Fundeado junto a uma praia da região de Bococo, a sul da Ilha de Bioko - Guiné Equatorial - 26 de Novembro de 1975 - Era já noite e não pude acostar. Na manhã seguinte, descobriria, na mesma orla, algures para oeste, um pequeno areal negro onde pude finalmente desembarcar. As horas magníficas que ali passei durante a manhã, naquela pequena enseda luxuriante - qual aspirante a Robinson Crusoe e depois a caminhada pela floresta que me levaria a uma finca de cacau, a forma amistosa como ali fui bem recebido a contrastar com o comportamento desumano das autoridades que, mesmo extremamente debilitado, nesse dia à noite, me levariam para os calabouços de uma esquadra, sob supeita de espionagem, tendo, no dia seguinte, sido conduzido algemado para a então mais temível cadeia de África - a tenebrosa Blach Becah - Os relatos, dessas vicissitudes por que passei, sob o mando de Macias Nguema, não ficam atrás dos dias de incerteza e de angustia vividos ao longo de intermináveis dias e noites na vastidão do Golfo da Guiné Equatorial, mas, para já, veja como foi a minha aproximação a terra, após tão longo e penoso calvário de tormentosos dias e noites de incerteza.
A manhã surgiu cinzenta e quase morta, sem a mais leve aragem a quebrar a sua triste monotonia. Por detrás do horizonte brumoso, a custo desponta, de quando em quando, o pálido disco solar. A nordeste, vejo ao longe contornos de terra, altas montanhas cobertas por um espesso manto de um verde escuro, cujas cumeadas ora se cobrem ora escondem sob densos nevoeiros ou claras neblinas, visão, aliás, reconfortante, porém, fisicamente, ao mesmo tempo, tão próxima como distante. Contornos de uma costa que toma o aspeto de um enorme triângulo, recortada por uma enorme baía. Mas não estou ainda bem certo se é o continente ou Bioko - a Ilha de Fernando Pó. As correntes mal se sentem mas arrastam-me ao longo dessa mancha, em vez me levarem na sua direção
Muito por culpa do comandante do pesqueiro americano, Hornet, que me tendo prometido, em S.Tomé, que me largaria a sul de Ano Bom, na influência da corrente equatorial que me arrastaria para o Brasil - rota que pretendia seguir - me trocou as voltas, quando fundeou a Norte e ao largo daquela ilha: ou fica a bordo ou canoa ao mar -
Optei pelo regresso a S.Tomé - E, navegar no Golfo, em plena época das chuvas e dos tornados, numa frágil canoa, era opção quase suicida, de vida ou de morte - Apesar de tudo, quis o destino que, mesmo tendo sido atingido por violenta tempestade, logo na primeira noite, que me causaria a perda de quase todos os apetrechos e víveres, fosse um homem de sorte.
À popa e ao longe e a sul ia ficando Ano Bom |
Optei pelo regresso a S.Tomé - E, navegar no Golfo, em plena época das chuvas e dos tornados, numa frágil canoa, era opção quase suicida, de vida ou de morte - Apesar de tudo, quis o destino que, mesmo tendo sido atingido por violenta tempestade, logo na primeira noite, que me causaria a perda de quase todos os apetrechos e víveres, fosse um homem de sorte.
(
Duário de Bordo - É manhã do 37º dia. Ainda me encontro no mar...Estou partido!...Tenho o estomago metido para dentro. Não tenho nada na barriga... Estou realmente bastante fraco!...Estou mais próximo de terra... mas os ventos não me têm ajudado.
Finalmente, ao
princípio da tarde, levantou-se algum vento. Estou a velejar mas com
extrema dificuldade, devido à ondulação, que é muito forte. O leme, que lhe
adaptei, soltou-se com uma vaga do primeiro tornado - e lá foram também os
remos. Por mais esforço que faça, com o remo improvisado, não há maneira de
embicar para terra. De volta e meia, a canoa atravessa-se à vaga. Mas lá
vou indo, lá vou navegando, com determinação e a graça de
Deus
Não me apetece abrir o meu baú (o caixote de plástico), pegar no gravador e
fazer o registo do meu diário. Estou apreensivo e confuso, não tenho vontade de
dizer nada. Calculo que seja uma da tarde. O relógio que trouxe deixou de
funcionar na primeira noite do naufrágio. Há horas que parecem infinitas... É
verdade... Mas nunca perdi a noção do tempo. Quando há sol é fácil calcular as
horas pela posição que descreve no arco do firmamento. Se o céu
está nublado, carregado de nuvens ou tempestuoso, é mais complicado. No
entanto, quem é que não sente o peso do tempo?!... Quem é que, nestas
circunstâncias, não conseguirá determinar a rotação do dia ou da noite, o
movimento das marés - que no alto mar também se notam! Vogando, com a
vida à flor do mar, errando perdido, sem destino!...
