Algures no Golfo da Guiné, 8 de Novembro de 1975
Diário de Bordo 1 - Hoje é o 19º dia. Este é o meu
calendário. Não sei qual será neste momento o de Terra - Dizia eu para o pequeno gravador que
consegui preservar no interior do meu baú, um caixote de plástico.
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Mais uma
noite de vigília. O temporal de ontem à tarde, manteve o mar ainda muito cavado
pela noite adentro, embora, pouco a pouco, fosse ficando mais calmo. Mesmo
assim, não consegui reconciliar o sono; estive toda a noite atento. Enfim,
atento às águas e à proximidade de Fernando Pó ou até da Nigéria.
A manhã
amanheceu com uma certa bruma
mas até certo ponto radiosa!... Quer dizer, muito sol, algumas nuvens, mas
bastante sol!... O mar calmo! Completamente chão!... De uma calmaria podre,
como soe dizer-se em linguagem marítima.
Diário de Bordo 2 – Durante a manhã, empreguei o tempo a
pescar. Entretive-me a pescar e pesquei mais um peixe qualquer, um peixe
esquisito, de que não seio o nome. Entretive-me também com os tubarões, pois
são os peixes que mais se aproximam da canoa. Sobretudo o tubarão martelo, que
é verde e o tubarão azul. Acontece que, hoje, eles andavam tão próximos e a
fazer umas piruetas, que os marquei com o machim. Acertei-lhes em
cheio!...Houve alguns que se puseram a penates!... Acertei-lhes na cabeça!... E
é pena que o machim não estivesse mais afiado, quando não teria morto
algum...Entretanto, mais tarde apareceu um dos escuros, um tubarão muito
esquisito, que parece que é dos vorazes!... Dele, só me apercebi quando deu
umas rabanadas na canoa!... Deu umas rabanadas na canoa e depois voltou a
insistir!... Aí, acabei por lhe dar com o machim e depois desapareceu.
Diário de Bordo 3 – Pois tenho aqui Fernando pó, bastante próximo!... Não sinto qualquer interesse em me aproximar da Ilha de Macías, não sei porquê!...Aliás, hoje seria um bocado difícil, dada a posição, mas já tive a possibilidade de me aproximar de lá. Não tenho interesse. O meu desejo é a Nigéria. Talvez vá dar à Nigéria, dada a direção que as correntes estão a tomar....A canoa nem sempre vai pelas correntes. Quando aparece um tornado, toma a direção do tornado. E, se por um lado é mau, por outro ajuda bastante!... Pois, quando há temporal, a canoa desenvolve muito. Às vezes parece esqui aquático!
Diário de Bordo 4 – É meio-dia. Está um calor muito grande!... Sinto
muita sede!... Ontem procurei aproveitar mais um bocado de água das chuvas.
Depois tive o azar da rolha
saltar do bidão de plástico eu fiquei sem essa água. Só estou com um bocadinho, cerca de um litro,
se tanto, que aproveitei anteontem. Até tem um sabor esquisito... Mas, enfim, vai-se
aguentando com ela. Portanto, estou cheio de sede!..
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CALOR DE MATAR: HAJA ÁGUA QUE PEIXES NÃO FALTAM
Quanto aos alimentos, tenho procurado fazer um certo racionamento, porque já não
são muitos. Até são poucos. Mas isso também não importa, porque há peixes.
Ainda ontem, por exemplo, tentei fazer um bife de tubarão com álcool que aqui
tenho. Quis assar o fígado do tubarão, mas depois não consegui... De qualquer
maneira comi-o cru e soube-me bem!... Portanto, haja água que há aqui peixes à
farta à volta da canoa.
Claro que, não sendo cozinhados, não se comem assim muito bem, mas aguenta-se,
que é o que interessa fundamentalmente.
