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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Memórias de São Tomé e Príncipe – Colonial, anos 50 e 60 - A cadeia é um espetáculo arrepiante; quando lá entrei, estavam todos a comer de cócoras no corredor – Estas as condições que, cerca de 150 santomenses, encontraram na cadeia da Ilha do Príncipe, na sequência dos Massacres do Batepá - Tomé Agostinho das Neves, 97 anos, um dos sobreviventes mais antigos do Campo de Concentração Fernão Dias

Por Jorge Trabulo Marques - Jornalista e Investigador 

1963 - Relatório do Inspector do Ministério do Ultramar

Vos de Sao Tomé - 1953

Em 3 de Fevereiro de 1953, Tomé Agostinho das Neves, vivia no Pantufo,  atual vila  a curta distância  da cidade de S. Tomé – E foi da sua casa, situada  na então pequena povoação, que o foram levar para o Campo de Concentração de Fernão Dias – Local de sofrimento e morte para milhares de santomenses: não através das famigeradas  câmaras de gás,  criadas pelo nazismo hitleriano para a matança de milhões de judeus, mas de outras formas de tortura e de espancamento, não menos cruéis – O que ali se passou, na sequência dos trágicos acontecimentos de 3 de Fevereiro, são das paginas mais negras de colonização portuguesas, nestas maravilhosas ilhas, episódios e sobejamente conhecidos   da sua população
A data de 3 de Fevereiro é dia de Feriado Nacional, em S. Tomé e Príncipe – As comemorações decorreram há quase um mês, oportunidade para recordar os que tombaram e homenagear os sobreviventes – Este ano foram assinaladas com a inauguração de um memorial , tal como referi neste site http://canoasdomar.blogspot.com/2016/02/s-tome-e-principe-homenageou-hoje-os.htm


Hoje vou aqui falar de um homem que, já não via há mais de 40 anos -  É do Sr. Tomé Agostinho das Neves – Um dos santomenses, que, no tempo em que o conheci,  trabalhava na Câmara Municipal de  São Tomé, como 2º oficial, muito estimado e respeitado, tanto pelos seus compatriotas e colonos, como  no interior da instituição – Falei com ele várias vezes. 

Quis agora um feliz acaso que me pudesse cruzar com ele – E também com o seu filho, Edgar Agostinho das Neves, Diretor do programa “Saúde para Todos,  organização não governamental portuguesa Instituto Marques de Valle Flôr (IMVF  - Encontro este que ocorreu, justamente à porta de sua casa, quando acabavam de chegar de um passeio dominical e no momento em que conversava com o português, Nuno Miguel Fazenda Bruno, professor de inglês, vizinho do prestigiado médico.


Sofreu imenso mas prefere não avivar o pesadelo de  tais memórias – Pois 97 anos têm o seu peso e o coração já não está talhado para suportar tão duras recordações – Por isso, o mais importante, neste reencontro, era dar-lhe um abraço e vermo-lo vivo à nossa frente 
– Sim, porque longe também vão os dias das primeiras entrevistas que fizemos para a revista angolana, Semana Ilustrada,  com vários sobreviventes do Batepá, entre os quais  o chamado “Homem Cristo”, nome pelo qual ficou conhecido, um dos mais heróicos sobreviventes,  que não só  logrou sobreviver à asfixia de uma estreita cabine, entre as três dezenas de seus compatriotas, encurralados,  como resistir às rajadas de metralhadora, quando, ao abrirem a porta, começou a fugir. – Tendo-me mostrado as suas calcas, ainda esburacadas pelo crivo da metralha.

Cadeira de choques eléctricos 
Tomé Agostinho das Neves, não estava nesse exíguo espaço nem chegou a estar a bordo do barco, António Carlos,  dos cerca de 150 homens da elite santomense, que iam ser atirados ao mar, caso a tripulação não se rebelasse, mas foi um dos mártires do campo de concentração de Fernão Dias – Memórias inarráveis, que, mesmo quem por lá passou, dificilmente encontrará palavras para as descrever

AS MACABRAS OPERAÇÕES DO NAVIO ANTÓNIO CARLOS NO PERÍODO COLONIAL -


Em Fevereiro de 1953, cerca de centena e meia  de santomenses, iam ser largados no mar  por ordem do Governador Carlos Gorgulho- Tal não aconteceu porque a tripulação, liderada pelo imediato Bernardino Lopes Monteiro,  se sublevou - Porém, alguns anos mais tarde, no caso de prisioneiros de guerra guineenses, persistem  fortes suspeições, de, que o crime tenha mesmo sido consumado, com uma parte da carga humana, engaiolada nos porões e da qual apenas chegou metade ao seu destino - Quem levanta a questão é  um tripulante, que acusa o comandante como uma figura odiada:  "Foi ainda a bordo deste mesmo navio que nos deslocámos de Bissau a Cabo Verde (Tarrafal) na Ilha de Santiago) para ali embarcar supostamente 88 ex-prisioneiros de guerra, mas por razões que nunca cheguei a saber apenas 44 voltaram para a Guiné .Era então Comandante do António Carlos o conhecido e odiado pelas gentes da outra banda, o  "Herói do Barreiro"... Estou a falar-vos do longínquo ano de 1964. (***). - Pormenores em. Luís Graça & Camaradas da Guiné: Guiné 63/74

