Diário de Bordo - "Sinto dores de cabeça, talvez devido ao sol e à água salgada (que bebo) pois não
choveu...Cá ando... Mas apetecia-me um copo de água” -
Amanhece.
A claridade matinal começa a transparecer distintamente através das partes
descobertas, que o oleado não cobre. A noite não me deu trabalho praticamente
nenhum. Dormi descansadamente. Embora me tivesse levantado algumas vezes para
pegar no vertedouro (pois existem rachas onde entra água) e fazer as
observações de vigília habituais. O meu sono é como o dos gatos. Abro os
olhos ao menor ruído ou desconfiança. Por isso, nestas condições, é
muito difícil ter um sono completamente reparador.
Sim,
mas não me está apetecer levantar-me. Sou dominado ainda por uma certa
sonolência. Mas não; não vou fazer a vontade ao meu corpo, que bem precisava de
um bocado mais de descanso, pois tenho andado com os sonos atrasados. Preciso
de observar o que vai lá fora...Como sempre, as mesmas dores de costas. Olho o
céu a todo o horizonte. Está cinzento. O sol não se vê mas já deve ter nascido
há mais de uma hora. A canoa mal se mexe. Como não há vento suficiente para
velejar, resolvo entreter-me a pescar. E a sorte começou logo cedinho a
bafejar-me
Diário
de Bordo 1 - O gaijo ainda não acabou de morrer!...
É já manhã! É manhã do 24ª dia. Mal me levantei, lancei o anzol e pesquei logo
um tubarãozinho!...O filho da mãe não há maneira de morrer!...O filho da
puta!...O Cão!....É tubarão!!... Filho da mãe ainda não acabou de
morrer!!...Olha lá, seu cão!!...Encheste-me todo cheio de sangue, eh!...Este é
o maior de todos! Pesa mais de 20 quilos!!...Olha lá, ó tubarão! Eh tubarãozinho!!...
Filho da mãe, levas umas machinadelas!...Custa a morrer!...Foi pescado com uma
isca de chouriço! (os restos que me sobravam numa latinha, guardados para
iscas)...Sim, senhor! Dois tubarões em menos de 5 minutos! A manhã do 24ª dia
começa boa, sim senhor!...
É claro que eu não venho à pesca do tubarão, mas
não me importo de pescar mais, até porque acabo de deitar fora a carne (um
deles) Para já, não sei se irei a necessitar dela.
Fiquei imensamente satisfeito pela captura dos dois belos exemplares. Porém, embora me encontre, praticamente sem alimentos, a minha satisfação é devida mais ao prazer da pesca em si do que a poder renovar as reservas alimentares. A carne do tubarão é mal saborosa, tem um sabor esquisito. A pele é duríssima, quase impenetrável, tanto no dorso como no ventre. As regiões de cada lado da cabeça, são os pontos mais vulneráveis. Proporciona belos pratos, mas cozido e à custa de uma porção de condimentos. O tubarão é uma autêntica carcaça, que depois de morto, entra imediatamente em decomposição. Deve-se esfolar logo após a sua captura. Aproveitei um deles e as barbatanas que guardo como troféus...O fígado é gostoso, aproveito-o sempre, mesmo cru.
Outro dos cuidados, que não posso descurar, logo que sinta morder a isca, é puxar a presa o mais depressa possível para bordo, pois, quando não, acercam-se os grandes tubarões e não tardam a deixar-me apenas com a linha na mão. E, antes do içar, tenho que lhe deferir alguns golpes do machim para o atordoar. Evitar o contacto pessoal, pois, mesmo quando parecem mortos, podem começar aos saltos, a estrebuchar e abocanhar o que encontram pela frente. Muito cuidado com as suas manobras. O tubarão é um bicho matreiro e de sete vidas, custa a matar.Se eu dispusesse de anzóis e linha adequadas, era um fartote - Bastava até uma lata para servir de isco. Pois são atraídos por tudo que branqueie - e já vi que uma lata para eles é uma bolacha.. Mesmo de litro e com a serrilha da tampa aberta, engolem-na em três tempos. Assim, mais das vezes, desaparece o anzol e servem-se da linha para limpar talvez a ferocíssima dentadura laminada
Quanto
às vísceras, é sempre um caso sério com elas. Mal se jogam ao mar, aparecem
logo uns tantos a atirarem-se às cegas na sua direção. Devoram-nas com estonteante
sofreguidão e rapidez. Há quem diga que veem mal, que são orientados pelas
vibrações e pelo seu apuradíssimo olfato, mais pelo cheiro do que pela visão.
