Algures no Golfo da Guiné, 20 de Novembro de 1975 Há 44 anos - Na noite de 19 para o dia 20 observei um eclipse total da Lua
Diário de Bordo 1- Hoje
é manhã do 31ª dia. Passei uma noite incómoda. Não consegui conciliar o sono.
Fiquei praticamente sempre acordado. O mar muito cavado, fortemente cavado!
Devido possivelmente a trovoadas vindas do sul ou de outras bandas...Próximo da
canoa apenas choveu ao fim da tarde de ontem... A noite pôs-se normal, até com
aberturas de luar muito bonitas!... Eu é que não consegui dormir em toda a
noite. A pensar na minha vida... Até agora tenho pensado no mar, nas
dificuldades a vencer no mar...mas esta noite estive a pensar em
terra.... Porque, efetivamente, eu tenho de ter um destino...certo... Comecei a
pensar o que é que eu irei fazer agora... Portanto, esta noite os meus
pensamentos ocuparam-se no que vai a ser a minha vida em terra.
Diário de Bordo 1 (continuação) Esta manhã aparece com o mar relativamente cavado, com uma certa carneirada. O céu nublado. Não totalmente mas com nuvens escuras que ameaçam chuva. ..Um pormenor curioso a que eu não fiz referência: na noite de ontem, eu tive oportunidade de observar um eclipse total da lua.A noite em que observei um eclipse total da Lua - Calculo que por volta da meia-noite - - O céu e o mar ficaram mais negros que nem na mais negra noite de tempestade - Não se enxergava um palmo à frente do meus olhos - Nem sequer os contornos da piroga - Durante quase hora e meia foi como se o mundo não existisse. O mar e o céu pareciam unidos nas mesmas sombras e pela mesma escuríssima cortina - Senti uma profunda solidão! - Tanto mais que havia mais nuvens que abertas, que por sua vez iam também eclipsando as estrelas e tornando-as ainda mais longínquas - Além de que o mar permaneceu toda a noite muito cavado. Mas não poderei dizer que fosse uma noite muito anormal - Pior teria sido se chovesse. Direi que a observação daquele Eclipse lunar foi apenas um episódio em mais uma longa noite de vigília e de reflexões na minha vida.
Referem
registos que “O eclipse lunar de 18 de novembro de 1975 foi um eclipse total,[1] o segundo e último
de dois eclipses lunares do ano. Teve magnitude penumbral de 2,1352 e umbral de
1,0642. Teve duração total de 40 minutos.[2]
Um eclipse total
raso viu a Lua em relativa escuridão por 40 minutos e 12 segundos. A Lua tinha
6% de seu diâmetro na sombra umbral da Terra, e possivelmente adquiriu uma
tonalidade vermelha-alaranjada brilhante, mais escuro ao sul e visivelmente
mais brilhante ao norte, que estava mais próxima da borda umbral. O eclipse
parcial durou 3 horas e 29 minutos no total. https://pt.wikipedia.org/wiki/Eclipse_lunar_de_18_de_novembro_de_1975
A ideia de que, dentro de
pouco tempo, hei-de alcançar chão firme, já não é bem uma interrogação; a
partir de agora é quase uma certeza. Talvez pelo facto de, quando em quando, se
me depararem, aos meus olhos, no horizonte difuso, os seus contornos.
Claro que a vida a bordo não melhorou de maneira alguma. . Porém, o meu
cérebro, que até agora tem vivido numa constante preocupação com as
dificuldades da minha sobrevivência no mar, estranhamente, passou a
ocupar-se mais no que será a minha vida quando chegar a terra. Havia-me
esquecido de pensar em tais questões. Sinto-me mais na pele de um
vagabundo de que um náufrago e preocupa-me o meu futuro.
De facto, tenho concluído
que esta vida errante, não é nada boa.Terei que viver uma vida mais tranquila e
menos sobressaltada. Mas como?!...O que é que eu irei fazer quando chegar a
terra?!..Como irei ser recebido e que será depois a minha vida?!...
Não tenho meios de comunicar com ninguém. Disponho apenas da orientação de duas bússolas: uma que trago no pulso, como se fosse o meu relógio, outra fixada junto à ponte da proa. Se morrer afogado no mar eu tenho a certeza que ninguém vai saber o que me aconteceu ou chorar nesse momento a minha falta. Mesmo a família, da qual tenho estado bastante ausente.
