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quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Golfo da Guiné - Odisseia numa piroga - 24ª Dia - É tubarão!!... Filho da mãe ainda não acabou de morrer!!...Olha lá, seu cão!!...Encheste-me todo cheio de sangue, eh!...Este é o maior de todos! Pesa mais de 20 quilos!!..

Algures no Golfo da Guiné, 13 de Novembro de 1975

Diário de Bordo - "Sinto dores  de cabeça, talvez devido ao sol e à água salgada (que bebo) pois não choveu...Cá ando... Mas apetecia-me um copo de água” - 



Amanhece. A claridade matinal começa a transparecer distintamente através das partes descobertas, que o oleado não cobre. A noite não me deu trabalho praticamente nenhum. Dormi descansadamente. Embora me tivesse levantado algumas vezes para pegar no vertedouro (pois existem rachas onde entra água) e fazer as observações de vigília habituais. O meu sono é como o dos gatos. Abro os olhos  ao menor ruído ou  desconfiança. Por isso, nestas condições, é muito difícil ter um sono completamente reparador.
Sim, mas não me está apetecer levantar-me. Sou dominado ainda por uma certa sonolência. Mas não; não vou fazer a vontade ao meu corpo, que bem precisava de um bocado mais de descanso, pois tenho andado com os sonos atrasados. Preciso de observar o que vai lá fora...Como sempre, as mesmas dores de costas. Olho o céu a todo o horizonte. Está cinzento. O sol não se vê mas já deve ter nascido há mais de uma hora. A canoa mal se mexe. Como não há vento suficiente para velejar, resolvo entreter-me a pescar. E a sorte começou logo cedinho a bafejar-me





Diário de Bordo 1 - O gaijo ainda não acabou de morrer!... É já manhã! É manhã do 24ª dia. Mal me levantei, lancei o anzol e pesquei logo um tubarãozinho!...O filho da mãe não há maneira de morrer!...O filho da puta!...O Cão!....É tubarão!!... Filho da mãe ainda não acabou de morrer!!...Olha lá, seu cão!!...Encheste-me todo cheio de sangue, eh!...Este é o maior de todos! Pesa mais de 20 quilos!!...Olha lá, ó tubarão! Eh tubarãozinho!!... Filho da mãe, levas umas machinadelas!...Custa a morrer!...Foi pescado com uma isca de chouriço! (os restos que me sobravam numa latinha, guardados para iscas)...Sim, senhor! Dois tubarões em menos de 5 minutos! A manhã do 24ª dia começa boa, sim senhor!...



 É claro que eu não venho à pesca do tubarão, mas não me importo de pescar mais, até porque acabo de deitar fora a carne (um deles) Para já, não sei se irei a necessitar dela.

  Fiquei imensamente satisfeito pela captura dos dois belos exemplares. Porém, embora me encontre,  praticamente sem alimentos, a minha satisfação é devida mais ao prazer da pesca em si do que a poder  renovar as reservas alimentares. A carne do tubarão é mal saborosa, tem um sabor esquisito. A pele é duríssima, quase impenetrável, tanto no dorso como no ventre. As  regiões de cada lado da cabeça, são os pontos mais vulneráveis. Proporciona belos pratos, mas cozido e à custa de uma porção de condimentos. O tubarão é uma autêntica carcaça, que depois de morto, entra imediatamente em decomposição. Deve-se esfolar logo após a sua captura. Aproveitei um deles e as barbatanas que guardo como troféus...O fígado é gostoso, aproveito-o sempre, mesmo cru.

Outro dos cuidados, que não posso descurar, logo que  sinta morder a isca, é puxar a presa o mais depressa possível para bordo, pois, quando não, acercam-se os grandes tubarões  e não tardam a deixar-me apenas com a linha na mão. E, antes do içar, tenho que lhe deferir alguns golpes do machim para o atordoar. Evitar o contacto pessoal, pois, mesmo quando parecem mortos, podem começar aos saltos, a estrebuchar e abocanhar o que encontram pela frente. Muito cuidado com as suas manobras. O tubarão é um bicho matreiro e de sete vidas, custa  a matar.Se eu dispusesse de anzóis e linha adequadas, era um fartote - Bastava até uma lata para servir de isco. Pois são atraídos por tudo que branqueie - e já vi que uma lata para eles é uma bolacha.. Mesmo de litro e com a serrilha da tampa aberta, engolem-na em três tempos. Assim, mais das vezes, desaparece o anzol e servem-se da linha para limpar talvez a ferocíssima  dentadura laminada

 

