CONTINUO SEM PESCAR E A
GUARDAR O TUBARÃO, JÁ ESTRAGADO. - BASTANTE ME CUSTA SACRIFICAR AS MINHAS
ÚNICAS COMPANHEIRAS QUE VÊM PERNOITAR NA MINHA CANOA ...MAS, OH MALDITA
FOME! A QUE CRIME ME LEVASTE!..
Diário de Bordo - 2 - Apanhei há bocadito uma ave...Uma
avezita...Sinceramente, custa-me fazer isso...Até porque pousam aqui todas as
noites...Mas a verdade é que a necessidade me obriga... Há fome!...Portanto,
tenho que me valer destes recursos
Com que dor no coração tive de sacrificar uma das minhas habituais companheiras |
Diário de Bordo - 1 Deve ser uma da manhã do 28ª dia. É noite e está luar!...Até agora o tempo tem estado bom. Mas o mar está muito agitado, com uma uma calema muito forte! E eu ainda nem me deitei nem cruzei os braços, vou a velejar. O que me obrigo a uma atenção redobrada. A canoa balanceia bastante! E eu já ergui a vela mais pequena para dar outro equilíbrio à canoa.
Há umas formações de nuvens lá ao largo...Esperemos que entretanto não
chova
Diário de Bordo - 3 Os trabalhos que acabei de executar, são
trabalhos muito melindrosos... É preciso fazer umas ginásticas para se proceder
a isto e evitar que se caia ao mar...Realmente está uma calema bastante
forte e a canoa balanceia muito!... Está sempre a ser vergastada e a
balancear!... O vento não é muito mas o mar está muito cavado!...
Diário de Bordo - 4 Devem ser aí 7 da manhã do 28ª dia. A
situação é muito enervante!...O mar continua agitado!... Ao amanhecer surgiu
uma trovoada violenta que deixou o mar muito cavado!... A canoa anda para aqui
a balançar de um lado para o outro e torna difícil o meu equilibro....O
tubarão dá um pivete dos diabos!... Está a cheirar mal!... Tenho tentado pescar e não consigo pescar nada!...
Há aqui uma série de peixes parasitas que mal lanço a isca vão logo comê-la!...
Simplesmente, não ficam lá presos, porque o anzol é demasiado grande.
Estou
realmente saturado!... A canoa deve ter andado bastante, devido à violência das
vagas mas não vislumbro qualquer contorno de terra!...Isso é para mim bastante
chato, porque já era altura de estar próximo de terra... Estou para aqui
esfomeado!...Enfim!...
As correntes
mudaram nitidamente. Estão-me a levar para norte, nordeste. O que vai atrasar a
minha chegada a terra...Por este andamento, até é possível que já não chegue à
Nigéria mas aos Camarões.
Diário de Bordo - 5 "Não sei onde me
encontro...Não sei para onde vou!... Mas tenho ainda uma réstia de esperança...
Tenho fé em Deus! Que realmente chegue a terra!... É o que posso dizer neste
princípio de noite..."
Diário de Bordo - 7 Sinceramente!... Vou-me
deitar!... Vou ver se descanso qualquer coisa, daqui a bocado...Mas, sem comer
nada?!...Com estômago completamente vazio... (..)
Ah, mas eu quero é viver! É viver! E mais nada!... Eu quero viver!... A vida é
tão bela!... A vida... ai... (não
resisto que as lágrimas me corram pela face) Só
no meio das dificuldades é que uma pessoa, realmente, avalia o que é a vida!...
Sozinho, apreensivo e triste, lá
vou balanceado pela noite afora, velejando ansioso, proa apontada
ao desconhecido. Tosco pano içado em tosca vara de mato a desafiar os ares
destes turbulentos mares. Atento e vigilante. Atormentado pela incerteza, pela
fome e pela sede- sim, a água que recolhi das chuvas, é pobre. Sem comer e sem
poder dormir, lá vou velejando, impossibilitado, mais das vezes, de
o fazer. Derivando, indo arrastado, ignorando o destino para onde me conduz o
movimento incessante deste ondulante e lívido manto líquido.
Em meu redor é o mar! E é noite de luar!... No alto do
cósmico arco, e já muito acima do ponto onde se ergueu do fundo das
águas, brilha um impressionante disco lunar, cuja claridade se espalha por uma imensa superfície espelhada de
infindos brilhos de prata e por infindas pregas de enrugada extensão, ora
cintilando, ora desmaiando, mas cá em baixo o seu brilho vem somente tornar
ainda mais visível a face
conturbada da infinita solidão que me submerge. Pois, de tão longínquo, não
desfaz por completo as negras nuvens que pairam em torno do obscuro
horizonte que me envolve, que continuam a revelar-se, como olhos de
assombrosa e velada ameaça!..
