Algures no Golfo da Guiné, 25 de Novembro de 1975 Há 44 anos - Jorge Trabulo Marques
..
À medida que as forças me vão fraquejando, são mais os pensamentos que me assolam de que as palavras que expresso para o meu diário. Embora com os olhos pregados nos contornos de terra à vista, assim vai decorrer mais um dia perdido no mar, sem todavia a poder alcançar. Mas, só ao 38º dia é que a poderia finalmente pisar.
Sim, mais propenso a
pensar de que a expressar as minhas emoções ou observações para
o modesto
gravador, que religiosamente guardo num simples contentor de plástico,
que em terra servira de caixote de lixo – Estou completamente
desligado do resto do mundo. A bússola permite-me saber a direcção que
tomo mas
não sei onde estou. Vou ao sabor dos ventos e das correntes. Que nem
sempre me
levam pelo melhor rumo. O remo improvisado, continua a ser pouco ou nada
eficaz.
Não posso comunicar seja com quem for. Senão com a vontade de Deus. E
também
não tenho a certeza se me vê ou se me ouve. Mas eu existo, e, a bem
dizer, sou um náufrago. E o drama que vai no
coração de quem anda perdido no mar, é intraduzível em palavras - Aqui
ficam, pois, as que foram faladas (para o diário) e alguns dos
pensamentos que ficaram
guardados na minha memória.
Diário de Bordo 1 Já é manhã do 36ª dia! Esteve uma noite
esplêndida!..Magnífica! Não choveu... A manhã apresenta-se serena mas
muito nublada!...Está aqui à minha frente uma serra muito alta!!...Muito
comprida!!...Devo estar entre os Camarões e a Nigéria...Mas ainda falta
um bocadito...
O mar é um imenso
tapete calmo, que cintila como um espelho de luz. . Manhã
radiante! Não corre a mais leve aragem... Nem um sopro sequer a agitá-lo.
A canoa "São Tomé - Yon Gato" mal se move. Também ela parece querer
repousar das muitas pancadas, dos maus tratos que tem sofrido...
Que, inexplicavelmente, tem suportado, com tanta indiferença e
resignação...Como se levasse no seu bojo a carga mais preciosa deste mundo, que
fosse imprescindível salvaguardar.
OLHA O CÉU E REZA DEUS A TUA ORAÇÃO – Que tão imenso e distante é , cujo
teto é o teu único abrigo e o vasto mar o teu único caminho em todos os sentidos
do circular horizonte
Assando uma ave |
Diário de Bordo 2 Esta
amanhã, a moral pode considerar-se elevadíssima! Comi a ave que
ontem apanhei... Cozia-a com um toco de uma vela de cera que ainda aí tinha...
E apanhei mais um peixito...Tenho aqui a costa de África já muito próxima... e
montanhosa para meu espanto....
De facto, estava convencido de que a orla
da costa fosse mais baixa, como a da Nigéria, onde fui parar da outra
vez... Mas não... É extraordinariamente acidentada ... Já pensei que fosse a
Ilha de Fernando Pó...Mas não deve ser...Dá-me a impressão que se
prolonga indefinidamente, formando como que uma imensa bacia que se destaca de
uma enorme massa verde escura....Ora, se fosse uma ilha, provavelmente teria
outra configuração... Porém, as nuvens que pousam nas suas montanhas, que ora
cobrem ou descobrem os seus perfis, fazem-me uma certa confusão...Veremos,
quando lá chegar...
Diário de Bordo 3 Serão neste momento, uma ou duas da
tarde... Tem estado um calor sufocante!...Uma calmaria bastante
inquietante!...Vejo perfeitamente à minha frente a nordeste a costa de
África!... Que se eleva numa enorme serra! Toda coberta de vegetação,
encimada por nuvens...
Agora começa a correr uma ligeira brisa...
Entretanto, vou ver se consigo velejar qualquer coisa...
