Exposição - No Centro Cultural Português, em S. Tomé - 28 a 30 de Julho
SOBREVIVER NO MAR DOS TORNADOS
SOBREVIVER NO MAR DOS TORNADOS
38 DIAS À DERIVA NUMA PIROGA
Finalmente, graças à compreensão e ao louvável
acolhimento da Embaixada de Portugal em São Tomé e Príncipe vou poder concretizar
um velho sonho: apresentar, na capital destas maravilhosas ilhas, e no Centro
Cultural Português, a exposição fotográfica e documental, que esteve patente no
Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, de 10 de Março a 10 de Abril de 1999,
inserida no espírito da Expo98, “Os Oceanos”, subordinada ao título: SOBREVIVER
NO MAR DOS TORNADOS – 38 DIAS À DERIVA NUMA PIROGA.
Sou natural da aldeia de Chãs do concelho de Vila Nova de Foz Côa, onde, nos últimos anos, após ali ter descoberto, em 2002, vários alinhamentos pré-históricos, com os equinócios e solstícios, tenho sido o responsável pela coordenação de vários eventos culturais. Sou jornalista (da ex-Rádio Comercial RDP), tendo vivido vários anos em São Tomé – ilha onde desembarquei, em Novembro de 1963, para um estágio, na Roça Uba-Budo, da Companhia Agrícola Ultramarina, do meu curso de Agente Rural, da Escola Agrícola de Santo Tirso. Várias foram as profissões que aqui exerci, até os primeiros passos do jornalismo, assim como também muitas foram as vicissitudes, bem como os dias mais felizes da minha vida, aqui vividos, entre aquela distante data e Outubro de 1975, cujas histórias dariam talvez matéria para alguns livros. Mas ficará para ocasião oportuna.
Jornal Novo – 25.9.1976 “Ele correu perigos que assustariam o mais corajoso, incorreu em temeridades que não visavam o lucro mas uma meta mais longínqua. Um insatisfeito desejo de se afirmar e de demonstrar que moram no homem, e com ele vivem , recursos insuspeitados e adormecidos. Não se pense que se referimos a um aventureiro gratuito, que apenas pretende chamar sobre si as atenções, sem objectivos louváveis. Nada disso.(...) "
"As gravações a que procedeu no mar são empolgantes e transmitem o estado de espírito do homem que se encontra só e não conta senão com ele e com Deus. A resistência do homem á fome, à sede e ao desespero, constituem uma constante do seu relato. É comovente a transcrição do feito de Jorge Marques, o qual justificava a publicação de um livro, contendo, em pormenor, o que a escassez do espaço de um jornal não comporta."
A descrição que passou á deriva numa piroga no Golfo da Guiné, se levada ao cinema, daria um filme memorável, principalmente se o realizador extrair da odisseia a espantosa variedade de facetas que ela oferece.” Excertos do Jornal Novo
es.
Ó Deus Omnipotente e Salvador!... Ó JESUS CRISTO!...Ó BELO E MAGNÍFICO EXEMPLO SENHOR MEU!... Que maior tormento e suplício aquele!... Deitado no duro fundo daquele inconstante, encharcado, tosco e frágil madeiro escavado!… Porém, mesmo assim, quão doce e infinito era aquele meu tormento!... Quantas vezes, me lembrei da tua cruz e do teu calvário!... Quando já estavas prostrado e rendido às leis da morte e da vida para te lançarem estendido ao sepulcro!.. Quantas!... Quantas vezes!... Quando tudo à minha volta me parecia revolto e perdido… Sim, no meio avassalador daquelas espessas trevas e noites de breu, cercado pelo tumulto escuro do mar e do céu! E, ante a imensa e tenebrosa solidão, apenas se me afigurava vislumbrar o perfil do teu piedoso rosto… Embora triste e macilento, banhado de suor e de lágrimas!... Mas coroado de esplendorosa caridade e de compaixão… por aqueles mesmos que te traíram e não compreenderam a tua humana, divina e nobre missão! Mas aos quais a áurea que iluminava a tua face, me parecia resplandecer apenas emanada por um infinito sentimento de amor e perdão
“Contar-te longamente as
perigosas
Cousas do mar, que os
homens não entendem,
Súbitas trovoadas
temerosas,
Relâmpagos que o ar em
fogo acedem,
Negros chuveiros, noites
tenebrosas,
Bramidos de trovões que
o mundo fendem,
Não menos é trabalhos
que grande erro,
Ainda que tivesse a voz
de ferro.”