 Quanto às vísceras, é sempre um caso sério com elas. Mal se jogam ao mar, aparecem logo uns tantos a atirarem-se às cegas na sua direção.  Devoram-nas com estonteante sofreguidão e rapidez. Há quem diga que veem mal, que são orientados pelas vibrações e pelo seu apuradíssimo olfato, mais pelo cheiro do que pela visão. Dizem ainda os especialistas que, se uma pessoa cair ao mar, numa zona infestada de tubarões (como, aliás, é esta região equatorial), a melhor atitude a tomar é não fazer movimentos demasiados bruscos ou então avançar ao seu encontro. Nunca lhe virar as costas. Eles, como estão acostumados a que fujam deles, dão em debandada. Fala-se também que umas palmadas no focinho (a parte mais sensível) será  uma forma de os afastar. Mas, tudo isto, é relativo: há muitas espécies de tubarões e nem todos são assassinos - Nem todos atacam a canoa. De todo o modo, a manhã  - pelo menos em termos de pescaria, promete. Mas quem é que, aqui, em tais condições, pode ficar absolutamente tranquilo? Tranquilidade tem havido, por vezes, e até ao sublime, só que é tudo sempre muito efémero.



Diário de Bordo  2 – O céu está enevoado, não completamente, pois há nuvens que ameaçam chuva, lá longe, a leste, para os lados da Ilha de Fernando Pó...Aqui, para oeste, vejo umas nuvens brancas... Estou farto de olhar a ver se consigo vislumbrar qualquer contorno de terra (da costa africana), mas não....Não vejo nada... Enfim, mais um dia que tenho de enfrentar com calma.

Apelar à calma... Pois é...Mas a calma também tem os seus limites...Não há vento nenhum e eu bem desejava pôr a vela, mas é enervante, porque tenho de ficar em “árvore seca” – Eu, um simples mortal, perdido ao sabor das correntes. A linha circundante, entre o céu e o mar, é a mesma com que deparo todos os dias, nada mais me resta que o prazer e a doçura de agora respirar esta calma. Sou uma espécie de figura central do Universo. Mas de um Universo estático e morto


Diário de Bordo   Devem ser oito horas da manhã. Não há vento. Às vezes ele  vem com tanta força!... Agora não há vento...Enfim, teremos que aguentar... Sei lá!...Até que venha para aí uma trovoada.Em vistas disso, tive de tirar a vela e ficar à deriva...Sim, posso ler agora qualquer coisa, ouvir música sossegadamente... Mas até quando?!...É uma interrogação... Daqui a pouco aparece por aí alguma!...É sempre assim...Uma pequena pausa, logo a seguir um furor, uma violência... Só me faz pena é não poder pescar os belos peixes que aqui andam em volta. Não tenho isca para eles. Porque eles são belos, belos!




SEMPRE AS HABITUAIS  INCERTEZAS E INTERROGAÇÕES - Vertidas para o confidente gravador, guardado no contentor que se vê na imagem.



Diário de Bordo 4 -  São nove e tal da manhã. Pelos vistos, não me enganei....Já se está a aproximar uma trovoada de leste para oeste... Vejo já uma escuridão a aproximar-se com grande velocidade... Não tarda muito a chegar, com certeza...Mais um bocado de trabalho vou ter...

Tenho a impressão de estar a ver também uma mancha negra.... a noroeste...Não sei se serão acumulações de nuvens ou se será terra...



 DESTA VEZ AS NUVENS LÁ SE DESFIZERAM E DESVANECEU-SE A AMEAÇA.



Entretanto, a partir do princípio da tarde, o céu clareou e ficou limpo. Apenas uns dispersos farrapos algodoados , brilham a sua brancura imaculada, nalguns pontos do horizonte. Não surgiu o esperado mau tempo e o sol equatorial, que parecia querer ausentar-se, assestou os seus esplendorosos raios, em cheio, sobre mim.



Diário de Bordo 5  Devem ser aí três horas da tarde. Tem estado uma tarde magnifica!... Finalmente, não surgiram as trovoadas que eu esperava...Aliás, apareceram mas noutros sítios, aqui próximos...Apenas se sentiram ligeiros reflexos do vento, que, aliás, até me beneficiou, porque pude colocar a vela.



 Entretanto estou à deriva mas está uma brisa um bocadinho agradável. E, pelos vistos, é capaz de já me dar para poder velejar qualquer coisa. Vou experimentar de novo a vela.



Esta tarde vi uma baleia e uns barcos, muito afastados!...Apenas se viam os topos dos mastros...Aproveitei ainda para fazer  um bife de tubarão com auxilio de uma vela de cera.



