23º Dia -Vi uma borboleta! Tudo leva a crer que não deva estar muito afastado de terra...
Algures no Golfo da Guiné, 12 de Novembro de 1975
"Tive agora a visita de uma
avezinha... que vêm aqui pernoitar à proa e à popa.... Há um pormenor curioso:
é a existência de uma borboleta... Vi uma borboleta!... Tudo leva a crer que
não deva estar muito afastado de terra."Diário de Bordo 7
No dia em
que, surpreendentemente, tive a visita de uma pequena borboleta - Mas que
graciosa surpresa tremulando e dançando na borda da minha canoa! Nem queria
acreditar, que tão frágil inseto ali estivesse a latejar o colorido das
suas etéreas e minúsculas asas. Que mensagem amiga, ao fim daquela
tarde, teria tão delicada mariposa para me comunicar?!...Sim, para uma
pobre criatura humana que andava por ali perdida, ignorada e esquecida de todo
o mundo, sem asas e sem saber ao menos em que ponto daquele vasto golfo
se encontrava ou aonde podia ir aportar.. Ainda hoje é a interrogação que
persiste no meu pensamento. Pois jamais me esquecerei daquela presença
tão inesperada e tão subtil: só a pernoitar ou para me encorajar? - É um segredo
que só ela o poderia explicar.
Hoje presumo
que tenha sido a espantosa migradora borboleta monarca, capaz de fazer 100 km
de voo e percorrendo milhares de quilómetros .A
longa viagem das borboletas-monarca Mas não tenho a certeza. Ou, então,
alguma borboleta que fosse pousando nos troncos e noutros destroços que flutuam
nos mares. Há, porém, estudiosos que defendem que, mesmo as borboletas
vulgares, voam grandes distâncias nos oceanos - Claro que fiquei muito contente
com a sua aparição, pois acalentou-me a esperança de que não deveria estar
muito longe de terra
"As borboletas são decerto os insetos mais
conhecidos e admirados. Fazem parte da ordem dos lepidópteros, uma das mais
numerosas da classe dos insetos. Atualmente conhecem-se cerca de 150000 espécies,
prevendo-se a existência de um número bastante superior. São insetos bastante
cosmopolitas, podendo existir desde o Equador até às regiões polares. No
entanto, são as espécies das regiões tropicais as mais exuberantes, quer pelas
suas dimensões quer pelos seus tons brilhantes e metalizados" Bailarinas
Caleidoscópicas - As Borboletas
"As borboletas são o grupo mais popular
dos insetos. Admiradas desde sempre pela sua beleza e elegância, elas foram colecionadas
durante séculos, tendo sido alguns colecionadores os primeiros a dedicarem-se
ao seu estudo científico." Origem
e Evolução das Borboletas
Tal como referira em anteriores postagens, estava-se em plena época das chuvas, altura menos indicada para se navegar no Golfo da Guiné. Excetuando a Gravana, na época das chuvas ou há podres calmarias ou súbitos tornados – Tem havido grandes alterações climáticas. Pelo menos era assim o mar há 37 anos.
Eu não
contava navegar de novo por estas águas - voltar a percorrer este vasto braço
de mar - pois já fizera os testes que desejava: viagem de São Tomé ao Príncipe,
3 dias e a viagem de São Tomé à Nigéria 13, concluídas com êxito. Mostrara que
era possível as canoas terem ligado o continente africano e as ilhas do Golfo,
há muitos séculos e feito o povoamento, muito antes de homens de outras
civilizações, ali terem desembarcado. Sim, pelos menos nos arquivos históricos,
já foram encontrados mapas anteriores à colonização(ver ILHAS
ASBEN E SANAM deste site) O meu objetivo era rumar, agora
do sul de Ano
Bom para oeste e
deixar esta área do Golfo o mais depressa que pudesse, rumo à costa brasileira,
através da corrente equatorial, seguir a antiga rota da escravatura, evocar
esses tempos ignominiosos, lembrar que ainda persistem sob várias formas,
reforçar a tese de que as canoas são capazes de lograr grandes distâncias e
prosseguir a experiência de Alain
Bombard.
