JORGE TRABULO MARQUES
Ao revisitar a Calçada de Santana, em Março passado, onde
trabalhei como marçano em garroto, numa das antigas mercearias, para minha
surpresa, ali bem perto ao Nº 75, donde partia, aos 12 anos, com caixote ao
ombro a levar as compras aos clientes, subindo e descendo as escadas de ferro
das traseiras dos edifícios, curiosamente, deparei-me com um velho amolador de
facas e de tesouras - Não cheguei a saber se ainda buzina ou faz eco de algum
pregão , em todo o caso, deixo-lhe aqui o breve registo e também algumas linhas
do que eu recordo desses meus velhos tempos, nomeadamente do Bairro Alto, onde
também fui menino escravo de uma leitaria
Conheço o Bairro
Alto desde rapaz. Guardo daquelas ruas velhinhas muitas recordações. Mas ,
desse tempo, pouco mais resta que o seu casario. Está tão descaracterizado! Tão
diferente! Sou de uma pequena aldeia nortenha. Mal acabei a instrução primária,
vim procurar a vida na cidade alfacinha, como marçano - O meu primeiro
trabalho, foi numa mercearia na Calçada de Santana. Depois conheci vários
empregos. Era sempre a mesma coisa!... O marçano era o "moleque
negro" para todo o serviço - e a custo zero. Tinha que aprender a escola
antiga dos patrões. Servir o cliente com subserviência mas ir-lhe ao bolso nas
compras.. Todos queriam que roubasse umas gramas e eu não tinha jeito para
isso. Andei lá pelos penhascos agrestes atrás das ovelhas do nosso pastor e as
minhas mãos não estavam talhadas para maniganças aligeiradas(mas eficazes) nas
balanças. Acabavam por me mandar embora ou era eu a despedir-me . E lá voltava
andar com o saquito da trouxa às costas até conhecer novo patrão. Dormi muitas
noites no desvão das escadas ou nos terraços de cimento dos prédios mais
altos(subindo pela escada de serviço para que ninguém me visse. Receava os
vadios e envergonhava-me. Além disso, não tinha dinheiro para pagar nas
pensões. O pouco que me restava era para as carcaças. E também não me queriam
lá. Era menor. Uma manhã acordei de tal maneira enregelado, que, mal me levantei,
logo caí! - Oh como eram longas e frias aquelas horas da noite e da
madrugada!... Ouvia-as bater nas torres das igrejas... Custavam-me tanto a
passar!... Mas, uns dias
depois , lá acabava por arranjar outro patrão. Não pagavam quase nada... Era
quase de borla, sempre ao seu dispor e qualquer mercearia gostava de ter o
rapaz-marçano.
PERFUME DO FADO – Dee Euclides Cavaco
Lembrando o fado de outros tempos - No mês do centenário de Amália o fado está mais vivo.
Das centenas de temas que dediquei ao FADO, partilho hoje este,
adornado pelo video do meu especial amigo Afonso Brandão.
Trabalhei perto da antiga Feira Popular, em São Sebastião da Pedreira. Agora é
jardim da Gulbenkian. Na Rua da Graça (na Mercearia Pérola de Lisboa -
imagine-se que nome tão pomposo onde era tratado como escravo !) e em noutros
sítios onde nada se alterava. Antes de regressar à minha aldeia - desiludido e
para encetar outro tipo de vida - (o seminário mas também porque pouco tempo),
empreguei-me na Rua da Atalaia. Foi o melhor período que conheci em Lisboa.
Gostei de ali viver! - As pessoas familiarizavam-se e conheciam-se
rapidamente! Era tudo tão
pacato!... que não havia quase grandes diferenças da terra onde nasci. Mulheres
da vida também já eu as conhecia: de volta e meia aparecia por lá uma tal
"Chucha" desdentada na taberna do "Tio Timóteo"que punha os
adultos em alvoroço (e em bicha - esperando impacientes cada um por sua vez) e
a canalha num autêntico frenesim a espreitar o que os mais crescidos faziam. Só
que, enquanto lá era atrás de um penedo, no velho bairro fadista, era em casas
de passe. E podiam passear-se pelas ruas como mulheres fatais!
Mas o Bairro
Alto já não é o mesmo bairro típico daquele tempo!... Longe vão esses dias!...
Hoje está muito diferente de quando andei por ali a calcorrear as suas
calçadas. A subir e a descer escadas com o pesado caixote de madeira sobre o
ombro para levar as compras aos fregueses que se haviam abastecido na velha
mercearia – Bastava que até comprassem meio quilo de arroz ou meio de açúcar
para terem direito a que o menino-escravo lhe levasse as compras a sua casa. Oh
onze anos ainda frescos da minha vida! E já a comer o pão que o diabo amassava!