Dizem ainda os especialistas que, se uma pessoa cair ao mar, numa zona infestada
de tubarões (como, aliás, é esta região equatorial), a melhor atitude a tomar é
não fazer movimentos demasiados bruscos ou então avançar ao seu encontro. Nunca
lhe virar as costas. Eles, como estão acostumados a que fujam deles, dão em
debandada. Fala-se também que umas palmadas no focinho (a parte mais sensível)
será uma forma de os afastar. Mas, tudo isto, é relativo: há muitas
espécies de tubarões e nem todos são assassinos - Nem todos atacam a canoa. De
todo o modo, a manhã - pelo
menos em termos de pescaria, promete. Mas quem é que, aqui, em tais condições,
pode ficar absolutamente tranquilo? Tranquilidade tem havido, por vezes, e até
ao sublime, só que é tudo sempre muito efémero.
Diário
de Bordo 2 – O
céu está enevoado, não completamente, pois há nuvens que ameaçam chuva, lá
longe, a leste, para os lados da Ilha de Fernando Pó...Aqui, para oeste, vejo
umas nuvens brancas... Estou farto de olhar a ver se consigo vislumbrar
qualquer contorno de terra (da costa africana), mas não....Não vejo nada...
Enfim, mais um dia que tenho de enfrentar com calma.
Apelar à calma... Pois
é...Mas a calma também tem os seus limites...Não há vento nenhum e eu bem
desejava pôr a vela, mas é enervante, porque tenho de ficar em “árvore seca” –
Eu, um simples mortal, perdido ao sabor das correntes. A linha circundante, entre
o céu e o mar, é a mesma com que deparo todos os dias, nada mais me resta que o
prazer e a doçura de agora respirar esta calma. Sou uma espécie de figura
central do Universo. Mas de um Universo estático e morto
Diário de
Bordo 3 – Devem ser oito horas da manhã. Não há
vento. Às vezes ele vem com
tanta força!... Agora não há vento...Enfim, teremos que aguentar... Sei
lá!...Até que venha para aí uma trovoada.Em vistas disso, tive de tirar a vela
e ficar à deriva...Sim, posso ler agora qualquer coisa, ouvir música
sossegadamente... Mas até quando?!...É uma interrogação... Daqui a pouco
aparece por aí alguma!...É sempre assim...Uma pequena pausa, logo a seguir um
furor, uma violência... Só me faz pena é não poder pescar os belos peixes que
aqui andam em volta. Não tenho isca para eles. Porque eles são belos, belos!
SEMPRE AS HABITUAIS INCERTEZAS E INTERROGAÇÕES - Vertidas para o
confidente gravador, guardado no contentor que se vê na imagem.
Diário de Bordo 4 - São nove e tal da manhã. Pelos vistos,
não me enganei....Já se está a aproximar uma trovoada de leste para oeste...
Vejo já uma escuridão a aproximar-se com grande velocidade... Não tarda muito a
chegar, com certeza...Mais um bocado de trabalho vou ter...
Tenho a impressão de estar a ver também
uma mancha negra.... a noroeste...Não sei se serão acumulações de nuvens ou se
será terra...
DESTA VEZ AS NUVENS LÁ SE DESFIZERAM E
DESVANECEU-SE A AMEAÇA.
Entretanto, a
partir do princípio da tarde, o céu clareou e ficou limpo. Apenas uns dispersos
farrapos algodoados , brilham a sua brancura imaculada, nalguns pontos do
horizonte. Não surgiu o esperado mau tempo e o sol equatorial, que parecia
querer ausentar-se, assestou os seus esplendorosos raios, em cheio, sobre mim.
Diário de Bordo 5 – Devem
ser aí três horas da tarde. Tem estado uma tarde magnifica!... Finalmente, não
surgiram as trovoadas que eu esperava...Aliás, apareceram mas noutros sítios,
aqui próximos...Apenas se sentiram ligeiros reflexos do vento, que, aliás, até
me beneficiou, porque pude colocar a vela.
Entretanto estou à deriva mas está
uma brisa um bocadinho agradável. E, pelos vistos, é capaz de já me dar para
poder velejar qualquer coisa. Vou experimentar de novo a vela.
Esta tarde vi uma baleia e uns barcos,
muito afastados!...Apenas se viam os topos dos mastros...Aproveitei ainda para
fazer um bife de tubarão
com auxilio de uma vela de cera.
Neste momento, embora o céu se
apresente descoberto, apenas umas nuvens brancas no horizonte, não vislumbro
quaisquer contornos de terra. Nem Fernando Pó nem a costa de África. Não vejo
qualquer sinal de terra.
VELA ERGUIDA, SINGRANDO EM CÉU E MAR
AZUL - EM TARDE MAGNÍFICA!