 Neste momento, embora o céu se apresente descoberto, apenas umas nuvens brancas no horizonte, não vislumbro quaisquer contornos de terra. Nem Fernando Pó nem a costa de África. Não vejo qualquer sinal de terra.



VELA ERGUIDA, SINGRANDO EM CÉU E MAR AZUL  - EM  TARDE MAGNÍFICA!


O horizonte diluiu-se num débil fluído brancacento e luminoso. Na tarde de um céu límpido, glorioso e profundo, brilha o sol, que inunda o mar num luzeiro incrivelmente intenso, onde se reflectem  cores e tons da mais delicada e viva pureza.

 Estou de novo a velejar. Surgiu agora pelo meio da tarde uma brisa mais fresca que estou tentando aproveitar o melhor possível. Permaneço sentado sobre a ponte da popa com as mãos bem aperradas ao remo, procurando governar o rumo da frágil embarcação, que, com todo o pano enfunado, altiva e graciosamente vai cortando  as espumosas e engrinaldadas ondas

Diário de Bordo 6 – Aí está a canoa a navegar sobre um mar azulíneo! De um azul muito clarinho!....É muito agradável, neste momento!...Está realmente uma tarde muito agradável!... Espero que a noite também seja...Mas não sei....
Estou farto de olhar para o horizonte a ver se vejo qualquer contorno; não vejo nada! A costa africana continua a ser baixa nesta zona. Apetecia-me realmente tomar um banho nesta água, tão límpida... É pena!....Os meus martelos, não me deixariam, com certeza, em paz.... E daí, não sei... Eles andam aqui às voltas, aos saltos...Acompanham-me!....Porque eles estão quase  todos marcados com machinadas no dorso e no entanto continuam a acompanhar-me.

 É realmente uma tarde muito agradável!...O mar!.... Este mar!!...Ligeiramente ondulado, de um azul clarinho!...Estou a ouvir música africana...Enfim, para condizer com o ambiente, já que estou próximo de África.

 A CANOA ESTÁ A PORTAR-SE MUITO BEM

A minha canoa, lá vai  vencendo o dorso e a cava das ondas, que se enrolam e desfazem, vibram e espumam de fulgor.  Apesar de alguns balanços, denota segurança e equilíbrio satisfatório. O andamento não é veloz mas é encorajador, anima-me o espírito e reforça a minha esperança.

Diário de Bordo 7  Serão aí quatro horas da tarde. Mas que tarde tão maravilhosa!...Que cenário grandioso este!...Céu azul! Mar azul!...De um azul lindo!..Belo! Belo!!... As vagas brilham, a canoa desliza suavemente!... É verdade... Os  peixinhos, aqueles que são os parasitários que andam sempre aqui  a catar as pequenas conchas que aparecem na canoa, eles também acompanham, estão a fazer toda a ginástica!...Os outros peixes, o martelo, igualmente...É agradável!...Não tenho palavras para expressar  quanto satisfação, quanto prazer sinto no meu peito!...Ah, que imensidão!... Que alegria!....Tudo isto é belo, é belo!...Apenas uma brisa, muito leve, imperceptível, se sente, mais nada!...O mar é dourado! É prateado!...De uma cor linda!...
Estou com uma ligeira dor de cabeça e dor de costas, mas, só o prazer, o ambiente, esta coisa que eu sinto! me faz esquecer as dores de cabeça.


O sol dardeja sobre mim, como farpas abrasivas, mas não faço caso. Sinto-me preso e absorto pelo ambiente que respiro à minha volta. O passado para mim, agora é como se não existisse. Não faz parte dos meus pensamentos. E o futuro também agora não me preocupa. Vivo o presente. Os meus olhos não encontram senão plenitude. Pressinto que pertenço a outra realidade cósmica, diferente daquela donde parti. Sinto-me outro ser. Mais, concretamente, um duplo ser. Humano, talvez só na aparência, porque, no fundo, tenho consciência que sou a fusão de dois seres. Vejo tudo quanto se passa em redor com olhos de uma criatura, vinda não sei donde. O meu maior desejo agora era transformar-me num peixe e poder nadar ao lado deles.... Sim, apetecia-me nadar, tal como os peixes que me seguem, freneticamente e de perto. Ou ser ave marinha, voar por estes espaços ilimitados afora. 

Sinto-me leve, tão leve, que mal me apercebo do esforço que estou fazendo com o remo para manter a canoa na direção para o ponto onde os meus olhos se fixam no horizonte. Se não estivesse pegando nele, dir-se-ia que talvez me sentisse desintegrado deste mesmo ambiente. O leme funciona também como uma espécie de cordão umbilical, entre mim, o mar, o céu, o mundo azul que me envolve. Oh, mas os sentimentos e a realidade, são coisas bem diferentes –  A realidade influencia os sentimentos, estes alteram-se mas a realidade física, segue o seu curso. Ainda se ao menos pudesse nadar ou correr, mas nem isso posso.  Só através da mente.



