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quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Odisseia no Golfo da Guiné - 25º dia. Estou cheio de sede e de fome. Não tenho praticamente água. A água que disponho, aí meio litro, é quase toda do mar. (...) Tomei há pouco uns comprimidos, umas vitaminas, por isso tenho o estômago a saber a comprimidos...É bastante chato... (..) Quanto à costa de África, tenho tido apenas ilusões, ilusões!... Ilusões de terra!...


Algures no Golfo da Guiné, 14 de Novembro de 1975

Diário de Bordo  - 1 Diário de Bordo - É manhã do dia 25 que viajo na minha canoa...De noite não dormi muito. Pois estive quase sempre acordado...O mar esteve bastante agitado, aliás, continua com uma ondulação muito forte e um vento dominante de sul-norte.. 



Eu acredito que agora vá ter a terra, uma vez que voltei a sentir os ventos dominantes... Aquela fase das trovoadas, dá-me a impressão que já deve estar ultrapassada...Não sei, mas deve de ter sido a fase de lua-cheia; o quarto-crescente é que me deu esses trabalhos todos. Por isso, vou pôr já imediatamente a vela a ver se adianto mais um bocado. Porque, realmente, a canoa assim já se desloca muito bem. Ela durante a noite deve ter sido muito arrastada...Vê-se que há muita calema!... Esta calema arrasta-a também . Arrasta-a, exatamente, com as correntes.



Olhando para o horizonte, não descortino ainda a terra, nem vejo a Ilha de Fernando Pó. Não vejo absolutamente quaisquer vestígios de terra. Mas tenho um pressentimento de que não devo estar  muito longe, até porque, o andamento que tem estado a ter, devido à força das vagas, é possível que não esteja muito longe de terra... Estou preocupado um bocadinho, porque a canoa continua a meter água pela carlinga, pois os pregos (onde encaixava a vara do mastro) atingiram o fundo. Por outro lado, notam-se algumas fraturas e podem realmente de um momento para o outro provocar roturas maiores...oxalá que não. Que isso não me aconteça... 

Diário de Bordo  - 2  Já é quase  meio-dia. Estou já a velejar com a vela grande. O mar tem estado ligeiramente ondulado. Corre uma certa brisa mas ainda é bastante fraca...Sinto-me muito cansado, cheio de sede, tenho pouca água e pouca comida!... A água que tenho, a maior parte é  água salgada, (misturada com a das chuvas) pois entretanto não choveu... e eu estou sem água.

Está um calor de morrer !.. Transpiro por todos os poros.... Está realmente bastante calor. Bastante!... Apetecia-me agora um banho de água fresca , mas tal não é possível neste mar.



- Na imagem ao lado, o meu baú (um caixote do lixo onde guardava o gravador, com que registava o meu diário de bordo) e  o remo improvisado, com um pau e alguns pedaços arrancados à pequena cobertura dos bordos, que tivera de construir devido à perda do remo da canoa, que o  tornado da primeira noite me  havia levado

Diário de Bordo  - 3  São neste momento, cerca das duas da tarde do 25º dia. Estou cheio de sede e de fome. Não tenho praticamente água. A água que disponho, aí meio litro, é quase toda do mar. Os recursos alimentares estão reduzidos a 50 gramas de farinha, se tanto!... Enfim... Quanto às perspetivas da terra, não sei!... Vejo agora a água do mar mais clarinha...Está uma brisa agradável. O céu está praticamente descoberto, é o que posso adiantar neste momento.

Aliás, posso dizer que de manhã velejei algumas horas, depois surgiu muito calor. Entretanto, tirei a vela, porque o vento desandou. Deitei-me um bocado na canoa a descansar  para evitar o calor.... Agora voltou a fazer um bocadinho  de fresco e voltei a colocar a vela. E, realmente, a canoa está a dar um andamento bastante agradável.

Diário de Bordo  - 4  São neste momento, aí uma duas e meia ou três da tarde. Tenho cá um pressentimento que a cor da água , um azul muito clarinho! já demonstra eu não estar num mar de muitas profundidades. Dá a impressão que não devo estar muito afastado de terra. Só vejo nuvens no horizonte, mas a água está realmente de um azul muito claro. Pode dar a entender que esteja próximo...Veremos... 

Diário de Bordo  - 5  Devem ser quatro horas da tarde. Continuo a velejar com uma certa dificuldade, pois o remo (improvisado) não me ajuda nada. Um pormenor curioso! é que as correntes se alteraram. Agora apresentam-se para noroeste e não para norte.

Visto estar cheio de sede, tomei há pouco uns comprimidos, umas vitaminas, por isso tenho o estômago a saber a comprimidos...É bastante chato... Enfim, vai-se aguentando... Pode ser que não seja por muito tempo... Tenho  aqui  ainda o tubarão...O outro já o deitei fora. E se não prestar vou pescar, com certeza, pois é a única solução que tenho.


Diário de Bordo  - 6  Há pouco disse que as correntes corriam para noroeste, mas não; é para nordeste. Portanto, têm um sentido completamente diferente. Antes, corriam para Norte, agora correm nitidamente para nordeste, o que dificulta, não só o domínio da canoa, como também porque vou levar mais tempo - (Sim, porque a canoa ia adernada num dos bordos)

Diário de Bordo  - 7  É já noite do 25º dia. A tarde manteve-se com bastante sol! O mar com alguma calema e com vento relativamente forte mas permitiu a colocação da vela. Velejei um bocado. É claro, com muitas dificuldades, visto não ter o leme (que lhe havia adaptado), mas sim um remo improvisado.

Já se me acabou a comida. Tenho dois nacos de chouriço que guardo religiosamente  para as iscas, para pescar. Água não disponho senão de água do mar, pois hoje não choveu. Acabo agora de comer um bocado de tubarão que consegui cozer com muita ginástica à custa de uma vela. O tubarão que tenho vou guardá-lo e vou ver se pesco  outro.

O mar neste momento está bastante agitado, está com uma ondulação bastante forte. O vento não é muito mas o mar está bastante forte. O céu não se apresenta totalmente encoberto mas há formações de nuvens a norte, formações de trovoada...Espero que não venham ao meu encontro, visto, nesta altura, o vento ser preponderante  do sul para norte...Há outras formações para outro lado, mas espero no entanto que não me atinjam... De qualquer maneira, já desejo um bocado de água das chuvas, visto já não a possuir.

Bebendo golinhos de água do mar
O luar!... Temos quase a lua-cheia!... Mas tenuemente, pois está encoberta por  algumas nuvens...Mais uma noite que passo, com dificuldades, mas, enfim...Quanto à costa de África, não consegui vislumbrar nada. Tenho tido apenas ilusões, ilusões!... Ilusões de terra!... A água, vejo-a mais transparente mas isso é da claridade do luar... Apenas ilusões e mais nada!... Não devo estar longe, com certeza!...Estou a demorar mas tempo de Fernando Pó para a Nigéria  - e aqui tão perto da costa africana - que do Príncipe para Fernando Pó - sim, quando avistei estas ilhas
.
Sinto neste momento necessidade de beber água do mar; embora seja muito desagradável e não mata totalmente a sede... Verifica-se agora uma certa fraqueza em mim... Espero fazer face a estas dificuldades.

Ó MAR ALTO SEM TER FUNDO - VIVER BEM PERTO DO CÉU E ANDAR BEM LONGE DO MUNDO - Zeca Afonso



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