Tento, mas em vão...A vela continua a pender, quase inerte, espanejando debilmente, a brisa é muito fraca...O sol bate-me em cheio... A água das chuvas que guardo no bidão de plástico, tem uma colorarão amarelada, é mal gostosa, não me mata a sede. A garganta fica-me sequiosa, arde-me de secura...Os lábios gretam-se-me, devido ao calor que é abafadiço, escaldante, insuportável!..
Tento, mas em vão...A vela continua a pender, quase inerte, espanejando debilmente, a brisa é muito fraca...O sol bate-me em cheio... A água das chuvas que guardo no bidão de plástico, tem uma colorarão amarelada, é mal gostosa, não me mata a sede. A garganta fica-me sequiosa, arde-me de secura...Os lábios gretam-se-me, devido ao calor que é abafadiço, escaldante, insuportável!..
O
céu está manchado de azul e de branco.. E, sob aqueles vultos de
névoas, descobre-se um verde escuro, luzidio .... Quando poderei lá
chegar?!... Tão próximos me parecem aqueles contornos, todavia,
fisicamente, tão inacessíveis!
Que pena a força misteriosa das
correntes e as ninfas que regem o carinhoso bafo das
brisas me não arrastarem para
lá...O pano erguido no tosco mastro, mal se mexe, não drapeja. Parece estar ainda mais triste de que eu.
Sim,
estou ansioso e preocupado. O tempo passa...
As horas correm lentas mas vão seguindo o seu curso... Já não faz tanto
calor
mas mantém-se a mesma calmaria ... O sol declina, já baixo e meio
pálido a poente ... Não tardará a desaparecer... O crepúsculo, aqui é
muito
rápido...E, eu, na iminência de já não alcançar a tão desejada costa
de
África... Depois vem a noite... ...Como será a noite?!.. Esta é sempre a
minha maior incerteza... A interrogação que faço todos os dias ao
anoitecer... Mais uma vez tenho que deixar o meu destino à mercê dos
caprichos dos ventos e das correntes... Oh!... esta
vontade!.. Esta ânsia de aportar a uma praia e pisar as suas areias,
ouvir o sonoro marulhar das ondas (tão diferente do chape-chape no
costado da
piroga, que já quase me enlouquece) a desfazerem-se na perpétua maresia
sonora daquela
beberagem espumosa... Oh, brilho divino!...Desejava que ao menos me
aproximasses à luz do dia para que não fosse enrolado na rebentação ou atirado
contra qualquer rochedo... Quando fiz a travessia de São Tomé ao Príncipe, eu,
ao pôr do sol, estava aproximar-me de uma falésia. E vi que ao largo estava a
formar-se um tornado. Não tive outro remédio senão afastar-me daquele precipício,
voltar costas à rochosa e íngreme encosta. e enfrentar a tempestade. Se me apanhasse
ali, não tinha salvação possível... Só Deus sabe os trabalhos que não tive
durante aquela tormentosa noite!... Os relâmpagos rasgavam continuamente a escuridão,
caíam faíscas por todo o lado. E, o plâncton, que a escuridão trazia à superfície,
parecia deixar a espuma das vagas em chama, arder em fogo!
Porém,
enquanto a noite me não cobre pela cortina do seu espesso véu e me não
turva meus olhos ansiosos, os inunda de sons e silêncios noturnos,
evoco aqui um poema de José Régio, creio que muito a propósito, num
momento em que me sinto levado a vaguear por um imenso oceano de
pemubrosas dúvidas.
P E N U M B R A
A pouco e pouco, vou chegando.
Não sei a quê. Sei que, na tarde ruiva,
Já quase só respira, brando,
O Vento que só raro, arrebatando-se, uiva.
Só raro! E talvez seja ingratidão,
Mas que saudade, sim, de quando, toda a noite,
Na escuridão
Me fustigava o seu açoite!
Nos seus uivos ecoavam meus clamores,
Toda a noite alarmavam de alaridos.