De S. Tomé a Ano Bom - 3 dias a bordo do Hornet - |
Porém, o comandante do pesqueiro, que se comprometera largar-me nessa zona, fintou-me os planos Ao chegar àquela ilha, colocou-me num dilema: ou abandonava a canoa e ficava a bordo a trabalhar ou tinha que meter-me dentro dela e seguir o destino que quisesse. Na impossibilidade de alcançar a grande corrente, decidi empreender o regresso a S. Tomé e tentar a travessia noutra oportunidade.
Mas, no mar,
tudo é imprevisível. Quando menos se espera, a natureza surpreende-nos: um
violento tornado, logo na primeira noite, provocar-me-ia a perda da maior parte
dos utensílios, água e alimentos. Improvisaria um remo, com alguns bocados
arrancados da cobertura nos bordos, fixados a um dos barrotes do estrado da
canoa, mas de pouco ou nada me haveria de valer. A maior parte do tempo, era
passado à deriva, ao sabor dos ventos e das correntes.
No interior de um caixote de plástico (igual aos
caixotes do lixo) preservara a máquina fotográfica, livros, um pequeno
transístor, com o qual poderia ouvir algumas estações de rádio africanas,
inclusivamente, a Rádio
Nacional de São Tomé e
Príncipe– sim, enquanto não se me acabaram as pilhas.
Balanceado para todos os quadrantes, conforme as direções
das correntes e da violência das tempestades, perscrutava o horizonte vezes sem
conta. Procurando saber se por detrás das nuvens havia algum perfil de terra.
Oh, enganei-me tantas vezes!....Nada me passava despercebido. Um dia até agitei
a minha capa a um avião que passava, lá bem no alto dos céus e também a um cargueiro
que quase me ia abalroando, tendo passado a menos de cem metros de mim,
ignorando-me completamente, mais me parecendo um autêntico fantasma.
Seguia com atenção o rumo dos barcos que via no
distante horizonte. Mesmo que ecoasse apenas de lá um simples ruído dos seus
motores ou algum leve marulho das suas hélices. Olhava e seguia o voo das aves
como o perdigueiro segue o voo das perdizes.
No interior de um caixote de plástico (igual aos
caixotes do lixo) preservara a máquina fotográfica, livros, um pequeno
transístor, com o qual poderia ouvir algumas estações de rádio africanas,
inclusivamente, a Rádio
Nacional de São Tomé e
Príncipe– sim, enquanto não se me acabaram as pilhas.
Balanceado para todos os quadrantes, conforme as direções
das correntes e da violência das tempestades, perscrutava o horizonte vezes sem
conta. Procurando saber se por detrás das nuvens havia algum perfil de terra.
Oh, enganei-me tantas vezes!....Nada me passava despercebido. Um dia até agitei
a minha capa a um avião que passava, lá bem no alto dos céus e também a um cargueiro
que quase me ia abalroando, tendo passado a menos de cem metros de mim,
ignorando-me completamente, mais me parecendo um autêntico fantasma.
Seguia com atenção o rumo dos barcos que via no
distante horizonte. Mesmo que ecoasse apenas de lá um simples ruído dos seus
motores ou algum leve marulho das suas hélices. Olhava e seguia o voo das aves
como o perdigueiro segue o voo das perdizes.
Qualquer
mudança na cor das águas e vestígio material que surgisse à superfície do mar
(mesmo os grânulos de crude - bastantes havia - e manchas de óleo) cocos,
ervas, folhas de coqueiros, troncos ou umas simples tábuas, eram, para mim,
sempre objeto de atenta observação e ponderada reflexão: procurava saber donde
vinham ou para onde iam. Por vezes, constatava que surgiam em pequenas
correntes, tão sinuosas, tão estreitas e com tantas curvas, como se fossem
verdadeiros rios em terra. Aliás, nas calmarias era nos seus leitos para onde
também ia sendo arrastada a minha canoa. Numa ocasião, foi um cardume, que me
envolveu e arrastou no meio de toda a sorte de despojos, seguindo a direção que
tomava - desde o meio da tarde até altas horas da noite – Sim, ou não fosse eu
também um mero despojo ou madeiro ao deus dará - Eis o retrato, por palavras,
vertidas espontaneamente, de quando ainda tinha mais 15 penosos dias pela
frente, até acostar à Ilha Bioko da República
da Guiné Equatorial- suportando
a fome e a sede - Pois, à falta de água das chuvas, tive que valer-me da água
do mar e, às tantas, também deixei de pescar: várias rémoras fixaram -se
coladas ao bojo da piroga, partiam-me as linhas com os seus dentes de lâminas,
comiam a isca e deixaram-me sem anzóis, pois não ficavam lá presas. Algum que
apanhava - e com infinita paciência - era à mão.