Oh, se pudesse ir
a nado!... Mas não posso. Sinto-me muito fraco, cheio de fome, mas não me
rendo. Estou confiante de alcançar anda hoje, terra firme, chão
seguro!.. A bússola dá-me a leitura de todos os quadrantes, porém,
não podendo dispor de meios para calcular a minha posição, fico sem
saber onde estou. No entanto, de uma coisa estou certo: a terra está ao
alcance dos meus olhos, estou muito próximo!... E tão longe de a poder
alcançar, eu já me encontrei!...
Deverão ser aí
três da tarde. O vento abrandou um bocado mas o mar continua muito ondulado e
as minhas forças são fracas. Estou exausto, terrivelmente cansado. As pernas
tremem-me e o ventre aperta-se-me com cruel dureza... Que suplício, meu
Deus!...Oh, mas não posso desistir, a costa está ali à minha frente e tenho que
a alcançar.
Aproxima-se o fim
de tarde - Já não há vento. O mar está calmo. Entrei numa zona, que é
nitidamente litoral, com várias manchas de correntes, que trazem à
superfície uma infinidade de detritos vegetais de terra. Desde cascas de cocos,
ervas, folhas de árvores, verdes ou já quase desfeitas, frutos secos e podres.
Já meti algumas folhas e frutos à boca para mitigar a fome. Também se veem
muitos grânulos de alcatrão e dejetos de aves. E, como não podia
deixar de ser - pois nunca deixaram de seguir a canoa , também afluem
peixes de várias espécies, que saltam, espinoteiam, aqui e além por entre os
despojos e nos contínuos remoinhos, ora sôfregos, ora talvez competindo ou
divertindo-se com tamanha abundância de alimentos.
Chamou-me atenção um coco, flutuando e a rebolar de um lado para o
outro. Dei umas remadas na sua direção. Qual não foi o meu espanto!...
Estava sem a amêndoa e com a casca meia partida mas com um peixe lá dentro. Em
redor, vários peixes graúdos, nadando em torno do coco, pareciam fazê-lo
saltar. Claro que aproveitei a presa, o pequeno peixito para o meter logo
inteirinho à boca. De seguida apanhei mais dois cocos inteiros. Um deles
descasquei-o imediatamente com o machim e aproveitei para saborear a suculenta
amêndoa. O outro guardei-o para mais tarde.
Pormenor curioso, a companhia de uma ave: deixou o bando e veio pousar na ponta
da proa da canoa, teimando acompanhar-me. Não me pareceu que estivesse
doente ou cansada. Teve sorte, achou-me inofensivo. Pois, se não tivesse
tão próximo de terra, já lhe teria pregado uma partida - Ainda bem, para ambas
as partes; é que, à falta de alimentos, lá tive - e com muita pena minha
-de sacrificar tão amorosas criaturas . Além de muito piolhosas, só têm penas,
pele e ossos.
Quando fiz a viagem de S. Tomé à Nigéria, de manhã, ao acordar, a borda da canoa parecia um autêntico pombal. Registei belas imagens: ao regressar a S.Tomé, deixei-as na redação de uma revista, esta entretanto extinguiu-se e perderam-se.
O sol brilha acima de algumas nuvens no horizonte. Não há sinais de mau tempo e o mar está calmo. Mas o esforço com o remo, deixa-me arrasado. Queria libertar-me destas pequenas correntes, que parecem leitos de rios e me arrastam nos mais desencontrados sentidos, estou a ver que não consigo. Era bom que se levantasse um pouco de vento para velejar. A distância parece-me curta mas só com ajuda do remo, receio que não possa chegar lá ainda hoje.
Mais umas remadas, ó Jorge!...Vá lá!.. Tens a terra, ali a quatro ou cinco centenas de metros!... Dobra-te sobre o remo!.. Aperta o cinto e não desistas!... De modo algum, vou desistir... Se não desisti, até agora, como poderia desistir com os perfumes, balsâmicos, vindos da floresta, a revigorarem-me os pulmões e o meu coração?!...Tenho de lá chegar, antes que anoiteça!... Tenho de me embriagar com os aromas e as fragâncias da sua luxuriante verdura!...Vamos!...Coragem!
