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segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Escura é a noite, escuros os caminhos dos mares e dos céus que se me abrem em todas as direções....E também escuros serão certamente os caminhos que me conduzirão a Deus... “O tormento no meu coração me dá alegria; que a esperança enganosa fique longe de mim”







Si dolce è’l tormento

Versos de Claudio Monteverdi

Si dolce è’l tormento
Ch’in seno mi sta,
Ch’io vivo contento
Per cruda beltà.
Nel ciel di bellezza
S’accreschi fierezza
Et manchi pietà:
Che sempre qual scoglio
All’onda d’orgoglio
Mia fede sarà.

Excerto de Monteverdi - Si Dolce e'l Tormento | Magnificat




"Tão doce é o tormento que dentro de mim está.   que eu vivo contente por cruel beleza;   No Céu de beleza cresce a frieza  e falta piedade"
 






















Escura é a noite, escuros os  caminhos dos mares e dos céus
que se me abrem em todas as direcções....E também  escuros
serão certamente os caminhos que  me conduzirão a Deus...
 Vou indo à deriva, sereno e grave, sem precisar de ninguém
Pois, mesmo que precisasse, ninguém me estenderia a mão!
Atento e indiferente - Vestido com as vestes da nocturna solidão.
Absorto com a crua verdade transfigurada do  assombro!
As trevas adensam-se na atmosfera e, por tão habituais,
quase  já não me impressionam, não me comovem.
Fazem o seu percurso. Eu  vou no seu seio mas não sei bem qual é o meu...
Sim, as sombras estão por todo o lado e também invadem o meu coração!
- Vagueio sem destino  com a coragem e o medo que ainda não sei vencer.
Não recuo a nada....Porque, enquanto tiver algum medo é sinal de que vivo....
Vou indo com o soooar do mar! Com o mar que soa! Com o mar que brâaame!..
Vou indo, derivando com o mar que voa!... Com o mar a bramaar!

Sou o cavaleiro andante sonhando acordado!... Sonhando cavalgando
este vasto largo, neste imenso mar!... Sonhando e cavalgando o mar..
porque, ao sonho, não há limites nem barreiras
e a noite acompanha-me nos meus sonhos,
os astros estão ocultos, longínquos e escondidos,
o silêncio foi submerso pelo rugido do vento e do mar,
só a roupagens da noite, as tenho por  únicas companheiras!..


 















Mas, ó  piedade impiedosa dos céus!..
Nenhum sinal de vida! Ninguém...Vivalma!
Só as vagas.... e atrás das vagas, outras vagas ainda!
O vento soluça e geme. Perpassa-me pelos ouvidos
como um fino acorde - Estou envolto nele.
Sonâmbulo abandono o meu, estranha vida!...
Onde irei numa noite de breu assim?!.. A que distância
haverá um porto de abrigo?!... As nuvens correm
sobre a minha cabeça, galopam enroladas e escuras!..
Quase me esmagam e sufocam!.. Em que ponto
do mar ou do céu poderei pousar o meu olhar?!..

 










Bravio deserto! espectral cenário! - Estranha e cruel beleza!
Quem se compadece de mim?!... Tão prolongado já vai
o sofrimento, a angústia que me aplaca e não se esvai,
que, de tanto penar neste deserto varrido e sombrio
e, dos céus cerrados, vir somente a indiferença e a frieza,
sim, tamanha já  é a minha dor, a amargura intensa que não se me apaga,
que, esta contínua incerteza, este permanente amargo sofrer,
este   resignado sentimento que me fustiga e perturba,
se transforma, simultaneamente, não só em persistente dor
mas também num misto de sereno e doce contentamento!
Como se eu fosse - mesmo diluído e  errante como as sombras-
O Deus de mim próprio e das escuras névoas, o meu próprio Criador!

É o vento, são as vagas!
Há um marulho que tumultua, se levanta e uiva.
Soergo-me ajoelhado, tímido levanto o húmido oleado
com que cubro a piroga, envergando ainda a capa com que durmo, debruço-me sobre a  frágil borda,
espreito por uma nesga o que vai lá fora,
olho a noite de olhar turvo e arregalado
para descortinar o que vai ao largo....
É o fuzilar de relâmpagos e mais relâmpagos
a rasgar negridão. Fico preocupado…
Além dos sinistros raios a incendiar o mar, além de mim,
nada mais  ouço que o uivar do vento e, nos confins, agora o trovão!
Nada mais enxergo que manchas difusas!
Vultos disformes! …Vultos montanhosos!
E, atrás desses vultos, alterosos e escuros, outros maiores se enrolam!
Ameaças fugidias sobre a imensa e negra vastidão!....
Em vão perscruto o denso horizonte,
a ondulante massa que  meus olhos cega e turva...
Em vão, neste  longo tormento, nem a lua
nem as estrelas, dão sinais da sua existência.
Só farrapos de penumbra!... Espessas névoas
que pairam à superfície  lívida e líquida!
Novelos fantasmagóricos, baixos e fugidios
que se movem como se fossem navios fantasmas!..
Nenhum raio de luz vem do alto!.. E, no entanto,
as águas enrolam-se e refletem um brilho baço!
 Não há uma aberta, um  assomo de claridade!..
Por isso, sinto-me agora mais triste, sozinho e abandonado!
Imerso numa paz podre e angustiante, tendo por cenário,
um quadro que tem tanto de sombrio, como de horrível e belo!
Traz nas pastosas vagas que se revolvem e quebram ao meu lado,
ameaça iminente de mais umas longas e atribuladas horas de vigília! 
De sono perdido, enfrentando as sucessivas investidas!
Que nunca se sabe donde vêm e donde partem!
O que eu sei é que o ambiente do mar
e da noite se altera, as vagas encrespam-se!
Quando é de dia, vê-se donde vêm as ameaças!
Porém, quando à escura  noite, sobrevém o tornado
ou a tempestade, tudo é medonho!...- Não há palavras!..