Não tinha quaisquer meios de comunicação com o exterior ou de navegação científica; só de bússola. Nunca sabia onde estava mas a direção que tomava. Dispunha de um pequeno gravador, no qual ia fazendo o registo do meu diário de bordo – De seguida, vou transcrever alguns dos excertos, alusivos ao 23º dia, a 12 de Novembro de 1975
Não tinha quaisquer meios de comunicação com o exterior ou de navegação científica; só de bússola. Nunca sabia onde estava mas a direção que tomava. Dispunha de um pequeno gravador, no qual ia fazendo o registo do meu diário de bordo – De seguida, vou transcrever alguns dos excertos, alusivos ao 23º dia, a 12 de Novembro de 1975
Diário de Bordo 1- Já é manhã do 23º dia. O mar manteve-se
calmo, não choveu. Dormi mais ou menos tranquilamente, embora tivesse acordado
algumas vezes para observar o ambiente. Agora está a trovejar...é capaz de vir
uma trovoada, não tardará muito tempo!...O céu, em todo o horizonte, está
carregado de nuvens espessas. O mar não tem qualquer ondulação. Está muito
calmo...Tudo leva a crer que, dentro de pouco tempo, tenha aí uma trovoada. Só
peço a Deus que ela venha de sul para norte – Aliás, eu estou a sentir o trovão
lá para o sul. A fim de ser puxado para norte...Não me vá acontecer como ontem
que fui arrastado para sul.
Parece que esta noite foi a primeira vez
que dormi qualquer coisa, visto
que a canoa não fez grandes movimentos, embora
estivesse acordado algumas vezes. Mas estou convencido que hoje vou ter muito
trabalho.
Não posso deixar de fazer referência aos
meus fiéis guardadores (os azuis e os dourados). Aliás, não sei quais são as
suas intenções...Mas, enquanto aqui se mantêm, não aparecem aqui os vorazes,
aqueles escuros! Que costumam atacar a canoa!...Isto já é uma grande
coisa!...Outro pormenor curioso é que, esta manhã, captei a rádio da Nigéria,
um posto de Calabar. Já a tenho ouvido mas em más condições.
Diário de Bordo - Parece-me que já era
merecedor de chegar a terra..Visto já tantos sacrifícios enfrentei,
suportei!...Tantas dificuldades!...Espero que realmente esta força superior,
essa força sobrenatural, que até agora me tem protegido, me leve a terra o mais
depressa possível...
Sei que a minha canoa agora está mais ou
menos seca, mas, dentro de pouco tempo, quando chover, vai ficar uma
banheira!...Isso não me importa; o que importa é que ela seja arrastada para
bom caminho...
Outro pormenor que desejo ainda acentuar é
que, neste momento, não vejo a Ilha de Fernão de Pó. O horizonte, em todo o
limite, apresenta-se completamente cinzento. Não sei se por isso ou por estar
mais afastado
Mapa das
quatro ilhas do Golfo da Guiné - Eu fui largado na ilha mais a sul -. A 350 km
da costa oeste do continente africano e 180 km a sudoeste da ilha de São Tomé - Só dependia de
mim - Se precisasse de ser socorrido, ninguém mais me poderia valer. Não tardou
a que me visse no centro de um círculo a perder de vista: Mar!...Mar!... Céu e
Mar!... Era o que os meus olhos tinham sempre por companhia.
Diário de Bordo 2- Tal como previra, surgiu o
tornado!...Desta vez veio de nordeste...Mas coloquei a vela, conforme ontem
tinha chegado à conclusão, e até agora tem resultado, a canoa em vez de ser
arrastada pelo tornado de nordeste para sudoeste, enfrenta o tornado, ou, pelo
menos, fica ligeiramente de proa à vaga...É extraordinário!...Até agora tem
dado resultado!... As vagas são realmente alterosas!...Algumas têm entrado na
canoa mas a canoa tem-nas enfrentado!... Pelo menos com mais facilidade que das
outras vezes!... Portanto, é sempre bom colocar uma vela. A canoa, sem ela,
fica mais à mercê das vagas!...Com uma pequena vela, porta-se um pouco
melhor!...É a conclusão que eu chego... O mar está muito agitado!... Deixou de
chover, mas o mar ainda está bastante cavado! O pior, porém, parece já ter
passado.
