20ª Dia Estou envolvido por enorme cardume! Que me
está a arrastar!(...) Louvado sejais meu Deus!...Será Deus que me mandou este
cardume para me salvar?!... Porque, hoje, já fui retardado por aquele
tornado de manhã!...Fui muito empurrado para Sul!
Algures no Golfo da Guiné, 9 de Novembro de 1975
O contentor onde pude guardar o gravador e máq. fotog |
Diário de Bordo –
1 É manhã do 20º dia. Já
estou mais a Norte da Ilha de Fernando Pó, agora completamente descoberta.
Portanto, estou aproximar-me da costa de África, mas ainda tenho um
bocado a percorrer. O céu, a leste, apresenta-se bastante encoberto, e, do lado
oeste, tem algumas nuvens, o que tudo indica que vai haver chuva. Pelo menos à
noite. – Estas as minhas
primeiras palavras, vertidas, de forma pausada e denotando um certo abatimento,
para o meu diário de bordo, registadas num pequeno gravador, guardado da
fúria das ondas, no meu baú, um ex-contentor do lixo
Diário de Bordo – 1 Esta noite apanhei uma ave que tinha
pousado sobre mim. Tenho-a aqui para a depenar daqui a bocadito... - (Confesso que
era o que mais me custava: sacrificar as avezinhas que me serviam de companhia
- Além disso, eram só ossos. Mas a necessidade, assim me obrigava).
Como não chove, só estou a consumir água do mar!... Não sei a que distância me encontro de Fernando Pó. Sei que estou muito próximo (quem está perdido no mar, o que parece perto, nem sempre é o que parece). mas não me interessa ir para lá, de maneira nenhuma!... (e tinha razões para não aportar lá) Como tal, vou aqui a permanecer deitado no fundo da canoa.. – Mas por pouco tempo, as condições atmosféricas, agravar-se-iam e voltaria a ser balanceado ao sabor de mais uma tempestade.
A canoa, fotograficamente
falando, talvez possa parecer-lhe um iate - Sim, de 60 cm de altura por 1 metro
de largura. Um pedaço de um tronco escavado, mais ou menos comprido, com umas
ligeiras coberturas laterais e uma pequena ponte à proa e à popa
SENSIVELMENTE A MEIO DA
MANHÃ – DEPOIS DE UM TORNADO - Fazia o balanço do dia:
Diário de Bordo 2 – Hoje já tive muito
trabalho!... De manhã cedo, estava muito próximo de Fernando Pó, entretanto,
surgiu um tornado que me aproximou mais, depois afastou-me para Oeste!...
Estou-me ainda a afastar!...Convenci-me que não tinha outra hipótese senão ir
dar lá, mas felizmente que coloquei a vela e estou a afastar-me nitidamente da
Ilha de Macias. Portanto, estou a dominar perfeitamente a minha canoa, depois
de ter enfrentado mais um temporal!... Não foi muito violento, mas, enfim,
deu-me algum trabalho. Neste momento, estou a dirigir-me para a Nigéria. Espero
lá chegar hoje, com certeza.
Com a chuva, desta manhã, consegui arranjar mais
provisões de água. Portanto, esta manhã, já me consolei com água doce,
água das chuvas!...Estou mais satisfeito, pois já não tinha água nenhuma. Já
estava a beber água do mar!... Enfim, tudo vai andando com um bocado de sorte,
felizmente
Diário de Bordo 3 . As aves estão aqui a
voar ao meu lado!... Sinceramente, agrada-me a cor desta água. Uma cor
diferente!... Um azul límpido, transparente!...Tudo indica que não devo estar
muito afastado da costa...
As aves continuam aqui a sobrevoar o mar ao meu lado e
à minha frente. Parece que querem acompanhar a minha canoa!...Os peixes,
todos acompanham o ritmo do seu andamento... Enfim, tudo parece ir pelo melhor
caminho!... Ainda não vislumbrei contornos de terra, o que, aliás, é
compreensível, visto que a costa é normalmente baixa e só quase se avista, quando
se está sobre ela, mas não devo estar longe.
NOVO ATAQUE DE PERIGOSO
TUBARÃO
Diário de
Bordo 4 – Neste momento, a canoa voltou a ser investida por um
grande tubarão!!... Já lhe dei umas tacadas com o remo e espero que
ele me deixe em paz e se afaste!... É realmente um tubarão grande! Ele ainda
anda aqui, talvez próximo da canoa!..
.
Diário de Bordo 5 –
Já vi aqui alguns paus!... São vestígios, normalmente de aproximação de
terra. Mas a água mantém-se com a mesma cor... isto é, de um azul clarinho,
embora com muita carneirada... Aguardemos, enfim, que a desejada praia chegue à
vista.