A minha mãe faleceu, dois anos depois de eu ter chegado a São Tomé . Sei que o meu pai, os meus dois irmãos e a minha irmã me não esquecem. Mas a vida deles e de todos os meu familiares, é como se fizesse parte de outro mundo...Quem é que poderá imaginar onde eu agora estou e a fome que me tortura e a solidão em que me encontro?
Amo a natureza e vejo no mar a mais íntima forma da sua aproximação. Cada vez mais me sinto atraído pelo seu misterioso canto. O isolamento é uma forma de o encontrar, de mergulhar na sua indescritível magia. Sim, fisicamente, sou para aqui um farrapo humano. Uma criatura desprezível, as forças vão-me faltando. Sem nada com que matar a fome. No entanto, talvez por isso mesmo, mais purificado, mais sensível e fortalecido espiritualmente. Sim, porque o mar não é só esta imensa vastidão. O mar é vida. Umas vezes meigo, suave, dócil, belo e acariciador; outras vezes, cruel, impiedoso, impaciente e infernal
Agora, nesta manhã acinzentada, não será bom nem mau, nem triste nem alegre: ondula, freme, move-se numa turbulência que nem me agrada nem me desagrada. Não me encanta nem desencanta.. É realmente terrível o seu poder. Não é egocêntrico. Não vive apenas para dentro dele. Transmite e afeta todo o meu estado de alma. É pena vê-lo agora encrespado, tão sisudo e não tão comunicativo como costuma ser. Mesmo assim, faz-me sentir próximo dele. Embora, com outras palavras, é o que vou já transmitir para o meu gravador - O fiel registo dos meus sentimentos, que guardo como se fosse o cálice de um sacrário no meu baú de plástico, um velho contendor do lixo, que o meu amigo Germano Castela, fez o favor de me dispensar.
Diário de Bordo Devo estar
mais próximo do continente africano. Já parece impossível, não é ?!...Depois de
tantos dias de ter largado e não ter atingido a costa africana!... Claro
que as trovoadas têm-me feito andar para aqui às aranhas de um lado para
o outro!.... Vou pôr a vela, já. A ver se atinjo, hoje, finalmente,
terra!
Quando o mar
está calmo a canoa não tem tanta velocidade. É natural que a noite passada
tenha andado bastante.... devido à força que as vagas lhe imprimiram.
Diário de Bordo 2- É quase meio-dia e ainda não consegui
navegar nada! Já por três vezes tentei pôr a vela.... e não há vento!.. Quer
dizer, aqui, quando há trovoadas há vento demais e é impossível navegar!
Quando não há trovoadas, há calmarias e o mar é um lago!... Agora o mar não dá
qualquer hipótese, visto não haver força de vento suficiente para impulsionar a
vela. É irritante!...Sinceramente!... Esfomeado que estou!...
Encontro-me
para aqui próximo, muito próximo!... A canoa a meter água cada vez mais!....
Isso preocupa-me um bocado. A fraqueza a invadir-me o corpo...Não tenho anzóis
que deem para pescar os peixes que aqui há. Os anzóis que disponho são para
peixes muito grandes e o nylon é fraco. A situação não é desanimadora mas
também não é muito agradável. Tenho que ter calma. Muita calma! Mas,
sinceramente... Tudo tem limites...
Diário de Bordo 3 Agora,
neste preciso momento, talvez quatro horas da tarde, apareceu um enorme! um
gigantesco tubarão! Mesmo gigantesco!! Estava deitado no fundo da canoa.... e
senti roçar!... Depois vi logo que era um tubarão! Pois investiu várias vezes
contra a canoa!... À proa! À popa! Até que eu agarrei no machim e
consegui dar-lhe umas machinadas na cabeça! E então fugiu!...Não sei onde
é que ele agora se encontra! Mas, efetivamente, é um monstro!!.. Uma coisa
pavorosa!... Um monstro autêntico!... A acompanhá-lo havia uma série de
peixinhos!...
Diário de Bordo 4- Acabei
agora de pescar um peixe à mão!...Andava aqui... Consegui!...O gajo,
mesmo cortado, estava a escapar-se! Era o que faltava!... Claro que estou a
comê-lo cru!... Sabe-me perfeitamente bem!...
Diário de Bordo 5 - Estou
satisfeito!...Já comi o peixe cru e soube-me bem!...Estou a ver
perfeitamente contornos da costa africana, que ainda é um bocado
distante....
Finalmente
consegui pôr a vela e parece que há um ventozinho que me vai tocar para
lá...Veremos quando...