De tal maneira resultou a experiência com a vela, que até tenho tido oportunidade, ao mesmo tempo de controlar os movimentos da canoa com o corpo e, simultaneamente, aproveitar alguma água, porque já não tinha nenhuma água das chuvas!... Inclusive, até pude fazer fotografias, num temporal destes!...Coisa que nunca tinha feito até agora.
Diário de Bordo 3 - Devem ser umas nove ou dez horas do 23º
dia de viagem de canoa. O mar ainda está muito encrespado, muito agitado!...
A experiência resultou... Quer dizer,
prendi a vela numa certa posição e consegui que a canoa não fosse totalmente
arrastada pelas trovoadas, pelas vagas...Como disse, ficou mais ou menos de
proa à vaga, sem portanto ter necessidade de utilização do remo...Aliás, era
impossível, que só com o remo o pudesse fazer...De qualquer maneira, eu sei que
a canoa, pelo movimento dela, está sendo arrastada para noroeste...Aliás,
também me interessa... é um rumo que me leva também à Nigéria.
Já tive aqui a visita de uma garça!...Ora,
uma garça, só anda próximo de terra...Portanto, não devo estar muito afastado
de terra...
A canoa está toda alagada em água, e eu
também, evidentemente. Mas há um pormenor curioso: tinha ali uma latinha de
Nescafé, caiu e tingiu a água toda!... Quer dizer, o fundo da canoa está
totalmente escuro!... Eu, há pouco, estava a achar estranho... e verifiquei que
era realmente da lata de Néscafé que tinha caído e entornado.
Disponho de pouca comida... Tenho ali uma
latinha de flocos de aveia, que aliás aprecio muito... E a água das chuvas que
consegui aproveitar...Vamos lá a ver onde eu irei ter...
As nuvens
negras fizeram o seu trabalho sobre o meu corpo, descarregando bátegas de
uma forte chuvada. Rodopiaram com os ventos, que terão ido assolar outras
áreas do oceano. O tempo amainou para uma ligeira brisa. É hora da canoa
voltar a transformar-se num pacífico estendal: de colocar a roupa molhada a
secar – E de voltar a fazer o balanço do dia.
Diário de Bordo 4 - Devem ser neste momento duas horas da
tarde. O mar está a ficar mais calmo...Já não há vento, deixou de
chover...Mantém-se uma certa ondulação. O pior já passou...
Sinceramente, não sei onde estou!... E não
sei para onde vou!... Sinto-me muito cansado!... Tenho os pés e as mãos muito
gretadas!....Sinto-me um bocado fraco... de tanto lutar com a tempestade!...
Porque, de facto, se não fosse a trovoada...enfim, eu conseguia viver em
condições...Talvez agradavelmente!...Mas vêm as trovoadas que me deixam
arrasado!... É preciso ter muita calma para enfrentar estas situações!....
Neste momento, tudo voltou à
normalidade...Mas... depois não sei o que me volta a esperar!... A terra, para
mim, ainda continua a ser uma incógnita!...Eu sei que as correntes me hão-de
arrastar para lá, custe ou que custar!... Quando?!...Não sei!...Pode ser logo,
amanhã, depois!...Daqui a dez dias, não sei!...Não faço ideia!...Mas continuo a
esperar , a esperar e a confiar que possa ir ter a terra...
Entretanto, vou ligar o meu pequeno rádio
para escutar um bocadinho de música e me distrair um pouco, visto ser a única distração
que disponho
MUITOS PEIXES EM
VOLTA, IMENSAMENTE DIFÍCIL A PESCARIA – Farto-me de fazer lançamentos e mais
lançamentos para ver se consigo captar alguma dourada e não há meio de as
atrair ao anzol. Tentei improvisar um arpão, fixando um anzol na extremidade de
um barrote, mas risca-lhe o dorso e não as prende. Portanto, as presas mais
importantes, até agora, continuam a ser os esqualozitos. Os grandes, esses, mal
vêm o brilho do anzol, lançam-se a ele mas depressa trincam a linha e lá
continuam no seu contínuo rodopio.