O horizonte
diluiu-se num débil fluído brancacento e luminoso. Na tarde de um céu límpido,
glorioso e profundo, brilha o sol, que inunda o mar num luzeiro incrivelmente
intenso, onde se reflectem cores
e tons da mais delicada e viva pureza.
Estou
de novo a velejar. Surgiu agora pelo meio da tarde uma brisa mais fresca que
estou tentando aproveitar o melhor possível. Permaneço sentado sobre a ponte da
popa com as mãos bem aperradas ao remo, procurando governar o rumo da frágil
embarcação, que, com todo o pano enfunado, altiva e graciosamente vai
cortando as espumosas e engrinaldadas ondas
Diário de Bordo 6 – Aí está a canoa a navegar sobre um mar
azulíneo! De um azul muito clarinho!....É muito agradável, neste
momento!...Está realmente uma tarde muito agradável!... Espero que a noite
também seja...Mas não sei....
Estou farto de olhar para o horizonte a
ver se vejo qualquer contorno; não vejo nada! A costa africana continua a ser
baixa nesta zona. Apetecia-me realmente tomar um banho nesta água, tão
límpida... É pena!....Os meus martelos, não me deixariam, com certeza, em
paz.... E daí, não sei... Eles andam aqui às voltas, aos
saltos...Acompanham-me!....Porque eles estão quase todos marcados com machinadas no dorso
e no entanto continuam a acompanhar-me.
É realmente uma tarde muito
agradável!...O mar!.... Este mar!!...Ligeiramente ondulado, de um azul
clarinho!...Estou a ouvir música africana...Enfim, para condizer com o
ambiente, já que estou próximo de África.
A CANOA ESTÁ A PORTAR-SE MUITO BEM
A minha
canoa, lá vai vencendo o
dorso e a cava das ondas, que se enrolam e desfazem, vibram e espumam de fulgor. Apesar de alguns balanços, denota
segurança e equilíbrio satisfatório. O andamento não é veloz mas é encorajador,
anima-me o espírito e reforça a minha esperança.
Diário de Bordo 7 - Serão
aí quatro horas da tarde. Mas que tarde tão maravilhosa!...Que cenário
grandioso este!...Céu azul! Mar azul!...De um azul lindo!..Belo! Belo!!... As
vagas brilham, a canoa desliza suavemente!... É verdade... Os peixinhos, aqueles que são os parasitários
que andam sempre aqui a
catar as pequenas conchas que aparecem na canoa, eles também acompanham, estão
a fazer toda a ginástica!...Os outros peixes, o martelo, igualmente...É
agradável!...Não tenho palavras para expressar quanto satisfação, quanto prazer sinto
no meu peito!...Ah, que imensidão!... Que alegria!....Tudo isto é belo, é
belo!...Apenas uma brisa, muito leve, imperceptível, se sente, mais nada!...O
mar é dourado! É prateado!...De uma cor linda!...
Estou com uma ligeira dor de cabeça e dor de
costas, mas, só o prazer, o ambiente, esta coisa que eu sinto! me faz esquecer
as dores de cabeça.
O sol dardeja
sobre mim, como farpas abrasivas, mas não faço caso. Sinto-me preso e absorto
pelo ambiente que respiro à minha volta. O passado para mim, agora é como se
não existisse. Não faz parte dos meus pensamentos. E o futuro também agora não
me preocupa. Vivo o presente. Os meus olhos não encontram senão plenitude.
Pressinto que pertenço a outra realidade cósmica, diferente daquela donde
parti. Sinto-me outro ser. Mais, concretamente, um duplo ser. Humano, talvez só
na aparência, porque, no fundo, tenho consciência que sou a fusão de dois
seres. Vejo tudo quanto se passa em redor com olhos de uma criatura, vinda não
sei donde. O meu maior desejo agora era transformar-me num peixe e poder nadar
ao lado deles.... Sim, apetecia-me nadar, tal como os peixes que me seguem,
freneticamente e de perto. Ou ser ave marinha, voar por estes espaços
ilimitados afora.
Sinto-me leve, tão leve, que mal me apercebo do esforço que estou fazendo com o remo para manter a canoa na direção para o ponto onde os meus olhos se fixam no horizonte. Se não estivesse pegando nele, dir-se-ia que talvez me sentisse desintegrado deste mesmo ambiente. O leme funciona também como uma espécie de cordão umbilical, entre mim, o mar, o céu, o mundo azul que me envolve. Oh, mas os sentimentos e a realidade, são coisas bem diferentes – A realidade influencia os sentimentos, estes alteram-se mas a realidade física, segue o seu curso. Ainda se ao menos pudesse nadar ou correr, mas nem isso posso. Só através da mente.
