5 de
Novembro de 1975- 16º Dia - Algures à deriva no Golfo da Guiné a bordo de uma
frágil piroga escavada num simples tronco de ocá por um pescador
santomense, em Neves - Tinha ainda pela frente mais 22 penosos e tormentosos dias até aportar a uma recôndita
Baía de Bococo, em Bioko, ex-Fernando Pó - Guiné Equatorial - E depois mais uns terriveis dias na famigerada prision Plaia
Negra - Black Beach por suspeita de espionagem.
Jorge Trabulo Marques
Dentro de um modesto contentor de plástico, igual aos da recolha do lixo, foi-me possível preservar a máquina fotográfica e um pequeno gravador no qual fui podendo registar o meu diário de abordo - É justamente esse registo que passo a transcrever - Acompanhe-me nessa minha odisseia, sobre a qual já passaram . 44 anos mas que continua ainda bem presente na minha memória. Até, porque, milagrosamente, disponho dos mais importantes pormenores gravados desses longos dias de permanente angústia e de incerteza.
Construção da Canoa - Neves - S. Tomé |
Frequentes os taques de grandes tubarões |
“Já são dezasseis dias passados que me encontro numa canoa, em pleno Golfo da Guiné. Devem ser três horas da tarde. Sinceramente, encontro-me muito desiludido! Cheio de sede!... Não tenho praticamente água!
Ontem, de facto, estive próximo da Ilha do Príncipe. Mais propriamente do Ilhéu das Tinhosas.
Afastei-me!... Agora ando para aqui... Não há vento!...Calmarias!... Longe da terra!... Com falta de água!
Encontro-me muito. mesmo bastante desanimado!...
Não perdi ainda a esperança de que hei-de chegar a terra.... hei-de me salvar!... Mas, sinceramente, sinto-me muito saturado! Muito saturado!...
A situação é extremamente difícil!... Ponho a vela... a canoa não obedece... Não há vento!..
Por outro lado, a falta do leme é que provocou isto tudo!... É uma situação delicada!... Bastante mesmo!... Perdi até o apetite de comer!... Aliás, eu tenho muita sede! Imensa sede!... Oxalá que chova!
Quase ao fim da tarde do 16º dia. Um dia bastante aborrecido!...Há bocadinho houve um tubarão que investiu contra a canoa! Andou aqui à volta dela, dando-lhe rabanadas violentas e só consegui afugentá-lo com auxilio do machim!... Estava a ver que me queria virar a canoa!... Realmente foi uma situação bastante desesperada!
Largada das Neves |
O sol mergulhou e afundou-se há muito, algures
sobre o imenso círculo a ocidente – Momentos antes,
alguns dos seus raios rasgaram as nuvens, espalharam-se
em mil reflexos e chegaram até mim - Como que despedindo-se
através de nostálgica e reluzente estrada de luz - Já lá vão umas horas!...
Espero voltar a vê-los esplendorosos a oriente.
A noite vai alta e espessa! O mar encapelou-se
com o refrescar do vento - A canoa balança....
Atmosfera é húmida de névoas negras,
que correm baixas, rolando mui densas.....
- Para onde vou eu na estreita concavidade
deste frágil tronco escavado?!...
Para onde me levará este esquife fantasmal?!...
De que te lamentas, afinal,
meu coração esquivo e atormentado?!..
Não terá sido loucura insensata
ter confiado a minha vida em tão precária fragilidade?!...
meu rumo é ditado pelos ventos e correntes,
não tenho nenhum itinerário programado!
- Não sou senhor de mim: - lancei-me ao mar
sem instrumentos náuticos e cartas de marear.
Medito e por vezes fico ainda mais triste e em sobressalto,
ao sentir o mar a rugir e o vento a fustigar-me e a uivar!
Nada mais posso fazer que sentir a ansiedade
dos vivos nas horas incertas ou esperar absorto
pela eterna paz dos mortos se a vida me escapar.