Diário de Bordo 5 - Quanto
às possibilidades de pesca (dourada fêmea e dourada macho) não são pescáveis,
pelo menos não vão à isca que eu tenho... Deixei de pescar os tais tubarões
perigosos...Quer dizer, eu tenho pescado dos pequenos, mas eles deixaram de
aparecer... De qualquer maneira, não tenho saudades deles porque eles são
maus!...
A tarde,
entretanto, vai descaindo calma e silenciosa. Haverá talvez ainda uma hora de luz solar. Sento-me no
fundo da canoa, a qual mal estremece, fitando o pensativamente o céu.
Apenas uma ou outra névoa branca, de vez em quando passa à deriva diante do
sol. A brisa continua suave. É como se nada existisse, tal é a imobilidade em
que tudo se concentra. Nem o mais débil ruído. É o absoluto desamparo da nudez
azul, plácida, imensa. Onde até os rumores e o silêncio marítimo, denotam a sua
ausência. Onde nem a presença de Deus parece derramar já a sua divina graça, mas
ascende, expande-se e transborda até os limites do infinito, um imenso
círculo de absorvente abandono e pacífica monotonia.
Mesmo os
peixes, parecem ter desaparecido. O azul do mar perdeu a sua ondulante e
voluptuosa juba branca Todavia, eu sei que esta ausência de vida é apenas
aparente. Por baixo dos meus pés e a menos de um palmo, há milhões de lutas,
que se debatem, ferozmente. Porém, à flor deste imenso tapete líquido, tudo
parece morto e silencioso, nem a mais fugidia manifestação dessa tremenda luta
pela sobrevivência. Não estou desencorajado mas perpassa-me pela minha mente um
turbilhão de pensamentos. Tudo o que me aconteceu nas últimas horas,
absorvo-me e mistura-se com as mais esquisitas ideias. As minhas reações
não param de variar. Porto-me como se fosse um termómetro do tempo. Só que
agora o tempo, aqui, mantém-se estranhamente parado e inalterável. A calmaria,
por tão absurda, torna-se inquietante e as estreitas paredes da minha canoa,
são ainda o limite do meu mundo físico - Não há bulício de vida algum. Senão a
oferenda da mais despojada e solitária quietude flutuante
Diário de Bordo 6 - Digam lá o que disserem, a experiência
do homem solitário no mar é terrível!... É extremamente terrível!... O homem é
um ser comunitário!... É um ser social!...Viver isolado, viver entre as vagas,
viver nesta solidão!...Não!... O homem não pode viver assim!...O homem!...
(choro) Eu sinto-me homem, meu Deus!... É terrível isto!... Como é terrível
isto!..
CANOA AMIGA, CANOA MINHA COMPANHEIRA E CONFIDENTE
A minha canoa
tem vida própria. Inspira ou expira ofegante e ritmicamente, conforme mergulha
mais a fundo ou aflora a superfície a sua proa. Absorve ou expele o líquido em
que navega. Fica com o corpo mais quente ou mais frio se chove ou faz sol. Geme
ou faz baque-baque se as vagas a tocam de mansinho ou se a ferem ou vergastam
com furor. É um ser como outro qualquer. Tranquiliza-se com as calmarias mas
padece, enormemente, com as constantes rabanadas e safanões do mar. Suporta com
notável estoicismo e resignação todas as adversidades. Os seus gemidos ou
baques, nunca refletem desespero mas aquietação. Frágil mas de uma paciência
que parece não ter limite. Até agora tenho confiado nela. Espero que não
me dececione.
Diário de Bordo 7 - Agora,
falando da minha canoa e do que trouxe: a canoa é feita num tronco de oca, tem
a largura de um metro, 60 cm de altura, e, de comprimento, cerca de sete
metros. Trazia comigo quatro velas, agora só disponho de duas, por sinal das
mais fracas...Trazia um refletor de radar, que é uma chapa de alumínio, muito
vulgar, com uma determinada forma, já o perdi...(colocada no topo do mastro). Trazia uma série de alimentos, a maior
parte deles, perdi-os...Disponho, apenas, neste momento de uma pequena lata de
chouriço (uns restitos
para as iscas) e uma
lata, já aberta de flocos de aveia (aí uns 200gramas). Tenho um plástico onde
trouxe vários livros comigo, mas tenho tido pouca oportunidade de ler, visto o
mar não ter deixado fazê-lo. Trazia três remos, perdi os maiores e fiquei
apenas com o mais pequeno que não me dá para nada. Trazia um leme, perdi-o. A
canoa está pintada de vermelho nos bordos, à proa e à popa, onde tem uma
pequena ponte.