Diário de Bordo 6 –
Devem ser três e tal da tarde deste dia 20. Tive que tirar novamente a vela,
pois o mar apresenta-se bastante cavado, não há vento e tornava-se bastante
difícil velejar... Continuo, portanto, à deriva, já que não há outra solução.
Com o leme (que lhe adaptei e perdi) , talvez pudesse fazer qualquer coisa.
Tenho um remo tosco, uma coisa improvisada, que quase não serve para nada!.
Imagem
registada num certo dia ao pôr do sol
Diário de Bordo 6 Agora deixaram-se de
ver as aves, pelo menos aqui nas cercanias... Ainda não vislumbrei qualquer
contorno da costa africana... É uma costa muito baixa!... Já da outra vez,
quando cheguei à Nigéria, apenas a avistei a uma duas ou três milhas. Desta
vez, com certeza, vai ser a mesma coisa....É difícil o equilíbrio na canoa. O
mar está muito cavado, muito agitado!..
Tive que lançar hoje à água o peixe que tinha pescado
ontem por já cheirar mal. Não foi preciso utilizá-lo porque tinha ainda o
fígado do tubarão, que comi. Mas, se for necessário, pesca-se e come-se
peixe. Por enquanto, ainda tenho alguma comida. Não é muita mas ainda há
alguma!... Quanto a água, arranjei mais um pouco das chuvas, que, misturada com
a do mar, resolve o problema.
Diário de Bordo 7 –
Seguidamente, vou-me entreter a comer qualquer coisa. Tenho muita fome!...
Realmente, o apetite é bastante!...
ARRASTADO POR VÁRIAS HORAS POR
EXTENSO CARDUME – DESDE O MEIO DA TARDE PELA NOITE A DENTRO
Diário de Bordo 8 – Neste momento, grande
cardume de peixes! Estou envolvido num grande cardume de peixes! É
indescritível uma coisa destas!... Há-os por todos os lados! Formam uma
verdadeira corrente!...Não sei que possa ser isto!... Peixes!... São peixes!...
é um cardume!.. São cardumes! Fazem autênticas vagas! Eu não compreendo isto!...
É uma coisa estranha! Absolutamente estranha! O mar ficou agitado!
Completamente agitado com tanto peixe! A minha canoa continua a
tombalear!... É uma coisa que eu não percebo! Nunca vi tal fenómeno!... Os
peixes são em quantidades monstras!... Paus, também, entre os peixes!... Agora
dirige-se novamente para cá!... Ah!... Não posso!... Agora tenho de tomar
cuidado com a minha canoa!...
Diário de Bordo 9 – Este ruído que se
ouve são as vagas produzidas pelo cardume!...Enorme!... Que tem uma
extensão de mais de uma milha, talvez. É um fenómeno curioso este ruído
(fervilhar) que continua a ouvir-se... Modificou a fisionomia do mar,
completamente!... Faz vagas como se fosse uma tempestade! É uma coisa que
nunca vi!... Estranho não haver aqui aves, porque normalmente há aves
quando aparecem cardumes. O mar toma uma agitação de ondas de todo
o tamanho!... Pequenas! Grandes!.. Todo em turbilhão! Num autêntico
turbilhão!...
Diário de Bordo10 – Ainda estou no meio do
cardume! O cardume voltou para trás e voltou a cercar-me!...Os tubarões devem
estar a ter um belo prato!... Nem num tornado teria tantas dificuldades
de me equilibrar de como agora!...Prolonga-se por uma área
enormíssima!... A canoa tem maior velocidade! Simplesmente há vagas que a
galgam! É realmente um espectáculo!... Parece que me quer levar a terra; não me
larga!...
Diário de Bordo 11 –
Já passou mais de uma hora sobre o seu aparecimento e eu já andei mais em
distância do que se tivesse sido arrastado por um tornado. O seu maior
comprimento está no sentido poente nascente e a sua largura no sentido
Norte/Sul. Umas vezes descai para Norte outras vezes descai para Sul. E eu
estou a ser arrastado a uma velocidade impressionante!...Verifico pela posição
da Ilha de Fernando Pó... Não há dúvida nenhuma que parece que foi Deus que
veio ajudar-me a sair deste lugar, porque, hoje, já fui retardado por aquele
tornado de manhã!...Fui muito puxado para Sul!... Agora estou a ser puxado
nitidamente para Norte!...Umas vezes estou no meio dele, outras fora dele!... É
coisa esquisita mas curiosa ao mesmo tempo!... Parece que há uma divindade!...
