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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Massacre do Batepá - Há 50 anos, fui a primeira pessoa a entrevistar sobreviventes e a divulgar as primeiras imagens do massacre – O que me revelou o sobrevivente Homem Cristo e as confissões do Chefes das Brigadas, o verdugo Zé Mulato. Artigos publicados na revista angolana Semana Ilustrada, que me valeram pesadas represálias pelos contrários à liberdade


Jorge Trabulo Marques - Jornalista
  - Confissões do chefe do campo de concentração, um tal verdugo Zé Mulato  e de uma das vitimas, que ficou conhecido por Homem Cristo por ter sobrevivido a uma rajada de tiros quando lhe era aberta a cela onde os demais presos ficaram asfixiados  - De entre outras confissões que pude recolher com pesados riscos de vida por alguns colonos e das quais  transcrevo algumas passagens  
Afinal, quando fiz as entrevistas já passavam 21 anos; passam agora 70 anos sobre o massacre e 49 sobre as entrevistas  - Só depois de publicar a postagem vi que me enganei num ano.

Entrevistei sobreviventes e publiquei fotografias que me valeram - todos os pneus do meu carro à navalhada, - isto já depois de uma tentativa de ser abalroado na estrada, posta uma forca de corda pendurada por colonos à porta de minha casa, ainda voltei a ser alvo de  muitas cenas de ódio e afrontosas  patifarias! - Entre as quais uma espera à porta do edificio onde residia num modesto anexo, pontapeando-me no chão e onde me apanhavam.

Entrevistando um dos sobreviventes Foi precisamente há 70 anos mas a lembrança  desses ignóbeis acontecimentos permanece ainda bem viva na memória dos escassos sobreviventes, mas não esquecida na memória coletiva de um Povo, que hoje recorda as largas centenas de mortos que barbaramente foram espancados no Campo de Concentração de Fernão Dias, 





 Uma ocasião invadiram o Palácio, e, quando me viram, eram milhares  de colonos à pedrada atrás de mim: salvou-me o facto de ver uma porta aberta e subir pelas escadas e me esconder no telhado - Felizmente houve quem assistisse à perseguição e visse o meu esconderijo: um santomense, pela calada da noite, chamou-me e levou-me para o seu humilde casebre, algures fora da cidade, onde me tratou dos ferimentos e, durante duas semanas, me acolheu generosamente. Quando voltei à minha modesta casa - um simples quarto alugado num edifício de escritórios, o seu estado era irreconhecível: partiram-me tudo - roupa rasgada, máquina de escrever destruída, de inteiro não ficara nada..


Em 2018 - Presidente da República Portuguesa, homenageou vítimas do massacre de Batepá 21 de fevereiro de 2018 No segundo dia da Visita de Estado a São Tomé e Príncipe, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa depositou uma coroa de flores, no monumento dos Mártires da Liberdade, em Fernão Dias, em homenagem às vítimas do massacre de Batepá.
"Presto respeito e homenagem a todos aqueles que lutaram pela liberdade e em particular aqueles que morreram pela liberdade faz agora, precisamente, 65 anos", começou por dizer Marcelo junto ao monumento que assinala o massacre e que foi inaugurado há dois anos.


Sobrevivente - Registo em 2014

Coronel Victor Monteiro - Filho de um herói 

DEPOIMENTO DE MANUEL CARMONA  - Em 1974 
J. M. Que lhe fizeram, quando chegou à tal brigada de trabalhos, em Fernão Dias'?
- M. C. Padeci bastante Levei pancada demais.
- J. M. Quanto tempo esteve nessa· tal brigada ?
- M. C. Cinco meses. Vi muitos mortos, que foram pegados vivos , num bote grande que os lançava ao mar.  Eu próprio é que vi, com a minha vista, em Fernão Dias, matar por ordens do Sr. José. 