 












Vento e vagas! negros estão os mares e os céus!
Dentro de mim, onde vogo, em redor ao largo e ao alto
reina a solidão e o peso da noite mais funda! - Estou só!
Angustiado, face ao abandono do mundo e de Deus.
Estômago a dar horas, encolhido e vazio como um fole!
Em vão aperto o cinto, martirizado por fome atroz!
Sequioso de água potável - Corroído e atormentado
pela sede  - No equador o sol é a pino! Agora que eu faço?!..
Água potável, só a das chuvas ou recurso à do salgado mar!
Oh, sim!..Dorido das chagas, as feridas da muita humidade,
das pústulas  que me cobrem as partes! Vogando enfim
por caminhos ínvios que eu não sei - Silente e prostrado,
taciturno no fundo  de mísero esquife que flutua- Deste caixão
vergastado vogando na solidão de escuras águas de espuma!
Solitário e silencioso, nem um murmúrio balbucio mas sofro.
E choro por vezes as lágrimas sofridas da minha cruel sorte.
Errando na confusa superfície, derivando à toa e sem norte!
Qual vida sem rumo ou névoa que se esbate, esvai desfaz ou apaga.
Qual moribundo! Qual Cristo que espia descido da cruz do calvário!

Não desesperado, não rendido mas já mais inseguro e menos calmo,
sem que alguém me responda, inquieto, pergunto ao meu coração:
- Serei apenas a onda fugidia que se ergue franjada e se desfaz?!..
O espectro diluído e esfumado, a alma  errante de outro mundo?!..
Afinal, o que serei eu à flor deste mar negro fugidio e encapelado?!...
Serei o homem só no vasto oceano revolto vogando perdido
à espera de cair  no tumultuoso negrume da  mais horrível tumba,
envolvido pelos dedos crespos do mais insondável poço ou abismo?!..

Ó negros e opacos céus, ó negros e corridos mares!...
- Longe já vão essas noites nas densas trevas envolto
pelo bafo  permanente da aragem viscosa da morte,
as vergastadas  ou os salpicos violentos da salgada espuma!
Todavia, quão perto os tenho ainda na minha memória!
Quão posso agradecer a Deus e aos Céus, a minha sorte!


(...) Devem ser  oito horas... É noite do 30º dia. Choveu, como previra, no fim de tarde. Por acaso apenas foram os reflexos de uma trovoada que deve ter ocorrido, lá para longe, lá para o sul... Mas as vagas estão demasiado fortes!... O que veio realmente dar um certo desequilíbrio à canoa.

Há formações de nuvens negras a norte, noroeste...Vejo que algumas estão realmente a deitar chuva.Noutras bandas....vê-se a escuridão. E, para o sul, não sei se ainda terão chuva....Espero...Só peço a Deus que a noite não seja chuvosa.....Porque é muito chato...

Não comi nada...Quer dizer, limitei-me a comer as barbatanas do tubarão que tenho aí. Tentei pescar mas não consegui absolutamente nada!... Hoje, digamos, é um jejum limitado a água.... Não pude arranjar mais nada, visto ter estado ocupado quase todo o dia com o remo improvisado para dar a direcção à canoa..." Excertos do meu diário de bordo  - registado para um pequeno gravador que preservei no interior de um antigo caixote do lixo  - O meu baú - imagem ao lado

A terminar ocorre lembrar-me de uns poemas de Henri Michaux  - Sim, houve noites e dias, em que cheguei a desejar o fim do meu calvário:

"Náusea ou é a Morte que se Aproxima"

Rende-te, coração.
Lutámos tempo de mais,
Que se acabe a minha vida,
Não fomos cobardes,
Fizemos o que pudemos.

Oh! Alma minha,
Ou ficas ou vais,
Tens de te decidir,
Não me apalpes assim os órgãos,
Ora com atenção, ora com desvario,
Ou vais ou ficas,
Tens que te decidir.

Eu, por mim, não posso mais.

Senhores da Morte
Nem vos aplaudi, nem blasfemei contra vós.
Tende piedade de mim, viajante de tantas viagens sem
bagagem,
Sem amo, sem riqueza, sem glória,
Sois de certeza poderosos e ainda por cima engraçados,
Tende piedade deste homem transtornado que antes de
saltar a barreira já vos grita o seu nome,

Apanhem-no no ar,
E, se for possível, que se adapte aos vossos
temperamentos e costumes,
Se vos aprouver ajudá-lo, ajudai-o, peço-vos.
Henri Michaux - In Equador

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