Enfurecia-se ele, ou eram meus furores?
Gemia o Vento, ou ou meus gemidos?
(...)
A pouco e pouco, vou chegando.
Não sei a quê. Sei que, na tarde ruiva,
Já quase só respira, brando,
O Vento que só raro, arrebatando-se, uiva.
Só raro! E talvez seja ingratidão,
Mas que saudade, sim, de quando, toda a noite,
Na escuridão
Me fustigava o seu açoite!
Nos seus uivos ecoavam meus clamores,
Toda a noite alarmavam de alaridos.
Enfurecia-se ele, ou eram meus furores?
Gemia o Vento, ou ou meus gemidos?
(...)
Desvendarei, por fim, o incerto clarear?
Distinguirei, por fim, o rumor subterrâneo?
Este ir chegando, enfim, sem chegar?
Entreverei o eterno, ainda que instantâneo?
Só sei que vou chegando, e a tarde é sossegada.
Sem armas, sem escudo ...
Chegando a quê? Talvez a nada.
Talvez a tudo.
José Régio
Distinguirei, por fim, o rumor subterrâneo?
Este ir chegando, enfim, sem chegar?
Entreverei o eterno, ainda que instantâneo?
Só sei que vou chegando, e a tarde é sossegada.
Sem armas, sem escudo ...
Chegando a quê? Talvez a nada.
Talvez a tudo.
José Régio
Extraído de Canteiro de palavras
Talvez à vida, talvez à morte, não sei..Não sei, efectivamente, onde vou chegando. Mas
não ignoro, no entanto, que terei de chegar, urgentemente, a
qualquer parte . Porque, o mísero estado em que me encontro, quase esgotado de
forças, dificilmente me permitirá que possa adiar a minha sobrevivência
por mais tempo, que reuna forças para chegar mais longe.
Por
isso, procuro avaliar no lusco-fusco do entardecer, tento decifrar os passos
que ainda terei de avançar ou de percorrer... Indago e perscruto, através da
morosidade inquietante que me angustia e me arrasta, o que me aguardará
para lá dos confins da imensa e misteriosa planura cinzenta, pergunto-me a que ponto
do horizonte poderei ser levado..
O
tempo refrescou, a noite ondula negra em torno de mim. .Vogo sobre um mar
de trevas e o que eu vejo em redor é um manto de escuridão. Lá, no
alto, surge o
brilho tímido das primeiras estrelas – E, quem sabe, se talvez alguma
me sirva agora de guia e de protecção. Oh, sim... Mas, eestando elas,
tão longínquas? ....
Diário de Bordo 4 - Neste momento são oito horas da noite!
Deverão ser cerca das oito hora das noite! Toda a tarde de manhã não houve vento!...
Só agora é que apareceu! Estou a velejar!... Estou-me a precipitar como um
suicida!.. Não vejo absolutamente nada! Não sei se estou perto, se estou
longe da terra!... Mas tenho fome!!... Não posso demorar mais tempo!...
A
canoa voa velozmente, qual pássaro notívago. A vela mal se distingue
por entre o emaranhado das sombras que preenchem o vazio da noite, no
entanto, noto que vai enfunada e que estica retesadamente a corda da
escota.
Os meus olhos e os meus ouvidos mantêm-se ativamente sincronizados e jogam entre si o rumo que deve tomar a pequena quilha galopante da propa desta espécie de embarcação fantasma. Assentado no fundo da canoa, recostando-me a uma das travessas, apelo a todas as minhas forças para segurar o tosco remo improvisado e dar o rumo em direcção à zona onde deixei de ver os contornos de terra. Não pude navegar de dia, quero aproveitar o vento que sopra de noite. Mas só vejo trevas à minha volta. Vultos negros, sombras disformes e confusas a preencherem o imenso deserto vazio que paira em torno de mim. Meus olhos fixam-se no pequeno círculo fosforescente da pequena bússola que trago no pulso em forma de balão. Nada mais enxergam que a pequeníssima agulha a oscilar tremulamente. Se ao menos descobrisse alguma estrela que me servisse de orientação. É assim que me oriento nas noites em que posso navegar. Mas a noite é cerrada e já as ofuscou. No entanto, não quero desistir. Bem me bastaram as horas de espera e de calmaria ao longo do dia. Com a terra sempre à vista e nem um sopro de vento que me empurrasse para lá. As correntes levavam-me sempre ao lado, autêntico suplício de Tântalo. Tremenda ansiedade e sofrimento.
