciam-me prolongar-se por eternidades  

À força de contemplar o que me rodeava e os parcos objectos que me restavam na canoa, parecia-me encontrar em cada um deles um certo carácter, algo muito humano, uma certa fisionomia ou cumplicidade com o meu sofrimento. 

E,  às vezes, era tal a empatia que me dava vontade de me abrir ao meu silêncio e desabafar o que me ia na alma.  Na realidade, nada ali podia ter formas humanas, naquele deserto unicamente povoado de mar; o que eu desabafava para o meu gravador era tão só o excesso do meu silêncio: em que interiormente me escudava e da erma e estranha paisagem em torno de mim.

Diário - "Há um silêncio ameaçador!...Umas vezes há um silêncio. . .Outras vezes há vozes…que eu ouço não sei donde! . . .Nesta imensidão que existe em meu redor!...0 mar. o azul e o céu! 

Mas por que é que estou aqui?...  Afinal, porque?... Aqui?.. Afinal porque?... 

 Eu já não sei porque!... Por que o destino quis?!... Por que eu quis?!...Não sei...Há de ser o que o destino  quiser!...

 Sim, sentia-me demasiado insignificante perante tamanha grandeza, e, por isso desprovido dos meios mais elementares para a poder vencer, via-me assim como que entregue  às  mãos de um destino incerto.  Pois que segurança, que tranquilidade me poderia oferecer um simples pau escavado atirado para ali de qualquer modo à brutalidade das ondas?... Nenhuma. Absolutamente nenhuma. 

Respostas para todas as minhas dúvidas, por enquanto, ainda as não tinha. 

Entender a razão na sua amplitude real, porque ali me encontrava perdido, porque tao repentinamente me havia transformado naquela miséria ,eu que deixara a linda Ilha de São Tome, com tanta confiança, para já era ainda muito cedo para responder a tantas interrogações. Digamos, tudo se afigurava muito nubloso para o espírito. 

A surpresa fora demasiado grande. Além disso, assaltava-me, a todo o momento, aquilo a que vulgarmente os marinheiros chamam a angústia do material. A angústia e o receio de que a minha canoa não resistisse aos constantes embates das águas.

 E, se por um lado, subsistiam tais inquietações, quanto a fragilidade da minha embarcação ,por outro - e este talvez o pior aspeto - era a sensação de impotência para a Governar, ante aquele mar bravio. 

Até a chuva .A própria chuva não parava. 

 Aliás, estava-se no tempo dela: um período que naquelas latitudes se prolonga por nove meses. E em que os tao conhecidos tornados se podem desencadear a qualquer momento.

 De resto, naqueles mares equatoriais, o tempo e mesmo assim: chuvadas, tornados, calmarias entrecortadas com tempestades ou agueceiros. Dificilmente, passa um dia, que não se verifiquem as condições atmosféricas mais bruscas e variáveis. 

A canoa ia, por isso, transformada num charco. 

Primeiro, fora a chuva diluviana da noite tempestuosa, que não parara no dia seguinte, nem na noite que lhe sucedeu. Agora, ao terceiro dia, tanto de manhã, como durante a tarde, era praticamente à copia fiel de um tempo agitado e cinzento que não me dava um minuto de descanso. 

Por isso, os banhos inoportunos por sobre a minha roupa, por sobre o meu corpo, eram uma constante, que fisicamente me desgastavam e, em consequência, me causavam um permanente mal-estar, as vezes muito próximo do desanimo. 

Que imagem, então a minha, meu Deus!...E como todas as minhas coisas andavam por ali mo deus dará, sobre o fundo daquele tronco escavado! ...É donde até exalava um cheiro  fétido devido a frutos já apodrecidos e a odores do meu corpo Que, por causa da humidade e da água salgada, se ia cobrindo de chagas nalgumas partes. 

Ah!...Não o esqueço!...Não esqueço tais horas! 

Dário – “Na minha canoa reina o caos...eu sou o caos!  Não sou ninguém, não sou nada! ...Absolutamente nada!...E,como tal não me devo preocupar com coisa alguma... 

Vejo apenas uma imensidão de água! Uma vastidão de oceano…Vejo toda esta força quase que a tentar tragar-me, engolir-me! No entanto, este nada! este ninguém! mantém-se aqui nesta fragilidade!.. Que ameaça ser engolida todo o momento!..


A ameaça não se consumava e ambos, eu e a minha canoa, 1á íamos resistindo.  Umas vezes talvez por piedade do mar ,mas outras não... Era o instante... A centelha a brilhar-=me no fundo da minha alma, apontar-me uma réstia de esperança.

  Como tudo pode mudar num brevíssimo instante!...

 Como a fraqueza de um momento incerto se pode transformar em poderosa defesa. 

Oscilando da súbita fragilidade à firme solidez. 

 Sim. Sinto-me fraco e forte. Falo no vazio. Num misto de plenitude de vazio. Na pobreza e na abundância de mim.  Pelo meu olhar irradio, absorto, dilatado até  à amplidão, à  infinitude dos espaços, perpassam, em catadupa, imagens  de vertigem e destruição. 

Sei que bastaria uma vaga, uma única vaga mais furtiva - e eu estou sempre, sempre, à mercê dessa vaga - e seria o fim num abrir e fechar de olhos, desapareceria. 

Sim, tenho a absoluta certeza de que imediatamente seria tragado na sua sempre agitada amalgama, dissolvido pelo nada. 

