Jorge Trabulo Marques - Jornalista e
investigador
Albertino Bragança - Jornal Téla Nón |
QUEM SOMOS NÓS?”- Pergunta o escritor
Albertino Bragança, num interessante artigo de opinião, publicado no Jornal
Téla Nón – Pois, antes de tomarmos a liberdade de transcrever alguns ecertos, aqui
oferecemos ao leitor, um caso exemplar de quem tem enfrentado as voltas e adversidades da vida,
de forma laboriosa e bem sucedida, cioso do seu passado
O santomense, Manuel Vera Cruz, mais conhecido por Manuel
Torneador, é, de facto, um fantástico
exemplo de espírito inventivo, criador e laborioso, mas também de generosidade
e de simplicidade: torneiro de profissão
mas também o administrador da sua oficina, autêntica escola de artes e de ofícios,
que, desde há vários anos, têm proporcionado,
não só gerando empregos locais, como, também,
permitindo a aprendizagem a muitos dos
seus conterrâneos, os quais, graças à excelente experiência, ali adquirida, puderam
encontrar
trabalho, muito apreciado e reconhecido, nos vários países por onde emigraram
se estabeleceram ou empregaram.
Tive o prazer de conhecer a sua oficina, em Maio passado e de
com ele trocar um amistoso e franco diálogo, na companhia do cineasta Pedro
Paiva, e até de recordarmos experiências, as minhas, de navegador solitário nos mares e, as
dele, nas andanças da sua vida, tendo ficado encantado com as suas revelações: sem
dúvida, de um admirável artífice e inventor!
De um genuíno santomense, humilde mas que bem pode orgulhar-se da sua
identidade, que, cedo
despertou para o gosto das artes: em
criança, com os pedaços de madeira e de
troncos das árvores, com os quais aprendeu a construir os seus brinquedos, e,
até com os filmes que pôde ver, que, segundo me confessou, lhe despertaram a
imaginação e o gosto inventivo e curioso: desde objetos voadores ao próprio elevador da sua oficina,
Quem procure os seus ofícios, na cidade de S. Tomé, seja para
resolver problemas de motos, de automóveis ou de outras viaturas e qualquer outro
problema elétrico ou mecânico, saberá,
naturalmente, que, o Manuel Torneador, com os seus técnicos e - auxiliares que ali vão estagiar - encontrará, prontamente, a solução adequada
É
uma questão que toca sempre na alma de muitos são-tomenses. A perda dos valores
identitários, faz ecoar constantemente esta pergunta na mente dos cidadãos. Num
artigo sustentado por factos históricos devidamente comprovados, o escritor
Albertino Bragança, convida os são-tomenses a se redescobrirem, ou a se
encontrarem consigo mesmos. A estratificação social de São Tomé e Príncipe, no
fundo, o nascimento da nação são-tomense, domina a primeira parte do “Quem
somos nós”.
I PARTE
Após quarenta e quatro anos de independência nacional, S. Tomé e
Príncipe debate-se com alguns problemas estruturais de reconhecida gravidade,
que vêm retirando aos santomenses a possibilidade de uma vida à altura das suas
aspirações à data histórica de 12 de Julho de 1975.
Delinearam-se projectos, arquitectaram-se planos, proliferaram
os estudos de diagnóstico e os programas de governo, empenhou-se a classe
política na procura das soluções mais susceptíveis de evitar o fosso em que o
país se ia progressivamente afundando, sem que de tal esforço se tenha chegado
a resultados palpáveis.
Por tudo isso, uma pergunta se impõe: será que tal insucesso se
deve apenas à escassez de recursos com que o país tradicionalmente se confronta
ou existe algo mais a perturbar a via do desenvolvimento sustentado do nosso
país, que é, ao fim e ao cabo, o que todos almejamos?
Não será que, face aos condicionalismos atrás citados, se torna
premente abordar as questões de fundo que se colocam à nossa identidade
enquanto comunidade específica inserida no mundo, de modo a viabilizar o nosso
percurso colectivo pelos caminhos do futuro?
Albertino Bragança - Jornal Téla Nón |
Trata-se, pois, de partilhar convosco algumas ideias com que
convivo há algum tempo, embora vos coloque já de sobreaviso para o facto de
esta exposição não passar de particulares considerações sobre tema tão
aliciante e complexo.
Feito o alerta, tentemos responder à questão central que aqui
nos traz: Quem somos nós?
A resposta é imediata: somos santomenses, africanos, fruto de um
processo de caldeamento de culturas que se encontraram no contexto de um longo
processo de colonização que, tendo embora posto em confronto gentes e
civilizações provenientes da Europa e da África, uniu as vivências de senhores
e escravos e deu azo a um povo com características bem específicas.
A esse propósito, permitam-me uma longa mas necessária citação
do geógrafo, poeta, sociólogo e professor, Francisco José Tenreiro, o qual
considera que “a situação privilegiada da ilha, primeiro na rota da Índia e,
mais tarde, entreposto entre a costa ocidental de África e a América do Sul,
facilitou contactos de raças, de culturas e de produtos. Foi, na realidade,
desde o final do século XV, uma das grandes encruzilhadas do Mar-Oceano onde se
encontraram homens, negros e brancos, de diferentes proveniências e com estilos
de vida diferenciados, e se misturaram plantas do Mediterrâneo, de África, da
Ásia quente e chuvosa e da América do Sul”.
Diz ainda Francisco Tenreiro que “foi a ilha campo de ensaio de
culturas, no sentido mais amplo que a esta palavra se pode atribuir. Além de
portugueses da Metrópole, que traziam consigo as formas de um estilo de vida
desenvolvido no mundo mediterrâneo, também madeirenses, com a sua experiência
do fabrico do açúcar e de ocupação de terras virgens, e estrangeiros, como
Genoveses e Franceses, técnicos também do açúcar ou mercadores. Ali arribam
ainda, embora em contactos frustes, os Holandeses no decorrer do século XVII.