Diário de Bordo 5 – A principio, isto era tudo um caos. As coisas
estavam todas a monte. Algumas a apodrecerem, a estragarem-se. Mas agora,
enfim, embora um bocado desordenado, já tenho isto mais ou menos com uma certa
decência...Eu já lhe chamei um hotel. Mas de hotel nada tem, pois não disponho
de comodidades nenhumas!... Agora estou deitado no fundo da canoa, com uma
toalha sobre a cabeça para me proteger do sol, esperando vento... Já está a
sentir-se uma ligeira brisa, mas ainda é muito fraca!....Para o fim da tarde,
vou ver se consigo pôr a vela. E vamos lá a ver se aproveito o vento para dar
outro andamento a isto...
Diário de Bordo 6 – Quanto à segurança da canoa, algumas rachas ainda
metem um bocadinho de água, mas estou esperando que vá aguentando até chegar a
terra.
Os tubarões é
que me surpreenderam!... Porque eu habituei-me, logo desde princípio, a vê-los,
mas quando eles começaram às rabanadas, então aí é que eu comecei a ficar um bocado
assustado!
Esta manhã
dei-lhes mossa. Ao passarem por baixo da canoa, marquei uma data deles!.. Tem
piada que continuaram ali marcados no dorso.
Diário de Bordo 6 – Agora falando da Ilha de Fernando
Pó, que tenho aqui à minha direita, a leste. Direi que é uma ilha montanhosa, com um relevo
ainda mais recortado que o de São Tomé, com picos talvez ainda mais altos e
eriçados mas igualmente revestidos
por espesso manto verde, que agora estão encobertos nas partes mais altas. Tem
vários ilhéus e toma a direcção Sul-Norte no seu máximo comprimento.
Diário de Bordo 7 – Curioso espetáculo
neste princípio de tarde! Três bonitas baleias passaram aqui próximo,
ofegantes, vomitando água, como é costume, aqui próximo da Ilha de Fernando Pó.
É um pormenor que me apraz registar nesta tarde soalhenta, cheia de sol! Apenas
com uma brisa muito leve.
Diário de Bordo 8 - Dado os recursos de água já serem
muito limitados, pois tenho apenas aí meio litro, acabo agora de beber água do
mar. E, sinceramente, confesso que não me parece muito salgada! Bebeu-se
bem!... Vamos lá a ver onde isto vai parar!... (sorrindo) Aliás, Alain Bombard ,
um médico francês, que fez
uma viagem também muito grande, provou que era possível sobreviver durante
vários dias, bebendo água do mar. Portanto, se me faltar a água das chuvas,
tenho água do mar aqui à fartura!
Diário de Bordo 9 - Fim de
tarde do 19º dia.
Céu
descoberto, muito azul, apenas com umas nuvens de onde em onde.. E a leste, a
Ilha de Fernando Pó. As aves a fazerem-me companhia, em bandos, à procura de peixes...
O mar, agora
ao fim da tarde, princípio da noite – pois já se pôs o sol – está um bocadinho
mais agitado, devido a uma pequena brisa....Devo estar muito próximo da
Nigéria, porque, as correntes, já
não são tão fortes como lá mais a Sul. Aqui são de facto mais suaves.
Pois já não
tenho água. Não chove; agora estou a
utilizar água do mar. Ainda há pouco a bebi e fiz uma farinha. Não é assim
muito saborosa mas também não é muito desagradável.
NOITE SERENA
DE LUAR EM MAR TRANQUILO
Diário de Bordo 10 – É noite do 19º dia.
Está uma
noite serena! De luar!... Uma noite bonita!...Não há vento. O mar tem uma
ligeira ondulação. A Ilha de Fernando Pó está completamente obscura!.... Já não
se vê. Aliás, nota-se um ligeiro recorte, apenas entre o horizonte... Dá a
impressão que é uma ilha sem vida!... Eu sei que há lá milhares de pessoas a viverem... Mas não há
sinais de vida nenhuns!... Nem um sinal luminoso, sequer!...
Farto-me de
perscrutar, de vislumbrar o horizonte a ver se vejo algum sinal luminoso, mas
nada, absolutamente nada!... Enfim é uma noite serena! Uma noite agradável!...
Espero que entretanto não se altere., porque já tenho passado noites muito
aborrecidas!... Tempestuosas!...
