Algures no Golfo da Guiné, há 44 anos - 10 de Novembro de 1975
Algumas das observações, que registei para
o pequeno gravador, que preservei no interior de um ex-contentor do lixo, poderão parecer que se
repetem. Não com as mesmas palavras, mas com as mesmas dúvidas e interrogações
– Sim, a vida de um náufrago, é isso mesmo: o seu mundo está confinado à sua
tábua de salvação e o mar é o palco de todas as suas horas e momentos – É à
tona dele e ao Deus-dará que a sua vida vai somando todas as suas incertezas,
esperanças ou desilusões.
Diário de Bordo 1 - Já amanheceu! É o 21º dia que viajo na canoa São Tomé (Yon Gato). Está
uma manhã escura! Nuvens espessas, cinzentas, ameaçam chuva!...O mar tem uma
cor cinzenta.
Os tubarões continuam a escoltar-me aqui às dezenas! Dá-me a impressão que até são os mesmos: o martelo e o azul. Andam aqui às voltas da canoa de um lado para o outro.
De noite deixei
de ver a Ilha de Fernando Pó, pois fiquei completamente na escuridão, mas agora
volto novamente a vê-la. Dá-me a impressão que andei bastante!...Portanto, já
não deve faltar muito para atingir a terra. Vou fazer tudo por tudo por lá
chegar hoje.... Estou saturado disto. O tempo é muito mau nesta região. Só
trovoadas! Só trovoadas! Pequenos períodos de bom tempo, mas depois
trovoadas!...É saturante!...
TEMPESTADES TROPICAIS OU
SÚBITAS CALMARIAS – É ASSIM O ALTO MAR DO “GRANDÍSSIMO” GOLFO DA GUINÉ
Diário de
Bordo 2 – Devem ser
aí umas nove e tal da manhã. A manhã surgiu brusca, nevoenta, o que fazia
prever a iminência de uma trovoada. E finalmente surgiu! Acompanhada de forte
ribombar do trovão e relâmpagos!... Esta trovoada retardou a minha chegada para
a costa de África, puxou-me para sul. Mas já estou a dirigir-me novamente para
norte, devido à ação contrária das correntes.
Diário de Bordo 3 – Pois
...estou porreiro, estou bem disposto!... Hoje de manhã fiquei chateado com
aquela chuvada que apanhei em cheio!... O trovão ainda continua a ouvir-se, mas
lá muito ao longe, muito afastado de mim!...
Os meus amigos tubarõeszitos, azul e
martelo, continuam aqui a fazer-me escolta. Dá-me a impressão que são
meus amigos. Aliás, estou convencido de que, enquanto estiverem estes aqui, não
vem cá os outros, os vorazes! que costumam dar aqui umas rabanadas!...Ainda bem
que assim é!...
Pois cá estou a dirigir-me a toda a brida!
Não sei para que sítio mas sinto que a canoa está a andar! É o que interessa
fundamentalmente.
Já tomei qualquer coisa esta manhã: fiz
umas farinhazitas e tomei um nescafé com água das chuvas, que também misturei
com um bocadinho de água do mar. Estou bem disposto neste momento.
SIM, HOUVE MOMENTOS DE
MUITA ANGÚSTIA E ABATIMENTO, EM QUE ERAM MAIS AS DÚVIDAS QUE AS
CERTEZAS... ERA SOBRE-HUMANO NÃO VACILAR...
Diário de Bordo 4 – Eu,
neste momento?!... Não sei...Sinto qualquer coisa!... Tanto me dá vontade
de rir!...como de chorar!... Não sei...Afinal de contas, o que é que eu
sou?!... Ando para aqui a fazer o quê?!... Vinte e um dias passados!.... Não
sei o que sinto já!... Porquê?!... Oh meu Deus! Não é medo, não é nada!... O
quê?!...Não!... Ninguém pode vir aqui!!!.... Ninguém pode mexer-me na
canoa!!... Aqui, quem manda sou eu!!...Ninguém pode violar-me isto!... Afinal
eu sou gente, eu sou gente, eu sou gente ou sou o quê?!...
Diário de Bordo 5 – Ao
fim de 21 dias passados, miro-me ao espelho. Vejo que a minha figura é
diferente: barca crescida, rosto queimado, olhos encovados, cabelo em desalinho...
Figura triste!... Louvado seja Deus!... Eu sou?!... Nem sei o que sou já...
Talvez bicho do mato!...
MAS O MAR É MESMO
ASSIM... AS SUAS MÚLTIPLAS FACES SÃO INDISSOCIÁVEIS DE QUEM VOGA À FLOR DAS
SUAS ÁGUAS OU O MESMO O CONTEMPLA, COM OS PÉS FIRMES NA BERMA DE UMA PRAIA.
Diário de Bordo 6 – Serão
aí umas quatro da tarde. A tarde pôs-se boa. Velejei um bocado, mas
sinto-me cansado!...Acabei por desistir, porque, entretanto, começou a
escassear o vento, o mar a ficar encrespado, e, com o remo improvisado, não
consegui fazer melhor. Deixo o resto ao cuidado das correntes, que também me
têm ajudado imenso; outras vezes, claro, contrariam, conforme as
trovoadas...Enfim, vamos ver como é que se porta o resto da tarde e a noite,
pois, hoje, já não devo lá chegar, com certeza.