- J. M. O Sr. acha que se deve fazer justiça a esses indivíduos que o trataram mal e mataram outras pessoas, que ainda não foram julgados?
- M.C. Acho . Ficaria muito satisfeito até …
- J. M. Conhece  muitas pessoas que o tararam mal e que ainda cá estão?
- M.C. Bem, outros morreram, os capatazes ainda cá estão. Até o que foi o chefe, o autor da justiça , ainda está a viver  e outros ainda estão em  S. Tomé.  Eu conheço-os…
- J.M. Que lhes davam de comida , nessa brigada ?  - 

Excerto da entrevista publicada na revista Semana Ilustrada, que transcrevi  em  http://canoasdomar.blogspot.com/2015/02/massacres-dos-batepa-3-hoje-s-tome.html

BARTOLOMEU CRAVID   - Em 1974

- J.M._ Diz-se que o Sr. Cravid também foi uma das pessoas afectadas pelos acontecimentos do Batepá. Que se passou então em relação à sua pessoa?
- B. C. - Lembro-me que fui preso e que estive na cadeia 45 dias. ·
-
 J.M. -Por que é que o prenderam?
- B. C. - Não sei explicar; o certo é que houve a ideia de arranjar mão-de-obra gratuita. E daí' surgiram as prisões, mais prisões mas sem quaisquer razoes para isso. 
 Procurava-se emprego e não sé encontrava. No entanto, as rusgas sucediam-se e as pessoas que encontravam, eram presas. É, claro, ao fim ao cabo houve um ou outro que reagiu sobre esses atitudes. Mas a  verdade é que nem chegou a existir reaccão nenhuma.
- J.M – Na altura, trabalhava em quê?
- B.C – No Tribunal.
- J.M. - Portanto na altura em que foi preso. Mas em que suspeitas se basearam para o prenderem?
- B.C. - Naquela altura só se 'tratava de boatos, mais boatos. O individuo era apontado de estar metido em reuniões. Mas a verdade é que nem sequer havia reuniões.
- J.M. - Durante o tempo em que esteve preso foi muito mal tratado?  
- B.C - Fui. Bateram-me. Puseram-me numa cela, incomunicável, durante 45 dias.

Excerto da entrevista publicada na revista semana Ilustrada, 

COMO A MORTE CEIFOU POR COMPLETO UMA PEQUENA ALDEIA E SE ALASTROU POR QUASE TODA A ILHA -  

Escasseava a  mão de obra barata..
E o governador planeava construir grandes edifícios
à custa do trabalho forçado nas ilhas
 e  mandou o ajudante de campo 
armado em soldado nazi a comandar 
um grupo de milícias para  ordenar
o trabalho obrigatório..
num verdadeiro retorno aos primórdios
do ignóbil e duro esclavagismo,
até que,  numa remota aldeia perdida no mato, 
algures pela Vila da Trindade,
alguém se encheu de coragem e reagiu 
sobre o fogoso e arrogante alferes,
que teve a reação popular que merecia 
e à altura da leviandade
e do desprezo como olhava a  população e impunha  a sua vontade .


A partir daí o Governador  Gorgulho -  para salvar  a face 
dos seus desmandos e  prepotências,
e, como os grandes erros, nunca vêm sós,
para justificar uns cometia outros, cada vez mais graves. 
passou acusar os "rebeldes" de comunistas,
através da imprensa e da rádio.
E  não tardou que os colonos - incentivados  ao ódio à  dita   "hidra comunista", 
respondessem ao apelo dos muitos boatos propalados:
"Há notícias de que foram avistados submarinos soviéticos ao largo 
e descarregadas armas para apoiar a revolta  dos negros insurretos contra 
a integridade desta província ultramarina!"  - Foram detidos
e presos vários suspeitos. O governo promete firmeza 
e mão pesada aos criminosos! 
Por toda a ilha mobilizam-se milhares de voluntários."
- E, quilo que  poderia ter sido um caso isolado,
depressa é rotulado de rebeldia comunista.