.
Sim,
alta vai a noite e alta brilha a lua e eu não durmo! - Ondulam nervosas
e escuras águas e, por tão agitadas, adio o meu repouso; nem tão pouco posso dormir
nem descansar. No entanto, completamente alheia à minha incerteza, a
canoa lá vai subindo e descendo a cova e a dobra de cada onda do imenso manto
tumultuante. Sei a direção que
toma mas não faço a mínima ideia onde estou nem para onde vou.
Mas,
oh Deus, a lua, descoberta ou encoberta, lá segue imperturbável o seu percurso
- Jamais força alguma a desviará a impedirá de mostrar à
Humanidade e a toda a Criação, as várias faces do seu rosto. Mas, o meu
destino, como será?!... Sozinho e abandonado, debaixo da sua luz, ao sabor dos
caprichos do mar e do vento, para onde me levará a noite?!... Qual o
meu caminho?!... .. Quem me responde?!...
A que enseada de águas calmas, límpidas e profundas,
a que bom porto de abrigo ou praia de areia fina, a minha
canoa, poderá tranquilamente acostar? Ou a que íngreme escarpa,
promontosa arriba, rochosa falésia, poderei vir a ser atirado e
despedaçado?!... E, depois, o que poderá acontecer-me se pisar a tão
desejada floresta, luxuriante e fértil, carregada de frutos silvestres, chão
viçoso e perfumado, a tão ansiada terra firme?!..
Recebendo-me com desumana desconfiança e hostilidade, como perigoso invasor e foragido?!.. Vendo em mim o ser pacífico, que ousou enfrentar sozinho as procelosas ondas dos tornados ou o vil estranho, o suspeito, desembarcado de barco espião ou pirata?!...
Dez dias depois, conheceria a resposta - detido, algemado, encarcerado!... Mas, agora, era a noite, mais uma longa noite equatorial, um longo e exaustivo desafio - E, cada noite, nestes mares, não é uma noite, como outra qualquer, mas a sombria eternidade, a sempre misteriosa e antiquíssima noite, que, a cada momento, vai mostrando, aos meus olhos, ansiosos e perscrutadores, as mais diversas máscaras e fantasmas, com que se cobre ou revela.
Como
irei ser recebido?!...Apiedando-se de mim, deste miserável náufrago,
acolhendo-me, humanamente, ou intrigando-se com o meu aspeto, magro,
atormentado, queimado e olheirento, de criatura vinda de outro
mundo?!...
Âncora flutuante |
Recebendo-me com desumana desconfiança e hostilidade, como perigoso invasor e foragido?!.. Vendo em mim o ser pacífico, que ousou enfrentar sozinho as procelosas ondas dos tornados ou o vil estranho, o suspeito, desembarcado de barco espião ou pirata?!...
Dez dias depois, conheceria a resposta - detido, algemado, encarcerado!... Mas, agora, era a noite, mais uma longa noite equatorial, um longo e exaustivo desafio - E, cada noite, nestes mares, não é uma noite, como outra qualquer, mas a sombria eternidade, a sempre misteriosa e antiquíssima noite, que, a cada momento, vai mostrando, aos meus olhos, ansiosos e perscrutadores, as mais diversas máscaras e fantasmas, com que se cobre ou revela.
"Vem,
Noite antiquíssima e idêntica,
Noite
Rainha nascida destronada,
Noite
igual por dentro ao silêncio. Noite
Com
as estrelas lantejoulas rápidas
No
teu vestido franjado de Infinito.
Vem,
vagamente,
Vem,
levemente,
Vem
sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao
teu lado, vem
E
traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde
num campo teu todos os campos que vejo,
Faze
da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe
todas as diferenças que de longe vejo.
Todas
as estradas que a sobem,
Todas
as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas
as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E
deixa só uma luz e outra luz e mais outra",
(…)"
Vem sobre os mares,
Sobre
os mares maiores,
Sobre
os mares sem horizontes precisos,
Vem
e passa a mão pelo dorso da fera,
E
acalma-o misteriosamente,
Ó
domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!"
"Vem,
cuidadosa,
Vem,
maternal,
Pé
antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À
cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E
que viste nascer Jeová e Júpiter,
E
sorriste porque tudo te é falso e inútil.
Vem,
Noite silenciosa e extática,
Vem
envolver na noite manto branco
O
meu coração...
Serenamente
como uma brisa na tarde leve,"
Excertos
de Álvaro de Campos – Fernando Pessoa
"Torna-me
humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só
humanitariamente é que se pode viver.
Só
amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos,
Só
assim -- ai de mim! --, só assim se pode viver.
Só
assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!
Excerto de Álvaro de Campos 1916 – Fernando Pessoa
Nenhum comentário :
Postar um comentário