Camões
O objetivo desta minha exposição é associar-me ao espírito das comemorações do 40.º aniversário da Independência de São Tomé e Príncipe; mostrar à população destas encantadoras ilhas, às generosas e pacíficas gentes deste jovem país, das quais tenho as mais gratas recordações, um conjunto de várias fotografias, artigos, excertos do meu diário de bordo, entre outros documentos, das minhas aventuras marítimas e da escalada do Pico Cão Grande, com a colaboração de uma corajosa equipa de santomenses. Espólio que, no termo da exposição, gostaria de doar ao Museu Nacional de São Tomé e Príncipe.
Em resumo, direi que sou
autor de várias travessias em pequenas pirogas primitivas, nos mares do Golfo
da Guiné, por força de muitos treinos, sempre que me era possível, de praia em
praia, nas frágeis canoas dos corajosos pescadores de São Tomé, aos quais
desejo aqui expressar um abraço de reconhecimento e de admiração, não apenas
pela dureza e risco das suas vidas, em que se expõem, sempre que partem para o
mar, como também pelos ensinamentos que me prestaram, já que foram eles os meus
melhores mestres.
Depois de me sentir suficientemente preparado, que simplesmente a
empreender as habituais saídas de canoa, na praia Maria Emília ou ir até à
Fortaleza S. Jerónimo, na piroga que ali comparara a um velho pescador por
200$00, decidi fazer um teste um pouco mais ousado, indo de canoa desde a Baía
Ana de Chaves até à praia de Anambô. Este é o local onde se encontra o padrão
que assinala a chegada dos primeiros navegadores portugueses, justamente no ano
em que se realizavam as comemorações do V centenário do seu desembarque, em
destemidas e frágeis caravelas, filhos de um pequeno país, mas que, graças à
sua notável valentia, à grande gesta destes e de outros navegadores portugueses, haveriam de mudar a história e a geografia do mundo, em admiráveis epopeias marítimas, cantadas nos
épicos versos de Luís de Camões, corajosas façanhas que muito admiro,
contrariamente a vários aspetos da colonização, cuja dura realidade também a
senti no corpo e no espírito. A viagem de ida e volta, foi bem sucedida, não me
oferecendo grandes dificuldades, concluindo que estava habilitado a outros
desafios mais arriscados.
Um mês depois, aí estava eu, tal como aqueles intrépidos navegadores, e
à semelhança dos arrojados pescadores destas maravilhosas ilhas, quando o
tornado os arrasta para o desconhecido, a desafiar a vastidão do mar, num
simples madeiro de ocá escavado.
Larguei à meia-noite, clandestinamente, pois sabia que se pedisse
autorização esta me seria recusada, dada a perigosidade da viagem, levando
comigo apenas uma rudimentar bússola para me orientar. No regresso de avião a
São Tomé, fui preso pela PIDE, por suspeita de me querer ir juntar ao movimento
de Libertação de São Tomé e Príncipe, no Gabão, o que não era o caso. Levei
três dias e enfrentei dois tornados. À segunda noite adormeci e voltei-me com a
canoa em pleno alto mar. Esta era minúscula e vivi um verdadeiro drama para me salvar, debatendo-me como
extrema dificuldade no meio do sorvedouro denegrido das águas.
Cinco anos depois, numa piroga um pouco maior, fiz a ligação de São
Tomé à Nigéria. Uma vez mais parti sem dar a conhecer os meus propósitos, ao
começo da noite, servindo-me apenas de uma simples bússola. Ao cabo de 13 dias
chegava a uma praia ao sul deste país africano, tendo sido detido durante 17
dias por suspeita de espionagem, após o que fui repatriado para Portugal. Os
jornais nigerianos destacaram em primeira página o feito.
Os objetivos destas travessias visavam demonstrar a possibilidade de
antigos povos africanos terem povoado as ilhas, situadas no Golfo da Guiné,
muito antes dos outros navegadores ali terem chegado, contrariamente ao que
defendem as teses coloniais, que dizem que as ilhas estavam completamente
desabitadas. E a verdade é que, entretanto, já foram encontradas antigas cartas
em arquivos, com nomes árabes que testemunham esses contactos. Contributos
esses que, de modo algum, poderão pôr em causa o mérito dos ousados feitos dos
navegadores portugueses.