Da costa africana, elementos negros, introduzidos como escravos, e que, dada a
enorme latitude que o resgate teve para as populações de São Tomé, constituíam
os mais variados tipos raciais: Sudaneses e Guineenses primeiro, Bantos ou
Sul-Africanos mais tarde. …. Mais tarde ainda, na segunda metade do século
XVIII, também os contactos com as gentes do Brasil: brancos, negros e crioulos
que retornam ao golfo da Guiné ou para comerciar ou mesmo para se estabelecerem
no reino do Dahomé.” (1) Sem esquecer as 2.000 crianças judias que acompanharam
em 1493 o terceiro mandatário, Álvaro de Caminha, um número considerável das
quais soçobrou à rudeza da viagem.
Pela sua posição estratégica, São Tomé é ponto de passagem
obrigatória dos navios brasileiros, em especial da Baía, que traficavam na
Costa da Mina, já que, por determinação de el-rei, “daqui em diante não vai
nenhum a ella sem que primeiro tomem a ilha de Santo Tomé, assim na ida como na
vinda depois de terem negociado na mesma Costa, para que nela se averigue o que
levaram e o que trouxeram, e … se regulem por este exame os direitos que hão de
pagar”.(2)
Isto depois de parte da população de São Tomé a ter abandonado
ao tempo da decadência do açúcar e por sua vez se ter baldeado para o nordeste
brasileiro.
Somos igualmente descendentes dos escravos mulatos e negros
alforriados pelo foral de 1515 e seguintes e pelos escravos que foram sendo
sucessivamente libertos pelos seus senhores e pela administração, o último
grupo dos quais ocorreu em 8 de Novembro de 1875, na sequência das sucessivas
reivindicações reclamando a abolição imediata e efectiva da escravatura,
anteriormente já abolida por Decreto de 25 de Fevereiro de 1869.
Contrariando a forma dicotómica como as teses colonialistas
costumam abordar o processo de povoamento das ilhas, referindo-se ao confronto
Europeus livres/Negros escravos, a historiadora portuguesa Isabel Castro
Henriques, com base nos textos portugueses dos séculos XV e XVI, afirma que “
na fase inicial da colonização de São Tomé, que decorre grosso modo até ao
início do segundo quartel do século XVI, verifica-se a coexistência de uma
maioria de Europeus livres com uma fracção minoritária de Africanos livres, de
uma grande inteligência e ricos, mas nem por isso menos activos e participativos
no processo em curso”. (3)
Todos eles deram o seu contributo na formação do que somos hoje,
devendo dizer-se, como o faz o reputado historiador santomense Carlos Neves,
que “ dos povos transferidos, das culturas transportadas, das línguas postas em
convívio, originaram-se importantes sínteses, que deram lugar a um outro
povo”.(4)
Estamos, pois, perante uma sociedade profundamente heterogénea,
constituída por povos das mais diversas proveniências e origens e, por isso
marcada, desde as suas origens, por duas grandes características: a diversidade
e a conflitualidade, que fizeram sempre do arquipélago um verdadeiro caldeirão
de instabilidade política e social.
Do ponto de vista da diversidade, vejamos como se estruturavam
no século XVI, de forma vincadamente hierarquizada, os grupos sociais então
prevalecentes: primeiro, o pequeno núcleo dos europeus, compreendendo por volta
de 1% da população, que, chegados a S. Tomé a partir dos finais do séc. XV e
constituído, na sua maioria, por degradados mandados à força pela justiça,
ocupavam “ o nível hierárquico mais elevado do poder civil, eclesiástico e
militar, o que lhes conferia o controlo do aparelho político e administrativo
e, consequentemente, do sistema económico. De referir que, a maior parte das vezes,
era a capacidade económica que permitia a ascensão a cargos importantes,
principalmente na estrutura militar ou no senado da câmara”.(5)
Em seguida, a elite dos moradores livres da cidade, os moladôs
poçon, ou filhos da terra constituída pelos mestiços, de grande poder económico
e sempre em disputa pelo poder político, sobretudo na nomeação para juízes da
Câmara (como aconteceu, por exemplo, em 1553, aquando do movimento de Yanus
Gato, mais conhecido por Yon Gato), cuja importância social atingiria no século
XVIII hegemonia quase plena, e pelos funcionários e proprietários negros, uma
parte dos quais também senhores de terras e de escravos.
Nas ilhas viviam também os negros forros, escravos libertos, que
odiando o trabalho agrícola que foi sempre o seu e em condições absolutamente
degradantes e de exploração, debandam para a cidade, em busca de um emprego que
não existe.
Apesar da apreciação negativa dos europeus a respeito dos
elementos desse grupo social, a quem chamavam daninhos e preguiçosos, eles trabalhavam
no porto, cuidavam dos escravos em trânsito ou iam negociar ao outro lado da
costa, entregavam-se ao comércio de ocasião ou procuravam desesperadamente uma
vaga no pequeno funcionalismo público…
O arquipélago é ainda espaço de residência dos escravos
domésticos, que constituíam a grande maioria da população. Na prática, todas as
famílias de moradores os possuíam, pois, para além do trabalho gratuito que
proporcionavam, eram testemunhos de poder e alvo da exploração e ostentação
mais descarada por parte dos seus donos. Recorde-se, a esse respeito, que
algumas senhoras dos moradores (mestiças e negras) se deslocavam às compras em
carrinhos de mão carregados por escravas, seguidos por um cortejo de trinta ou
mais destas… Excerto de “https://www.telanon.info/cultura/2019/09/27/30043/quem-somos-nos/
Albertino Bragança
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