Diário de Bordo 8 - Ah! Se eu pudesse voar!...Se eu pudesse voar! eu voaria! sobre este mar!...Se eu pudesse correr, correria, sobre estas vagas maravilhosas!...Azuis!... Mas não posso. Meu corpo está preso neste espaço, limitadíssimo! Apertado!...



Meu espírito voa!...Não está apertado!... Meu espírito neste momento está liberto, absolutamente livre!... Mais livre ainda que as aves que por vezes aqui passam!...Mais livre, talvez, do que quando elas  se cruzam no céu sobre mim...

A pequena vela da canoa, sobressai airosamente!... Alegremente! Neste quadro grandioso. Neste cenário maravilhoso!...De um azul imenso!...Belo! Fresco! Livre!...De um céu límpido!... 



TARDE  LINDA MAS NÃO ESCAPA À IMPLACÁVEL CORTINA DA NOITE – TANTO MAIS QUE NESTES MARES, O CREPÚSCULO É MUITO RÁPIDO



O sol está quase a pôr-se no horizonte, espalhando colorações suaves sobre a vastidão, desde o amarelo dourado, ao rosa e ao vermelho vivo, passando ainda por tons de um azul escuro ao verde-claro e transparente, num misto de tons e de cores, que se refletem na curvatura ou na crista das ondas, conforme o mar vai ondulando, ondula à incidência dos já moribundos raios solares. Os meus olhos, embora cansados, não resistem ao apelo de tanta beleza.

Diário de Bordo 9 - É já crepúsculo. O sol já se pôs. O mar mantém-se com uma ligeira ondulação. Há uma certa brisa. O céu está descoberto; há umas nuvens cinzentas, de onde em onde, no horizonte...Volto novamente a ver contornos da Ilha de Fernando Pó (Bioko), já muito afastados, bastante afastados  para sueste!... Mas não vejo quaisquer contornos da misteriosa costa de África....Mais uma noite que terei de passar aqui na canoa.
Tal como já tive ocasião de dizer, a comida é muito pouca, só tenho uns restinhos de chouriço (para as iscas nos anzóis). E continuo com meia lata de farinha de flocos de aveia (aí 100g). É a única coisa que disponho...Sinto umas ligeiras dores de cabeça, talvez devido  ao sol e à água salgada que tenho bebido, por não ter tido água das chuvas, pois não choveu....Cá ando... Mas apetecia-me realmente um copo de água.

NOITE CLARA DE LUAR MAS FRESCA E VENTOSA – NÃO CONSEGUI PREGAR OLHO: UMA BELEZA ENGANADORA

Enquanto a noite cai, a lua bafeja-me com um apaziguador sorriso branco, quase cheio, num deslumbramento de serena e íntima amizade....Como não há sinais de chuva, resolvi não tapar a  canoa com o plástico habitual. Prefiro continuar a contemplar o luar e o céu, que agora está de um aveludado luzidio. E, quanto mais o perscruto, mais grandioso e infinito ele se me mostra. A via láctea estende-se numa mancha nebulosa de espessos montões de pontinhos fulgentes, que vão de um lado ao outro da imensa abóbada celeste. 

A noite é equatorial mas o tempo refrescou e arrefeceu. Começou a soprar uma aragem fresca. Durante a tarde fez muito calor, mas agora sinto  arrepios de um grande desconforto.  Estou deitado no fundo da canoa, com a capa vestida e coberto com uns plásticos, mas estou com frio (pois também há sempre água a chocalhar por baixo da grade) e sinto-me muito cansado.  Gosto de admirar o luar mas tenho as costas doridas e sou obrigado a deitar-me de lado e a variar várias vezes de posição. Tenho experimentado, ora a ficar de bruços, de lado, ora de costas, mas parece que não há maneira de me chegar o sono. Por outro lado, o meu espírito mantém-se ainda demasiado possuído pelas fantásticas sensações com que me presenteou a magnífica tarde. Mas também é do que me valho. A brisa passou de fresca a ventosa e veio trazer uma agitação inesperada à noite. A única alternativa que me espera é aguardar pacientemente pela alvorada do novo dia.

Férias em São Tomé - GeoStar


Não há regresso ao mar sem barcos - Opinião - DN.....As descobertas são o período da história que hoje parece dizer mais aos portugueses, mas nem sempre foi assim. Se a escola não mudar, ..Serie Mar Português: Continuamos es

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