sobrevivente
"António Carlos" - navio  de carga e passageiros,  que, anos mais tarde, ainda durante o salazarismo colonial também foi usado  para transportar presos do Tarrafal, como se poderá concluir mais adiante – E, pelos testemunhos, que aqui exponho,  também depreender-se que era através dele  que, o Governador Carlos Gorgulho, em Fevereiro de 1953, quis  levar a cabo mais uma das suas macabras operações de liquidação da elite santomense, que apelidara  de “comunistas” 

sobrevivente
Quem evitou a tragédia de cerca de centena meia de nativos santomenses foi o valoroso Bernardino Lopes Monteiro,  que era então o imediato e que, com outros elementos africanos da tripulação, obrigou o comandante a deixá-los na Ilha do Príncipe, após o que o forçou também de deixá-los no Senegal. Mais tarde, tendo regressado a Cabo Verde, donde era natural, mesmo com outra identificação, foi detido pela PIDE  e levado para o presidiu do Tarrafal.  

FORAM SALVOS DE SEREM AFOGADOS  E DEVORADOS PELOS TUBARÕES MAS  DEPOIS ESPERAVA-OS  UMA CADEIA ONDE ERAM TRATADOS COMO ANIMAIS  - É o que pode depreender-se do relatório de um inspector do  Ministério do Ultramar, na passagem que a seguir passo a transcrever, com data de 1963 – Mesmo 10 anos depois


1963
"Só é de salientar o estado deplorável do edifício  da “cadeia”, principalmente as suas divisões internas,  de compartimentos exíguos e em condições miseráveis de higiene A cadeia, estava com muitos presos e,  quando lá entrei, estavam todos a comer de cócoras no corredor que dá ingresso às celas e em cujo topo existem, vedados por um biombo-parede, uma imunda latrina e um chuveiro para banho. É um espectáculo a todos os títulos lastimoso e a  própria limpeza de tudo aquilo e o cheiro de classificar de afrontoso.

Só no maior compartimento-cela há uma tarimba a toda a largura. Nas restantes celas os presos dormem no chão. As paredes todas de uma negridão suja  e, cá fora, uma guarita em estado de ruína e toda inclinada, junto da qual uma sentinela da policia, armada de espingarda. A casa da guarda, logo á entrada da cadeia, do lado direito, também em estado de desmazelo completo, vendo-se duas camas de ferro desmanteladas.



É esta a cadeia dos presos do Julgado Instrutor  e da Administração do Concelho do Príncipe, incluindo os da Agência da Curadoria.  É um espectáculo arrepiante e, certamente, V.Exa. , mandará tomar imediatas providências para uma radical transformação, de modo a ser possível no mínimo admissível este conjunto de desmazelo e desumanidade.

O Sr. Administrador do Concelho disse-me  pensar propor a V.Exa, a remodelação do mesmo edifício

116 - A grande maioria destas queixas não tem qualquer despacho ou outro indício do andamento que tiveram, nos respectivos registos, ou então os despachos são imprecisos, incompletos, dando bem a sensação do desprezo com que estes assuntos, que tanto calam no espírito da população, são acolhidos por funcionários cheios de tédio, ou, como eles alegam, que têm tanto que fazer que não chegam a fazer nada.


Um despacho diz assim - "Ouvidos e harmonizados"  sem que ninguém possa saber ao certo o que se passou; outra "sentença" em queixa por desvio e retenção de uma máquina de costura diz: 

"Prometeu entregar a máquina no dia 20 de Janeiro"; a queixa era de 3 de Dezembro, e naturalmente não foi cumprida, como em casos idênticos tive ocasião de constatar, mandando comparecer os queixosos que foram encontrado., "Intime-se o queixoso para o dia 29" e nada mais se sabe; num requerimento arquivado com uma queixa, lês e escrito a lápis, sem data nem assinatura. "Chame-se o gajo" e fica por aí, pelo que é fácil de calcular o que seria o julgamento, que parece poder atribuir"\ um subalterno do Corpo de Polícia que substituía na data o comandante,

120 - Ouvi também referências á execução de trabalho compelido para serviços públicos, imposto aos nativos, do que não há conhecimento na Inspecção Superior dos Negócios Indígenas, nos termos do artigo 295• do Código do Trabalho do Indígena , de 6 de Dezembro de 1928.( Do c , 3.4 -,)