BIOKO (EX-FERNANDO PÓ) A
ILHA QUE QUERIA EVITAR MAS ONDE MAIS TARDE, ACABARIA POR IR PARAR
Continuo a ver perfeitamente a Ilha de
Fernando Pó. Aliás, só com a vela e mesmo sem o efeito do remo, acabava por ir diretamente
para lá... Não estou interessado. Prefiro a costa de África, a Nigéria....Mas,
para mim, a costa de África, ainda continua a ser um mistério porque eu não sei
onde vou parar!... Posso chegar lá de noite, e isso pode constituir perigo...
Portanto, tenho que ir com o máximo de cuidado, com o máximo de vigilância para
evitar que a canoa vá contra qualquer coisa... Não sei... mas daqui lá, ainda é
capaz de faltar um bocado...Não se vislumbra... É curioso!... Não se vislumbra
nada ainda no horizonte... É uma costa baixa..
OS PEIXES, ESSES MEUS
COMPANHEIROS DE TODAS AS HORAS.
Sinceramente, já tenho pena de ter ferido
aqueles tubarões azuis e martelos...Parecem-me simpáticos!....
Diário de Bordo 7 – Fim
de tarde do 21ª dia. Há bocadito disse que sentia pena de ter maltratado os
tubarões martelo e azul. Realmente, tenho pena porque eles parecem
inofensivos!... Alguns têm uma cabeça muito esquisita, mas têm uma cor muito
bonita, e, de vez em quando, deitam um olhar, assim cá para cima, para a minha
pessoa, parece com boas intenções...Dá-me a impressão que são inofensivos...
Pelo menos estão-me a proteger daqueles vorazes, que são os castanhos, os
escuros!... Esses, cada vez se aproximam da canoa, dão logo aqui umas
rabanadas!... É curioso!... Realmente, mesmo na classe dos tubarões, nem todos
são maus!... É um pormenor que registo com muita curiosidade... Tenho-os
marcado a quase todos com o machim! E tenho pena porque eles acompanham a
canoa... Quando deixo de velejar, dão uns saltos, umas piruetas, aqui
próximo!... A princípio, a companhia deles meteu-me um certo medo, mas dá-me a
impressão que não são maus!....
O mar apresenta-se de uma cor azul
clarinha. O céu tem onde em onde umas nuvens...Mas tem bom aspecto. É um
fim de tarde agradável!... Estou a ouvir rádio, a escutar música portuguesa da
Emissora Nacional de Lisboa....Enfim, uma vezes estou chateado.... agora estou
mais bem disposto... Vamos lá a ver como a noite se vai portar...
É O MAR! É O MAR! E TAMBÉM ASSIM O MAR DA NOITE!... ONDE
POR VEZES TUDO É LÚGUBRE E SE CONFUNDE NUM ÚNICO MANTO DE ABANDONO E SOLIDÃO ....MAS
TAMBÉM HÁ NOITES DE LUAR ADMIRÁVEIS, QUE ESPELHAM O QUE DE MAIS BELO E SAGRADO,
DEUS OFERECE AO SER HUMANO
.
Diário de Bordo 8 – É
noite. O mar está bastante cavado, com uma ondulação, pelo menos regular. Corre
uma apreciável brisa mas não me atrevo sequer a pôr a vela... Neste momento,
estou nitidamente na corrente. Sinto que ela está impulsionando a canoa... Por
este andamento, estou convencido que manhã é que devo realmente chegar à costa
de África...Nesta altura, não vejo ainda qualquer vestígio que me indique...
Estou a fazer estas deduções em relação à a Fernando Pó, porque
esta ilha fica muito próxima da costa africana, designadamente, quer da
Nigéria, a Norte, quer dos Camarões a Leste.
O céu está com algumas nuvens escuras em certas partes
do horizonte; outras, estão descobertas. Mas corre uma boa brisa, é natural que
chova, lá para muito tarde... Faz-me uma companhia, aqui ao meu lado, uma ave,
que, aliás, já é habitual.
Diário de Bordo 9 – Já
jantei. Fiz umas papas e estou muito bem disposto.... Está luar!...Portanto,
daqui a pouco vou cobrir a canoa com um pequeno oleado e deitar-me. Mas vou
ficar atento, pois é perigoso, eu estar próximo da terra, a canoa bater num
rochedo ou mesmo virar-se numa praia. Além disso, há os barcos que podem
passar...
Confio na resistência da canoa. Ela continua a meter
água; não mete tanta, como a princípio, antes de lhe arrancar a carlinga, pois
os pregos tinham atingido o fundo.. Mas continua a meter alguma... Espero
que não parta e possa aguentar.
Sinceramente, estou bem-disposto e adaptado a esta
solidão... Existe aqui uma ilha, algures, que agora não vejo. Parece que é uma
coisa que não tem vida. Parece que a vida, para mim, só existe aqui na canoa...
São os peixes que me acompanham, são as aves que eu vejo e o céu estrelado, e o
luar... Enfim, este mar e céu que é a minha vida...
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