- As parcas gorjetas e mais uns tostões ao fim do mês! - Mesmo assim, as
saudades são muitas!
Longe as manhãs dos pregões da varina com a canastra
à cabeça Há sardinha linda ...olhó carapaaaaauuuu fresquiiiiiinho! E do leite
que era vendido de porta em porta. Do apito do amolador das facas e das
tesouras, do vendedor das mantilhas e dos capachos. E de tantas outras vozes de
venda ambulante da fruta e hortaliça – olha a fava riiica! Olha o par de
melancias e melões! Olha os moranngos de Siiintra! Rebuçados caseiros: A
tostão, e é cada matacão!!! Era o apregoar dos mais variadíssimos produtos: do
pão quentinho, acabado de sair do forno e dos Figos: Quem quer figos!!!, quem
quer almoçaaar!!! Cujas vozes ecoavam pelas ruas, ainda o sol estava longe de
assomar sobre as colinas da Graça e do Castelo ou de irromper sobre a planície
que se estende além do estuário do Tejo. No entanto, já da Praça da Ribeira -
onde ainda mais cedo principiara o agitar de um bulício vivo e colorido, por
entre os amontoados dos legumes e das frutas que rescendiam de cheiros
intensos, frescos e perfumados , num misto de odores de verduras e de outros
primores colhidos ou arrancados à fertilidade da lezíria – sim, já a laboriosa
gente de vendedores e vendedeiras partira rua acima ( Rua do Alecrim, Rua das
Flores ou pela íngreme Calçada da Bica), para se dirigirem ao típico bairro
fadista. Fazendo ecoar os primeiros pregões, por entre sorrisos alegres,
expressões risonhas , bem dispostas, que o esforço duro e vida pobre, pareciam
não toldar!
Todas essas vozes e imagens pertencem ao passado. Tudo ali se alterou e
está completamente desfigurado. Nem as tascas típicas nem as velhas mercearias!
Tudo isso já desapareceu. Até o fado é escasso, mudou de figurino e já é outro!
Agora há os bares! - Muitos bares e uma estranha diversão noturna - onde os
cheiros que vêm lá de dentro, misturados com os perfumes da moda dos habitués
aos pestilentos odores da recolha do lixo, se tornam insuportáveis! Preferia
mil vezes os cheiros de então. Não havia muito asseio nas ruas. Mas era
tudo mais natural e bem mais tranquilo!...
Não se corria o risco de ser assaltado por dá cá aquela palha. Não havia liberdade de expressão.Mas isso era lá com os jornais... eu ainda não compreendia muito bem essas coisas. Só me apercebia da escravidão... e dos patrões que me davam umas valentes caneladas - atrás do balcão - sempre a sorrir para o cliente, como quem faz uma finta sem se mexer - se não desse uns toques subtis na balança e desviasse umas gramazitas no peso do cartucho de cada compra ao freguês e à freguesa. Não se roubava tanto como agora mas roubava-se alguma coisa. O pequeno comércio vivia para sobreviver! Não havia a violência e o descaramento de hoje. Confesso que já nem sei muito bem o que vale mais: se a miséria pacífica daquela altura ou se a liberdade de agora onde a pobreza anda à solta com o consumo da droga e a insegurança...Apesar de tudo, não queria voltar a conhecer o tempo do "botas"! - Sobretudo, já em adulto... Não é fácil deixar de me lembrar dos murros da PIDE!... Puta que os pariu!...
Não se corria o risco de ser assaltado por dá cá aquela palha. Não havia liberdade de expressão.Mas isso era lá com os jornais... eu ainda não compreendia muito bem essas coisas. Só me apercebia da escravidão... e dos patrões que me davam umas valentes caneladas - atrás do balcão - sempre a sorrir para o cliente, como quem faz uma finta sem se mexer - se não desse uns toques subtis na balança e desviasse umas gramazitas no peso do cartucho de cada compra ao freguês e à freguesa. Não se roubava tanto como agora mas roubava-se alguma coisa. O pequeno comércio vivia para sobreviver! Não havia a violência e o descaramento de hoje. Confesso que já nem sei muito bem o que vale mais: se a miséria pacífica daquela altura ou se a liberdade de agora onde a pobreza anda à solta com o consumo da droga e a insegurança...Apesar de tudo, não queria voltar a conhecer o tempo do "botas"! - Sobretudo, já em adulto... Não é fácil deixar de me lembrar dos murros da PIDE!... Puta que os pariu!...
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