Constou-me também que na execução desses trabalhos e do trabalho correccional os trabalhadores são entregues á condução de outros presos, mui tas vezes criminosos de nomeada, que sobre os trabalhadores exercem grandes violências, o que já provocou a intervenção dos médicos do hospital em vista de ali aparecerem gravemente feridos ou contusos dos naus tratos e até por esse estabelecimento correu um processo por estupro na pessoa de uma menor de 11 ou 12 anos, presa ou filha de uma presa, que obrigou a tratamento hospitalar da vitima, praticado por um desses capatazes, preso por assassinato de um filho, tendo o processo sido mandado arquivar, sem qualquer procedimento. Estas casos são para averiguar um dia, dentro do prazo de prescrição de tais crimes. quasi todos os ~ovos selvagens suportam estas contrariedades por tempo mais ou manos longo, n:as a certa altura aparecem os actos de violência  e atentados individuais ou coletivos a , cuja culpa e costume atribuir a quem tenha denunciado os males, pelo que já fica a prevenção. A investigação que o inspector tencionava fazer sobre este assunto partiria de interrogatório dos presos a trabalhadores entregues á Po Lí.c í.e ;o que não se fez, a ninguém mas se arrisca a dar testemunho.”

 Aliás, assim o documentam as palavras de um alto funcionário do Ministério do Ultramar, em  1956, dois anos depois do massacre de Batepá, a 3 de Fevereiro de 1953, ao referir-se aos santomenses e contratados cabo-verdianos  (colocados sob a fiscalização da Curadoria Geral dos serviçais e indígenas por comodidade da administração, em face de trabalharem nas roças em igualdade de circunstâncias com os indígenas serviçais sujeitos  à tutela  curatorial) referia que ele que “no caso dos cabo-verdianos, isto não tem importância de maior, dado que a sua permanência em massa nesta colónia  é sempre

Porém, já quanto aos nativos de S. Tomé (embora advogasse outra solução, continuavam na condição do indigenato), “tratando-se de um povo em adiantado estágio de crescimento na civilização do colonizador a quem não pode impor-se um regresso ao estágio inferior, afigura-se-nos que a via mais adequada para resolver este problema, e a mais legal, será a promulgação de medidas destinadas a reconhecer ao nativo, individualmente, a sua capacidade de cidadania portuguesa, e nessa cidadania fazer entrar logo de início a grande maioria da população, impondo-lhes a  satisfação    de certos mínimos de sociabilidade, em especial, a comprovação de meios de vida e de trabalho, admitindo de entrada uma maioria, mais ou menos reduzida,  de nativos que ficariam sujeitos à tutela curatorial e regime de indigenato , até á comprovação para entrada no grémio do civilizado. Isso seria o caminho para a civilização nítida, perante a lei. 

UMA QUESTÃO DE JEITO E DE FORÇA

Era o que sugeria ainda a o dito servidor do regime colonial, citando “o grande António Eanes que a política indígena era a política de conduzir a população indígena com dosagens de “jeito” e “força” custa forma exacta custa muito a determinar”

Mas quanto aos nativos de S. Tomé  já assim não é, tratando-se de um povo em adiantado estágio de crescimento na civilização do colonizador a quem não pode impor-se um regresso ao estágio inferior, desmentindo-se com isso o objetivo máximo da nossa obra da colonização. Afigura-se-nos que a via mais adequada para resolver este problema, e a mais legal, será a promulgação de medidas destinadas a reconhecer ao nativo, individualmente, a sua capacidade de cidadania portuguesa, e nessa cidadania fazer entrar logo de início a grande maioria da população, impondo-lhes a  satisfação    de certos mínimos de sociabilidade, em especial, a comprovação de meios de vida e de trabalho, admitindo de entrada uma maioria, mais ou menos reduzida,  de nativos que ficariam sujeitos à tutela curatorial e regime de indigenato , até á comprovação para entrada no grémio do civilizado. Isso seria o caminho para a civilização nítida, perante a lei. 

sobrevivente
sobrevivente
Assim os trabalhadores cabo-verdianos foram transitoriamente colocados sob a fiscalização da Curadoria Geral dos serviçais e indígenas por comodidade da administração, em face de trabalharem nas roças em igualdade de circunstâncias com os indígenas serviçais sujeitos  á tutela  curatorial , e que podem acarretar algumas complicações no meio dos agregados dos trabalhadores. Por outro lado, os nativos de S. Tomé foram considerados sob a lei do europeu. Isto é,  retirados sob a tutela curatorial , quando perante a carta Orgânica do Império Colonial Português, artigo 246 $ único, devem estar sujeitos ao regime de indigenato, na sua ascepçao legal



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