Peixes
aqui?!... Tubarões?... Ou o que é?!.... Dão saltos!... Tenho que me resguardar,
porque já várias vezes me aconteceu, estar sentado, aqui na canoa, e ter
sofrido umas rabanadas! Umas investidas dos tubarões mais atrevidos!.
Agora não os consigo ver. Não vejo nada!... Às vezes, vê-se reluzir
debaixo da canoa... Nunca se sabe se algum está aqui, mais próximo!... Aliás,
nunca faltam... Enfim, não me interessa lá deles, o que eu quero é que não me
chateiem!..
ateiem!..
Portanto, é
uma noite muito agradável!... De serenidade!...
Estou absolutamente longe de tudo!... Ao mesmo tempo sou um Zé ninguém mas
também sou gente!...Gente!... Aqui no meio disto tudo!... É indescritível!...
Sinto-me
abandonado mas ao mesmo tempo entregue a esta natureza, a estas forças todas!....Belas!...Puras!...
Que aqui estão, ante os meus olhos!... Esta ondulação escura! Com reflexos
luminosos, aqui atrás das minhas costas, do luar!....Mas há vida!!...Respira-se
uma vida!!...Uma vida pura!! Uma vida livre!... Livre de tudo!... É agradável!...É
agradável!...Muito agradável!...Viver aqui,
quando o mar se apresenta com esta face...Porque o mar tem muitas faces!....
Faces agradáveis! Belas!... Faces negras, sombrias e tristes!... E eu já por
todas passei.... Enfim, é uma noite.... Espero que continue assim....
Diário de Bordo 11 – Ao mesmo tempo, eu sinto-me
desprendido!... Sinto-me livre
de todas as pessoas que às vezes me chateiam!.... Sinto-me livre de tudo! De
todo o mundo!...De todos os ódios! Invejas! Intrigas!... Aqui não há nada disso!...
Aqui há horizontes vastos, apenas!....
Céu!.... Um
céu magnífico!!!... Oh que beleza!!...Oh que largura!!...Oh que lonjura!!...
Tudo aqui não tem dimensão!... O espaço livre! Absolutamente livre!!... O
mar!!! Este ar fresco!...Ah quem me dera meter-me no mar!!... Mas não
posso!...Mas quem me dera!!... Falta-me esse prazer!...
Sinto-me
alegre! Sinto qualquer coisa em
mim que não me prende!!... Sinto-me liberto! Liberto de tudo!!...Ó mar!!... Ó
mar!!... Força enorme!!... Eu estou aqui sobre ti! Ó mar!!...Céu estrelado!!...
Luar tão belo!!...Oh que beleza contemplar este panorama!... Este cenário!...Não
tenho palavras com que possa transmitir tudo o que sinto!..
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Diário de Bordo 12 – E a minha canoa vagueia!... Vagueia
ao sabor das correntes!....Esta força invisível! Mas que existe!... Ela
impulsiona-a!... E uma força! Uma força do mar! Das vagas que estão sob ela a impulsioná-la!... E a minha canoa,
suavemente, umas vezes, brusca, outras suavemente, desliza!...Sente-se que
desliza!...
Aqui no mar há vida!... Muita vida!!... E há uma luta feroz, talvez
mais feroz que na Terra. Uma luta de sobrevivência de umas espécies com as
outras!...Ah!... Só aqui me sinto livre! Absolutamente livre!... Absolutamente
independente de tudo!
UM FAROL NAS
DISTÂNCIAS! – AO NÁUFRAGO A SUA LUZ, É COMO SE UM RAIO DE DEUS O CONTEMPLASSE,
Diário de Bordo 13- Alto lá!... Acabo de ver, pela
primeira vez, um farol, o sinal de um farol!!... Parece que sim... que deve
haver um farol.... Porque chega aqui um sinal luminoso, de lá de longe!...Deve
ser , portanto, o farol de Fernando Pó...
(Depois canto
ainda “A noite plácida!”, após o que me deito, acreditando que o amanhecer me
aproxime definitivamente de terra.
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