O corpo está pintado de azul (gentileza dos marinheiros do Hornet, nos
três dias que passei a bordo). À frente tem a palavra São Tomé e uma inscrição que os
marinheiros do pesqueiro Hornet, lhe fizeram e a palavra LOVE, símbolo da paz e
do amor...Conservo as barbatanas dos tubarões que tenho pescado. Disponho de
duas bússolas e de uma lanterna, um radiozinho com que ouço música e me vou
entretendo às vezes. Trazia duas toalhas, já perdi uma. A roupa que trazia (a
maior parte em mau estado) ainda a tenho quase toda.
Diário de Bordo - Trazia ainda comigo umas bananas e
uns cocos, também já não tenho
nada - em troca de algumas latas de conserva
com os pescadores na ilha de Ano Bom, quando o pesqueiro esteve fundeado ao
largo e subiram ao convês: uns comi-os, outros, convencido que
demoraria pouco tempo, deitei-os fora. Foi uma precipitação minha (sim, quando a canoa foi assolada pelo
tornado). Tinha várias
coisas...olhando para a minha canoa, está praticamente vazia....dando um
aspecto de verdadeiro abandono... tal como realmente me encontro...
O sol já se pôs, creio eu... Pois o tempo continua
cinzento, o mar e o céu confundem-se numa cor única.
Tive agora a visita de uma avezinha... que vêm aqui pernoitar
à proa e à popa.... Há um pormenor curioso: é a existência de uma borboleta...
Vi uma borboleta!... Tudo leva a crer que não deva estar muito afastado de
terra.
Não sei, efetivamente, até que distância as borboletas voam sem
pousar. No entanto, como têm aparecido vários paus à deriva, pode muito bem ter
acontecido ou que tenham vindo pousadas no seu arrastamento ou talvez feito
desses despojos, o seu campo de descanso e de aterragem para outros voos, tal
como fazem certas aves marinhas. Paira por todo o lado uma densa neblina.
Já não se sabe onde acaba o mar e começa o espaço. É noite no mar.
Diário de Bordo 8- Neste momento é noite do 23ª dia. São oito horas da
noite. Estou a ouvir o programa do ouvinte da Rádio Nacional de São Tomé e
Príncipe. É uma das estações que aqui se conseguem ouvir em melhores condições....Tive
que dar outra posição à canoa, porque a canoa está desequilibrada, não está bem
construída e tem que ter determinada posição em relação às vagas e às
correntes....A noite, não é muito clara; tem o céu mais ou menos coberto e o
luar pouco luminoso, dada a existência de nuvens. O mar mantém-se calmo.
O sol, no seu esplendor, por vezes é
insuportável mas anima e reconforta. E, quando nasce, é pois para onde se
encaminha logo o meu olhar. Claro que nem sempre o posso contemplar: umas vezes
é porque se esconde por detrás das nuvens, outras, quando está mais brilhante e
resplandecente, é porque tenho de me proteger dos seus raios e não o posso
fitar. Porém, quando se despede no mar e sobrevém a noite, com o céu carregado
de nuvens, oh Deus!... Como negra e triste é noite!...E que saudades me
deixam os seus raios! Que nostalgia, logo me ocorre e me invade
"Sou miséria, sou treva e dor sem fim.
Todo eu sou dor e morte. Sou fraqueza.
Sou o enviado da Sombra. Ao mundo vim
Pregar a noite, a lágrima, a incerteza.
A flor que para mim emudeceu,
Neste deserto infinito de tristeza"
Teixeira de Pacoaes - de: A minha dor
Todo eu sou dor e morte. Sou fraqueza.
Sou o enviado da Sombra. Ao mundo vim
Pregar a noite, a lágrima, a incerteza.
A flor que para mim emudeceu,
Neste deserto infinito de tristeza"
Teixeira de Pacoaes - de: A minha dor
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