Sinto que o mundo já não e o mesmo .Nem o céu que nunca como agora me pareceu tão   vazio. Nem mesmo o próprio ar que respiro, que, por tão carregado de humidade e daquele trago acre de sal, me dilata as narinas, entra-me em lufadas pela garganta, enche-me o peito, mas quase me sufoca 

Entretanto, vivo. É  o que importa! 

Sou triste e glorioso no meu infinito abandono. 

Tenho a sensação de que não pertenço ao mundo donde vim: reconheço-me um excluído, um inútil - talvez o único elo . em que nele me reveja, seja  apenas o sentimento dos que sofrem a desesperança de nada terem. 

E esses são aos milhares. Estendem-se, talvez, por muitos milhões pelo mundo inteiro. 

 Penso neles, obviamente. Vivo a meias com e incerteza, com a angústia e com o sofrimento, tal como todos quantos, vivem no mais absoluto desprezo e abandono.

Por isso, nesta viagem errante, ao sobrepor-me a dança louca das vagas, o meu pensamento não podia senão distanciar-se ainda mais de mim e aproximar-me, naturalmente, e todos os aflitos, de todos os abandonados ou perdidos pela mesma desgraça e infortúnio - porventura, também num reforço de auto-convencimento de que, apesar da gravidade do momento, nem tudo estivesse perdido. 

 Diário - Náufragos!!...Se esta  gravação um dia for escutada, mantende à calma!.. Nunca desmoralizai!,... Nunca  percais a confiança.

Palavras breves, mas muito sentidas e prenhes de significado, que registei para o gravador, pouco mais ou menos a meio da tarde.  De um dia que, embora pesado e batido de chuva e vento, lá se ia arrastando, hora atras de hora, com um mar sempre muito solto e cavado. 

 E, pelos vistos, sempre a piorar. Pois, se a manha fora de aguaceiros, com uma chuva miudinha, mas persistente, a tarde hão se perspectivava melhor. Sim, antes crescia em abandono: 

Diário -  "Não ouço nada!...Não vejo nada! Agora nem uma ave sequer!..” 

Nenhuma voz me acalentava a esperança,  De vez em quando, levantava a cabeça e lançava uma olhadela rápida e desconfiada a toda a volta de mim, com a sensação de que alguém me chamava. Mas não: eram apenas vozes do próprio soar do mar - algo que, por vezes, se assemelhava a uma espécie de vagos vagidos humanos, mas que afinal nenhuma relação se poderia estabelecer com qualquer tipo de vozes ou sons que viessem dos confins do horizonte.

Na verdade o que eu ouvia era o eco mais vibrátil da minha imaginação exacerbada. Pois nada que se assemelhasse a terra estaria ali, com certeza, perto de mim. 

Naquele vasto descampado, agitado e vazio, o único elo que possivelmente poderia estabelecer só se fosse com a voz de Deus. 

E, no fundo de mim, era ate isso que eu buscava  O supremo instante. O apelo do absoluto. |.

Diário - “Eu não sou um crente, mas...tenho a convicção que deve haver qualquer forca misteriosa, qualquer forca sobrenatural que nos protege!...Pois, quando não, esta água, esta imensidão  do oceano, já me tinha tragado!!...Porque as ondas são alterosas!! Sao altas!!...E eu sinto-me aqui perdido no meio delas! 

 O mar continua a ameaçar engolir-me! mas não o faz não sei porque!...Porque eu não sou nada! Já não sou ninguém!...Não sou absolutamente ninguém 

Andam aqui tubarões a volta dá canoa...que andarão eles a fazer?! ...Que querem eles?!... 

Vultos enormes, escuros, compridos e com formas bem definidas, movimentavam-se sem parança, por baixo, dos lados e a roda da canoa. Eram os temíveis tubarões com a sua barbatana dorsal a  rasgar, como uma permanente ameaça a superfície das águas. 

Já me eram familiares de outras viagens; no entanto, devido às  condições em que ali me encontrava, de modo algum os achava bem-vindos!...E a sua curiosidade intrigava-me. E então com aquele mar!... 

“Diário – O  mar cada vez esta mais agitado, mais cavado, mais alto!...Eu continuo a olhar o horizonte...  O céu carregado, sombrio...cheio de nuvens!  Quando a almejada terra?!...Quando um barco salvador?!...É o terceiro dia...Até quando continuarei assim!...  Não estou desesperado! ...Estou saturado deste caos! 

Ah! que insegurança eu sinto!...Sinto uma insegurança muito grande! ...Sinto que de um momento para o outro... 

Mas talvez as forcas sobrenaturais me mantenham aqui...  Não sei .se esta gravação será escutada!...Gostaria de deixar aqui uma palavra amiga a todos quantos me ajudaram acreditaram em mim...porem o destino e a sorte não quis...” 

Mais um dia no fim. O Sol desce no ocaso.

Tarde de cinza  Mar estanhado!...Canoa minúscula!..

  E como sou grande, afinal!... 

Afinal, quisera a minha sorte ou meu destino, soltar-me de todas as amarras da vida vulgar.  E lançar-me ao sabor das aguas e do vento!...  Que melhor cenário que este para me encontrar a sós com o infinito poder de Deus?!... 

Sim, no fundo a vida e realmente um mistério!  Um mistério que nos liga ao Criador.    E. então, com aquele mar?!...

 


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