Sinto-me leve, tão leve, que mal me apercebo do esforço que estou fazendo com o remo para manter a canoa na direção para o ponto onde os meus olhos se fixam no horizonte. Se não estivesse pegando nele, dir-se-ia que talvez me sentisse desintegrado deste mesmo ambiente. O leme funciona também como uma espécie de cordão umbilical, entre mim, o mar, o céu, o mundo azul que me envolve. Oh, mas os sentimentos e a realidade, são coisas bem diferentes – A realidade influencia os sentimentos, estes alteram-se mas a realidade física, segue o seu curso. Ainda se ao menos pudesse nadar ou correr, mas nem isso posso. Só através da mente.
Diário de Bordo 8 - Ah!
Se eu pudesse voar!...Se eu pudesse voar! eu voaria! sobre este mar!...Se eu
pudesse correr, correria, sobre estas vagas maravilhosas!...Azuis!... Mas não
posso. Meu corpo está preso neste espaço, limitadíssimo! Apertado!...
Meu espírito voa!...Não está apertado!...
Meu espírito neste momento está liberto, absolutamente livre!... Mais livre
ainda que as aves que por vezes aqui passam!...Mais livre, talvez, do que
quando elas se cruzam no
céu sobre mim...
A pequena vela da canoa, sobressai
airosamente!... Alegremente! Neste quadro grandioso. Neste cenário
maravilhoso!...De um azul imenso!...Belo! Fresco! Livre!...De um céu
límpido!...
TARDE LINDA MAS NÃO ESCAPA À
IMPLACÁVEL CORTINA DA NOITE – TANTO MAIS QUE NESTES MARES, O CREPÚSCULO É MUITO
RÁPIDO
O sol está
quase a pôr-se no horizonte, espalhando colorações suaves sobre a vastidão,
desde o amarelo dourado, ao rosa e ao vermelho vivo, passando ainda por tons de
um azul escuro ao verde-claro e transparente, num misto de tons e de cores, que
se refletem na curvatura ou na crista das ondas, conforme o mar vai ondulando,
ondula à incidência dos já moribundos raios solares. Os meus olhos, embora
cansados, não resistem ao apelo de tanta beleza.
Diário de Bordo 9 - É
já crepúsculo. O sol já se pôs. O mar mantém-se com uma ligeira ondulação. Há
uma certa brisa. O céu está descoberto; há umas nuvens cinzentas, de onde em
onde, no horizonte...Volto novamente a ver contornos da Ilha de Fernando Pó (Bioko),
já muito afastados, bastante afastados para
sueste!... Mas não vejo quaisquer contornos da misteriosa costa de
África....Mais uma noite que terei de passar aqui na canoa.
Tal como já tive ocasião de dizer, a
comida é muito pouca, só tenho uns restinhos de chouriço (para as iscas nos anzóis). E continuo com meia lata de farinha de
flocos de aveia (aí 100g). É a única coisa que disponho...Sinto umas ligeiras
dores de cabeça, talvez devido ao
sol e à água salgada que tenho bebido, por não ter tido água das chuvas, pois
não choveu....Cá ando... Mas apetecia-me realmente um copo de água.
NOITE CLARA DE LUAR MAS FRESCA E VENTOSA –
NÃO CONSEGUI PREGAR OLHO: UMA BELEZA ENGANADORA
Enquanto a
noite cai, a lua bafeja-me com um apaziguador sorriso branco, quase cheio, num
deslumbramento de serena e íntima amizade....Como não há sinais de chuva,
resolvi não tapar a canoa
com o plástico habitual. Prefiro continuar a contemplar o luar e o céu, que
agora está de um aveludado luzidio. E, quanto mais o perscruto, mais grandioso
e infinito ele se me mostra. A via láctea estende-se numa mancha nebulosa de
espessos montões de pontinhos fulgentes, que vão de um lado ao outro da imensa
abóbada celeste.
A noite é
equatorial mas o tempo refrescou e arrefeceu. Começou a soprar uma aragem
fresca. Durante a tarde fez muito calor, mas agora sinto arrepios de um
grande desconforto. Estou
deitado no fundo da canoa, com a capa vestida e coberto com uns plásticos, mas
estou com frio (pois também há sempre água a chocalhar por baixo da grade)
e sinto-me muito cansado. Gosto
de admirar o luar mas tenho as costas doridas e sou obrigado a deitar-me de
lado e a variar várias vezes de posição. Tenho experimentado, ora a ficar de
bruços, de lado, ora de costas, mas parece que não há maneira de me chegar o
sono. Por outro lado, o meu espírito mantém-se ainda demasiado possuído pelas
fantásticas sensações com que me presenteou a magnífica tarde. Mas também é do
que me valho. A brisa passou de fresca a ventosa e veio trazer uma agitação
inesperada à noite. A única alternativa que me espera é aguardar pacientemente
pela alvorada do novo dia.
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