Regressado a São Tomé, ainda no mesmo ano, e já com São Tomé e Príncipe
independente, tentei empreender a travessia ao Brasil, com o propósito de
reforçar a minha tese, evocar a rota da escravatura através da grande corrente
equatorial e contribuir para a moralização de futuros náufragos, à semelhança
de Alan Bombard. Segundo este investigador e navegador solitário, a maioria das
vítimas morre por inação, mais por perda de confiança e desespero, do que
propriamente por falta de recursos, que o próprio mar pode oferecer. Era
justamente o que eu também pretendia demonstrar. Navegando num meio tão
primitivo e precário, levando apenas alimentos para uma parte do percurso e
servindo-me, unicamente, de uma simples bússola, sem qualquer meio de comunicar
com o exterior, tinha, pois, como intenção, colocar-me nas mesmas condições que
muitos milhares de seres humanos que, todos os anos, ficam completamente
desprotegidos e entregues a si próprios. Porém, quis o destino que fosse mesmo
esta a situação que acabasse por viver.
A canoa foi carregada num pesqueiro americano para ser largada, na
corrente equatorial, um pouco a sul de Ano Bom. Porém, à chegada a esta ilha, o
comandante propôs-me abandonar a canoa e ficar a trabalhar a bordo, alegando
que a mesma estorvava e que a aventura era muito arriscada. Na impossibilidade
de ser levado para a dita corrente, decidi-me pelo regresso a São Tomé para
tentar a viagem noutra oportunidade. Foi então que uma violenta tempestade me
surpreendeu em plena noite, tendo perdido a maior parte dos víveres, os remos e
outros apetrechos. Ao sabor das vagas, num simples madeiro escavado, é difícil
imaginar pior situação. Mesmo assim, com a canoa completamente desgovernada,
não cruzei os braços e nunca me dei por vencido. Peguei num dos mastros e coloquei-o
de través para garantir algum equilíbrio. Um dos bidões foi amarrado a uma
corda e largado para servir de âncora flutuante. No dia seguinte improvisei um
remo com um dos barrotes do estrado da canoa e pedaços da cobertura, a fim de
conseguir dar alguma orientação. Mas de pouco me haveria de valer face à fúria
dos constantes tornados. Como bóia de salvação utilizei o resto do estrado e
adaptei-lhe um pequeno colchão de ar; frágil recurso para forças tão
descomunais!
Foram momentos de extrema aflição, que me pareceram verdadeiras
eternidades, durante 38 longos e difíceis dias, 24 dos quais a beber água do
mar e das chuvas, e duas semanas sem alimentos que não fosse algum peixe que ia
apanhando (e quando acontecia) ou ave que, entretanto, pousando, sacrificava.
Enfrentando tempestades, sucessivas, incluindo ataques de tubarões. Ainda
cheguei a pescar alguns de pequeno porte, enquanto tive anzóis. Mas, até estes,
mais tarde, me haveriam de faltar.
Acabei por ser arrastado pelas correntes até à Ilha de Fernando Pó, já
no limiar da minha resistência física, onde fui tomado por espião, algemado e
preso numa cela de alta segurança, a mando do então Presidente Macias Nguema, após o que fui repatriado para Portugal, tal como me
acontecera na Nigéria. Mas, agora, graças a uma pequena mensagem que levava do
então jovem Governo de São Tomé e Príncipe, que recentemente tinha ascendido à
sua independência, para saudar o povo irmão brasileiro, quando eu aportasse na
sua costa.
Os objetivos dessas minhas travessias foram
vários: antes de mais, o fascínio que o mar exerceu em mim desde o primeiro dia
que desembarquei, do velho Uíje, ao largo da baía azulinha da linda cidade de
São Tomé; o desejo de me encontrar a sós com a solidão e a vastidão do oceano
e, de perante esse cenário, me poder interrogar, ainda mais de perto, sobre a
presença e os mistérios de Deus. Mas também por outras razões de carácter
histórico-científico e humanitário, tais como evocar a rota da escravatura, ao
longo da grande corrente equatorial, lembrar esses ignominiosos tempos do
comércio de escravos e chamar atenção para esse grave problema que, sob as mais
diversas formas, continua afetar a existência muitos seres humanos na
atualidade. Mais, demonstrar a possibilidade de antigos povos africanos terem
povoado as ilhas, situadas naquele imenso Golfo, muito antes dos navegadores
portugueses ali terem chegado. Por último, contribuir para a moralização de
futuros náufragos. Felizmente quis a minha boa estrelinha e, creio, com ajuda
de Deus, que pudesse resistir a tantos dias de angústia, de sobressaltos e de
incerteza.
Já se passaram vários anos, porém essa minha
experiência ainda está muito presente na minha memória. E duvido que algum
náufrago possa alguma vez esquecer os seus longos momentos de abandono e de
infortúnio.
Jorge Trabulo Marques
São
Tomé
julho
2015
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