Há algo superior que me está ajudar!... O cardume parece que tem alma! tem
vida!...É impressionante!... Tem vida o cardume!... Parece que os animais têm
descrição!.
Diário de Bordo12 – Louvado sejais meu Deus!...
Será Deus que me mandou este cardume para me ajudar?!... Para me salvar?!...O
cardume continua... é já noite!... E ele a fazer-sentir! Umas vezes
descendo para Sul outras vezes avançando para Norte e a canoa deslizando... Agora,
num movimento suave!...Há muitas ondas que às vezes tentam galgá-la, mas
ao deleve! Vai até num movimento mais equilibrado. É curioso!... Há qualquer
coisa de especial nisto...
FINALMENTE, LÁ CONSEGUI LIBERTAR-ME DO CARDUME,
COLOCANDO A VELA
Diário de Bordo 13 - Neste momento,
são cerca das dez horas da noite. Estou a navegar à vela. À minha
retaguarda, a Sul, parece haver formação de uma tempestade qualquer. Depois de
algumas horas, envolvido no cardume, lá consegui afastar-me, graças à ajuda da
vela e do remo improvisado. Não é nada prático. É extremamente difícil
navegar nestas condições. Estou com uma atenção muito grande na bússola, que
tenho aqui à minha frente, porque isto tem que ter o máximo de exatidão a fim
de me aproximar quanto antes!... Ao meu lado , tenho o rádio (pequeno
transístor a pilhas) com o qual tenho escutado a Rádio Nacional de São Tomé e
Príncipe...Com certeza que só poderei navegar mais uma hora porque as condições
não são nada favoráveis.
Diário de Bordo 14 – Realmente é uma
situação muito difícil esta em que me encontro agora empenhado. Para dar
equilíbrio à canoa é um caso sério! É preciso um sacrifício enorme!... Ainda
não comi mais nada...Estou cheio de fome!... Mas, efetivamente, quero
libertar-me aqui disto, porque é uma chatice...Está para ali a formar-se
um temporal à minha retaguarda, não me apanhe!...Mas, enfim, se me apanhar, ao
menos seja em boa posição da canoa...Por vezes, é desfavorável..
Diário de Bordo 15 - A canoa ficou
atravessada na corrente e agora é um caso sério para conseguir... Mas já está
quase!... Os relâmpagos estão-se a ver... Portanto, é natural que, lá para a
meia-noite, venha a ter aqui uma chuvazita... O mar está a ficar um pouco mais
difícil. Até agora tenho navegado .Havia uma aragenzita e o mar estava
calmo.
Há luar! O céu está descoberto, pelo menos aqui nesta
zona... Lá um pouco mais para a leste é que há nuvens e uns relâmpagos. Deve
estar a formar-se para ali uma trovoada, com certeza.
Vejo as estrelas perfeitamente... É muito
agradável!...Mas era bom que tivesse o leme (ou o remo); prendia-o ou amarrava
(a cana do leme) e navega de qualquer maneira... Assim, ando para aqui...
desengonçado... É uma chatice... Enfim, vai-se fazendo o que se pode.
Há bocado o cardume deu-me que fazer.... Ah! mas
também favoreceu, favoreceu!...Deu um bocado de andamento à canoa.... Oh santo
Deus! Como é que eu consigo?!...Outra vez a atravessar-se!....
Ver a lua é agradável!... O pior é se vem para aí
alguma chuvada!...Põe isto numa banheira!... Daqui a pouco vou fazer umas
papitas com água do mar
""Diante de mim, a escuridão. A voragem que não
tem cimo e que nem sequer tem margem" - Victor Hugo
Diário de Bordo 16 – Não sei que horas são neste momento.
É noite do dia 20 para o dia 21. Acabei agora de apanhar uma chuvada!...
Estive a tirar a água da canoa, porque estava toda alagada!...Está
escuro! Muito escuro!... Não sei... mas devem ser aí uma duas da manhã...Estou
aqui com uma lanterna... A canoa estava alagadíssima!... Portanto, neste
momento, não me posso deitar... Tenho de estar a ver se a canoa seca um
pouco... Mas a chuva continua a ameaçar! Continua a relampaguear e a trovejar!
... É o resto da noite de vigília!...
O mar, até ao momento em que choveu, estava
muito agitado; agora já está mais calmo... É uma noite bastante chata, esta....
O trovão, lá longe!...Os relâmpagos... É aventura, propriamente dita.
Diário de Bordo17 –
Um pormenor que já ficava por dizer: é que eu reforcei as minhas provisões de
água. Apanhei mais um bocado de água das chuvas para beber...Portanto, neste
momento já não preciso de água do mar.
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