Os meus olhos e os meus ouvidos mantêm-se ativamente sincronizados e jogam entre si o rumo que deve tomar a pequena quilha galopante da propa desta espécie de embarcação fantasma. Assentado no fundo da canoa, recostando-me a uma das travessas, apelo a todas as minhas forças para segurar o tosco remo improvisado e dar o rumo em direcção à zona onde deixei de ver os contornos de terra. Não pude navegar de dia, quero aproveitar o vento que sopra de noite. Mas só vejo trevas à minha volta. Vultos negros, sombras disformes e confusas a preencherem o imenso deserto vazio que paira em torno de mim. Meus olhos fixam-se no pequeno círculo fosforescente da pequena bússola que trago no pulso em forma de balão. Nada mais enxergam que a pequeníssima agulha a oscilar tremulamente. Se ao menos descobrisse alguma estrela que me servisse de orientação. É assim que me oriento nas noites em que posso navegar. Mas a noite é cerrada e já as ofuscou. No entanto, não quero desistir. Bem me bastaram as horas de espera e de calmaria ao longo do dia. Com a terra sempre à vista e nem um sopro de vento que me empurrasse para lá. As correntes levavam-me sempre ao lado, autêntico suplício de Tântalo. Tremenda ansiedade e sofrimento.
O céu
continua carregado de nuvens escuríssimas. Atmosfera densa. Pesadíssimo e baixo o tecto que
quase me submerge....A canoa galopa, vai galopando,
vai sulcando temerariamente a negra vastidão, qual pássaro
noctívago de peito aberto ao desconhecido. Nunca, como esta noite, naveguei com
tão porfiada determinação. Nada me intimida. Ou vida ou morte. Vou
disposto arriscar tudo. Mesmo a ter que correr o risco da canoa ser
atirada para qualquer escolho, negro rochedo ou linha de rebentação.
Navego,
talvez há quatro ou cinco horas, vergado sobre o remo. Velejando
continuamente às
cegas, alheio a todos os perigos. Tão cansado já vou do esforço do
remo, que tenho a sensação de estar possuído por uma certa vertigem,...
Que não é a canoa que navega à tona de uma vasta e negra planície, mas
que sou eu que deslizo e me precipito por uma escuríssima colina
abaixo.
Não faço a menor ideia para onde vou, que distância me separa de um
porto de abrigo. A única coisa de que me apercebo é o ressoar de um
certo bruá, que parece vir dos confins da massa escura para onde me
dirijo.
Os
meus ouvidos funcionam como um
autêntico radar - São também os meus olhos. Procuram decifrar todos os
ruídos dos súbitos movimentos, todas as ressonâncias, provenientes do
barulho das vagas que se enrolam e espumam nas proximidades, as
pancadas que se abatem contra o costado,. Avaliam
todos os sons, vão sincronizados com o rumorejar noturno do mar.
É, todavia, cada
vez mais complicado segurar o remo, o vento é forte e inconstante e vai-se-me
tornando difícil saber qual o verdadeiro rumo que estou a tomar. Há muito desisti de olhar para
a bússola. Ora navego para um lado ora navego para outro. Tento evitar que
a canoa fique completamente à deriva ou atravessada à vaga. Estou fisicamente esgotado e no
limiar da minha resistência. A par da fraqueza, invade-me
uma enorme sonolência, a que não quero ceder.
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