E lá vou remando, esforçando-me o mais que posso, dando tudo por tudo. Só Deus sabe com que inaudito esforço. Ora tombaleando a bombordo, ora a estibordo. Encurtando, pouco a pouco, a distância que me separa do recorte da íngreme encosta verdejante, que se eleva aos meus olhos. O arvoredo já não é propriamente um emaranhado denso e uniforme, de um verde escuro. Por entre a brenha densa do espesso manto arbóreo, que se ergue desde a orla até perder-se nas névoas de uma elevada montanha, notam-se, de onde em onde, vários matizes coloridos, que vão do amarelo ao vermelho, a contrastar a uniformidade verdejante. Ouço perfeitamente o marulho da rebentação espumosa. Mas ainda não consegui divisar um palmo de areia.
Entretanto, o sol vai descaindo no ocaso, vai pousando sobre o
horizonte, como que despedindo-se de mim através de um rasto luminoso, que se
estende à superficie das águas e parece querer envolver-me por um brilho
nostálgico, místico, algo tranquilizador e sobrenatural. Será este o
prémio do meu esforço, da minha vitória sobre tantas e tão enormes
adversidades?!... Sim, creio que posso alimentar essa consoladora
esperança. O chão firme, já não é um desejo ardente mas uma certeza que
se me abre de forma tão esplendorosa!... Não sei que lugar é este que
tenho à minha frente; não faço a menor ideia como vou ser recebido, que riscos
ainda me aguardam. Até porque já me apercebi que a costa é abrupta e não vou
poder acostar. O crepúsculo, nestes mares, é muito rápido e a noite está já
quase a cair sobre mim.
Ainda não parei de
remar. Ando para aqui de um lado para o outro a tentar descobrir uma qualquer
língua de areia mas é tudo aprumo. A floresta é já uma mancha negra. Ainda
bem que o tempo está calmo, quando não era atirado de encontro às rochas. Na
viagem que fiz de S. Tomé à Ilha do Príncipe, ao pôr do sol,
encontrava-me junto a um promontório. rochoso e escarpado. - Impossibilitado
de me aproximar, lá tive que me escapar para o mar para não ser atingido
pelo tornado, que estava a formar-se àquela hora no horizonte. Com a
costa, ali a dois palmos!... Que noite mais horrível, meu Deus! Mar tumultuoso
e negra escuridão, que os relâmpagos iluminavam e me deixavam quase cego.Não há
palavras!...
Não tenho a certeza se a floresta é habitada. Pareceu-me ter visto alguns focos de luzes por entre o arvoredo. Mas deve ter sido ilusão minha. Embora, apenas já se distingue uma massa escura, - , sim, agora só se ouvem os sons da floresta, o piar da passarada e o vai e vem das águas, batendo e recuando não se sabe aonde, contudo, os perfumes inebriantes de toda esta atmosfera, rica e acolhedora que me envolve, a pujança e a sua beleza que se adivinha, misturados com a doce e quente marezia, transmitem-me uma serena paz, uma tranquilidade que há muito não sentia. Porém, com muita pena minha, tenho que ficar mais uma noite no mar. A costa é profunda. Tive que lançar várias vezes a âncora até encontrar a profundidade a que pudesse chegar a corda que amarra. Mas, por fim, lá descobri, junto a uma espécie de ilhéu, o sítio onde a âncora se prendeu. Tenho o estômago um bocado rijo, devido ao coco, às folhas e frutos, que andavam a boiar e que comi.Certamente que não vai ser fácil adormecer. Espero é que não surja mau tempo e possa retemperar um pouco as minhas forças.- Mas, antes de me deitar, ainda vou verter para o gravador o meu primeiro testemunho, junto a esta encosta paradisíaca.
É já
noite do 27º dia! Estou à beira de uma praia!... De uma floresta
virgem!...Floresta maravilhosa!... Tive imensas dificuldades!... Foi um bocado
exaustivo!...Para conseguir...utilizei todas as minhas forças!... Já não tinha
água!...Não tinha nada!...Depois encontrei alguns cocos... próximo aqui da
praia!... Com os quais mitiguei a fome!... Estou muito fraco! Mas ao
mesmo tempo reanimado! porque estou próximo...Tenho aqui a canoa
fundeada!....esperando o dia da amanhã!...Não sei, efetivamente, que terra é
esta!... Mas é terra!... Uma terra que me parece fértl, rica e
maravilhosa!
"Mãe: Venho de longe e cansado
(...) Que me resta da fluata que
inventei?" - Fernando Grade
(...)"É noite, mãe: aguardo, olhos fechados,
que uma qualquer manhã me ressuscite!... António Salvado, in
"Difícil Passagem"
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