Vou balanceado para onde o vento soprar.
À flor das águas, vogando deitado e solto!
Vou para onde me arrastarem as ondas
os caprichos do destino, me quiserem levar!....
Quando não chove e o céu está descoberto, não vejo o mar
mas ouço constantemente as suas pancadas ao meu lado,
até que adormeço com o bailado das estrelas - Mas hoje
ainda não vi nem as estrelas nem vi o luar...
Não consegui adormecer - Oh vil ou doce tormento!
Não consegui adormecer - Oh vil ou doce tormento!
Pecados mortais meus ou ira negra dos altos céus!
Meu colchão é côncavo estreito e duro - Muito desconfortável.
Não me permite sequer abrir os braços, mal posso respirar.
Pior ainda quando estendo e cubro a canoa com o toldo de plástico.
Meu coração, quase sufoca, possuído pelas sombras do oceano noturno.
Mesmo assim, meus olhos, cegos de cansaço, perdidos
num horrível vazio sonoro e escuro,
num horrível vazio sonoro e escuro,
não cerram as pálpebras, não cedem
à continuada afronta que os amarra
mergulha e sobressalta!
à continuada afronta que os amarra
mergulha e sobressalta!
Vão abertos, em persistente vigília e alerta! - Não param de sondar
os ruídos, os marulhos! - E, quando estes ressoam no casco
ainda mais os intrigam e assustam - Arregalados,
perscrutam e devassam a penumbra absoluta -Porém,
nada enxergam do que vai dentro ou lá fora - Vão cegos
mas não desistem!- Nesta horrenda dança de vida
ou morte, são eles e os meus ouvidos,
o mais íntimo sonar, desta minha
inarrável errância marítima
ou morte, são eles e os meus ouvidos,
o mais íntimo sonar, desta minha
inarrável errância marítima
Neste corrocel ensurdecedor de sonoros embates de arrepiar,
vergastas impiedosas das vagas que vão sucedendo
em brutais baques crispados de quase enlouquecer,
Oh quantas ideias! Quantos pensamentos!
vergastas impiedosas das vagas que vão sucedendo
em brutais baques crispados de quase enlouquecer,
Oh quantas ideias! Quantos pensamentos!
Quantas dúvidas e inquietações!....
Que resposta poderei eu dar à noite?!...
Que devo eu fazer?!...Senão conformar-me
ou renunciar às interrogações da sua infinita curiosidade...
Que resposta poderei eu dar à noite?!...
Que devo eu fazer?!...Senão conformar-me
ou renunciar às interrogações da sua infinita curiosidade...
Pois todos os momentos, por mais negros e incertos que sejam,
vão além dos mares e da terra, são parte do Universo!
São verdadeiramente divinos!..Pertencem a Deus!
Mesmo através da mais cerrada escuridão,
elevam-se dos mares ou da terra aos céus!
Na verdade, mesmo deitado, vogando à tona desta vastidão,
deste cemitério imenso, nunca estou inteiramente tranquilo
– Imerso em tantas dúvidas! Assolado por tantas interrogações
e por tanto mistério! Enquanto não adormeço,
vivo num estado de permanente torpor, angústia incerteza
deste cemitério imenso, nunca estou inteiramente tranquilo
– Imerso em tantas dúvidas! Assolado por tantas interrogações
e por tanto mistério! Enquanto não adormeço,
vivo num estado de permanente torpor, angústia incerteza
- A todos os instantes, a todas as horas, a minha alma interroga-me,
faz-me perguntas à solidão que me assola, a que eu não sei responder.
. A canoa voga e a minha vida voga e flutua igualmente suspensa.
Por vezes, depois de adormecer, acordo em sobressalto,
com o bater de uma vaga mais violenta ou de uma barbatana
que se encosta e roça asperamente no seu bojo - Outras vezes,
não é o sobressalto mas a desilusão: - a sonhar
julgava-me noutras paragens mas, ao acordar,
constato que estou encaixado num exíguo espaço
e, ao levantar-me, logo me apercebo
que nem sequer um passo aos lados, posso dar.