Diário de Bordo 6 Esta é uma melodia (melodia africana) que eu gosto
imenso!...Aqui no mar sabe tão bem!... Realmente, há trechos musicais que,
nestas circunstâncias, são mesmo muito apreciados...
.
Diário de Bordo 7 É
pura e simplesmente irritante!... Não há vento absolutamente nenhum!... Quer
dizer, não posso velejar e tenho a costa, tão próxima! ...É realmente muito
aborrecido!
Diário de Bordo 8.
Já se pôs o sol do 31º dia. O dia esteve praticamente de calmaria!... Ligeiras
brisas... que não deram para navegar...
Voltei apanhar uma ave. Pousaram duas: uma à proa e
outra à popa. A outra fugiu!... Tenho-a aqui para a comer amanhã....
A costa africana. sei que não fica distante... É
natural que esta noite tudo se modifique... Há uma formação de nuvens muito
escuras a sueste, que devem trazer chuva, com certeza...Portanto, é isto apenas
que tenho agora a dizer.. E que amanhã outras novidades melhores possam surgi
Estive
quase 13 anos em São Tomé. Tudo quanto ganhei foi gasto nos meus caprichos
aventureiros. Não trago um centavo comigo. De resto, eu já estou habituado a
uma certa forma de vida incerta e cheia de dificuldades e vicissitudes. Parti
para São Tomé, com a idade de 18 anos.
A
princípio fui para ali trabalhar numa roça mas comecei por não me
adaptar, lá muito bem. O administrador da roça queria que eu tratasse os
trabalhadores negros
por tu. Dizia ele que era "a maneira de guardarem respeito ao branco" e
de eles trabalharem". Evidentemente que não me adaptei... E o dinheiro
que me pagavam ao fim do mês, comparado com as promessas que me
fizeram, depois de feitos os descontos para alimentação e pagamento da
viagem, não me ficava quase nada. Claro
que não fui para São Tomé com o objetivo de fazer fortuna, mas esperava
que ao menos me atribuíssem uma compensação humanamente digna. E então
os pobres trabalhadores ?!... Autênticos escravos!..
Por
força dessa minha inadaptação, o meu passa-tempo predileto, era então o
mar...Praticamente, desde que ali desembarquei, vi nele uma espécie de
refúgio. Qualquer coisa onde me sentia livre de todos os aborrecimentos.
Um horizonte sempre aberto e imenso, que me abria as portas a uma
incontível ânsia de ir mais além na procura de uma felicidade
imaginária que naquele meio ambiente eu não encontrava.
Por
isso, sempre que podia, frequentava as belas praias de São Tomé.
Comecei por manter estreitos contactos com os pescadores, homens
corajosos e simpáticos. Aprendi
a equilibrar-me nas suas canoas, começando primeiro por dar pequenos
passeios de praia em praia., até que por fim veio a paixão -
E, a par disso, também outras interrogações: perguntava-lhes se já
tinham ido de canoa à Ilha do Príncipe, respondiam-me que "só canoa de
gente de feitiço" é que o tornado a levava ao Príncipe ou ao Gabão;
"outra, vem gandú (tubarão), vira a canoa e come-lhe a perna" . Achava
que era uma superstição, sem fundamento e havia que desfazer esse
fantasma: concluía que, se o tornado arrastava para lá a canoa,
involuntariamente, também lá se podia ir por vontade própria. Face a
essas lucubrações, comecei a pensar que, um dia, eu devia fazer-lhe essa
demonstração - A par disso, questionava-me também sobre o seu passado
longínquo: se não teria sido através das canoas que os seus ancestrais
não teriam vindo do continente africano.
Foi,
pois, graças a esses contactos com os pescadores santomenses, quando
trabalhei na Roça Ribeira Peixe, que iniciei a minha aprendizagem
sobre a técnica da arte de navegar nas suas frágeis pirogas e que o
espírito de aventura marítimo, se me foi desenvolvendo. E, alguns anos
depois, simultaneamente, o desafio da escalada ao Pico Cão Grande, que
ali se ergue, numa zona onde existem várias aldeias dos hábeis
pescadores "angolares".- Na verdade, não é pois a riqueza material que
mais me interessa. Mas também não é o desejo de me tornar famoso, a
razão pela qual tenho arriscado a vida. Sim, porque, excetuando esta
última viagem marítima, tenho partido clandestinamente, sem dar
conhecimento para onde vou e o que vou fazer. Sem o apoio, aprovação ou
a reprovação de quem quer que seja.
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