O passado já não me pertence e o meu futuro
é como a noite: desconheço onde começa e onde acaba
- E o presente é este estado de incerteza permanente,
que não é traduzível nem por imagens nem por palavras.
Estendido sobre o fundo húmido da canoa,
que chega a assemelhar-se a uma salmoura - sim, às vezes só lanço mão
do vertedouro, quando a água chincalha demasiado e me cobre.
Mesmo que não reze - não, não rezo, só se for a cantar
ou então quando as lágrimas me escorrem pela face,
tal como as contas de um rosário e têm o sabor a sal
No entanto, quando me deito, depois de estender-me
por entre as madeiras do meu estreito leito, sinto que as minhas mãos
elas mesmas naturalmente se aconchegam ao meu peito e se entrelaçam
num gesto de permanente pose de súplica e de religiosa oração,
enquanto o peso do sono me não vence e a noite me acolhe
com as negras vestes assombradas ou maravilhadas do seu regaço
e me cobre por completo no mesmo infinito manto
da sua pacífica ou conturbada solidão.
elas mesmas naturalmente se aconchegam ao meu peito e se entrelaçam
num gesto de permanente pose de súplica e de religiosa oração,
enquanto o peso do sono me não vence e a noite me acolhe
com as negras vestes assombradas ou maravilhadas do seu regaço
e me cobre por completo no mesmo infinito manto
da sua pacífica ou conturbada solidão.
Eis, porque, a escolha que agora se me oferece é só uma:
deixar-me ir para onde quer que seja arrastado,
enquanto a noite for correndo e for passando,
pasmado e confiante de que os astros longínquos
me sirvam de tecto e de lastro, por companhia...
E que, o irromper da alvorada, não seja mais
o prolongamento da "noite eterna e antiquíssima"
mas o alvorecer e a promessa de um novo dia...
Soergo-me, olho em redor, olho e revejo o melhor que posso,
inseguro e ansioso, mas nada mais vejo e descubro
que as trevas de um imenso, negro e medonho poço!
Enquanto a canoa, boiando na ondulante superfície,
boiando à flor do abismo, indiferentemente a tudo,
corajosamente, vai sulcando os fugidios vultos...
.- Oh, sim!...Que vejo eu, enxergo ou sinto
em mundo tão misterioso e desconhecido?...
Vejo que a solidão ainda é a mesma
para onde quer que alongue o meu olhar...
Sinto que vogo por um mar negro e indistinto,
Sinto-me, em parte incerta, vogando
prisioneiro do meu corpo e que,
tanto a minha alma, como o meu corpo,
ainda não são inteiramente livres um do outro..
Vou errante e solto à superfície
desta massa líquida ondulante.
Vou como ave noturna sem asas,
vogando inteiramente condicionado
e prisioneiro da minha liberdade ...
É certo que não tenho paredes à minha volta a cercearem-me
os movimentos - Pelo contrário: esta cúpula infinitamente parda
é toda a minha, este mar imenso e negríssimo é todo meu,
mesmo assim, sinto-me infeliz, pois não sou eu
que vou a comandar a minha nau e o meu destino,
mas é o mar que me leva, não sei para onde
ou para que parte incerta do negro horizonte...
- Ó mensageira áurea luz! Errantes forças divinas!
Vós que alternais dentro do meu peito a paz e harmonia
das manhãs e tardes serenas ou mesmo as noites mais escuras e assombrosas,
com a voragem devoradora das tempestades - sejam quais forem as horas! -
em que alturas celestiais ou erma solidão, agora estais?!..
Será que abandonaste meu pobre coração mortal?!...
- A noite nestes mares equatoriais, reparte por igual
as suas trevas com a claridade do dia
- Quando chegará a hora - ó luz bendita! -
de vos contemplar?! Poder eu adormecer, libertar-me
e esquecer-me de tudo isto?!...
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