Face a tais atoardas e  falsos alarmes, as roças  passam ao ataque:
empregados de mato e dos escritórios, 
feitores e administradores - e até capatazes negros -
  partindo em jipes de todas os cantos da colónia,
concentraram-se na Trindade, e, fortemente armados,  dirigem-se
através dos caminhos do mato ao Batepá, descarregando  tiroteio forte e feio, 
(naquela e noutras aldeias) sobre as populações indefesas e pacíficas

O "massacre de Batepá" foi desencadeado pelo então governador de São Tomé, Carlos Gorgulho, depois de muitos santomenses se recusarem a trabalhar, de forma forçada, nas obras públicas e nas plantações de café e cacau. -

Em 2016, então sob a Presidência da República de Manuel Pinto da Costa, a que tive oportunidade assistir, a cerimónia foi inaugurada com a deposição de uma coroa de flores pelo Presidente da República, junto ao novo Monumento dos Mártires da Liberdade, de autoria do arquiteto Alexandre d´Alva -


BATEPÁ OU MATA-PÁ – A MAIOR NÓDOA DO COLONIALISMO NAS ILHAS VERDES DO EQUADOR

Quando o Governador de S. Tomé e Príncipe, Carlos Gorgulho, e os seus acólitos inventaram a tenebrosa história da conspiração dos negros contra os brancos, que apelidara “ de indivíduos desafectos à atual situação política, conhecidos como comunistas”, principiava uma das maiores tragédias, do período colonial, que vitimaria várias centenas de naturais destas Ilhas – Era como que o macabro epílogo que  surgira na sequência da morte do seu ajudante-de-campo, o qual,  numa atitude provocatória, viera juntar-se às  famigeradas rugas conduzidas por soldados armados e lideradas por  um dos presos de delito comum, um tal facínora Zé mulato, rusgas essas que,  todas as manhãs, deixavam a cidade e partiam para o mato para cercaram esta ou aquela pacata e pacifica povoação,  arrastando à força quem encontrassem, fora ou dentro de suas humildes casas de madeira, obrigando os nativos a trabalhos forçados nas obras do Estado ou para serem enviados para as roças, a onde a mão-de-obra dos contratados, vindos de outras colónias, escasseava –  Todavia, o local para onde imediatamente eram conduzidos, eram os miseráveis barracões imundos da cadeia, junto à  cidade, onde os pobres santomenses eram presos nas condições mais humilhantes e degradantes


CONFISSÕES DO ZÉ MULATO E DO SOBREVIENTE "HOMEM CRISTO"

Ouvi as declarações e os desabafos de algumas das vítimas  que sobreviveram  ao massacre do Batepá  e às prisões  e  torturas de centenas de mortes que se seguiram. Por fim,  também ouvi o principal carrasco, cujo diálogo registei para um pequeno gravador . Recebeu-me na sua oficina, cá fora, encostado à sua carrinha. Mas não foi fácil falar com o corpulento Zé Mulato. E até me dirigi a ele com alguma relutância e   medo, receando que pudesse ter a mesma atitude intempestiva dos colonos e me agredisse - Não o fez fisicamente mas as suas palavras soaram-me a balas, a extrema violência e a  fuzis!


Não queria falar 
e vi que também estava zangado comigo: 
"Você é um parvo!!..
Tinha obrigação de conhecer  melhor o preto!!..
Eu sou negro e analfabeto e sei bem o que sou: 
conheço a minha rês!!" 
Mas depois de o deixar desabafar,
lá foi desfiando alguns dos episódios, 
revelando pormenores
do acontecimento macabro

Sei que não serei capaz  de o recapitular.
Embora me lembre, todavia, de tudo quanto me disse.
- Sim, já me haviam relatado os seus crimes,
mesmo assim não esperava tão inesperada confissão.
actos de tamanha impunidade e crueldade!
Descritos  com tão flagrante e  desbragada  sinceridade.
Tão crassa frieza,  impiedade e desfaçatez
Cujas palavras ainda  me não  saíram  
completamente dos ouvidos,
tal a impiedade com que as pronunciou 
e  a impressão com que ainda  hoje as recordo.
Mas vou tentar - vou ver o que consigo.


Sim, confessava-me ele num certo dia e com  palavras  de arrepiar: numa entrevista que depois não chegou a sair na Semana Ilustrada  Disseram-me de Luanda que era muito chocante e não podia ser publicada
:

"Em Fernão Dias eu era o capataz 
e fui uma máquina bruta a matar!!...
Era eu quem mandava. Cumpria ordens!...
O que querem agora que eu faça?!..
Querem que eu me mate 
ou querem que eu me deixe  matar por eles?!...
Agora andam para aí a rondar-me a porta: 
o primeiro que aqui entrar, 
deixo-o aqui degolado, não sai daqui inteiro nem vivo!...
Querem que lhes dê o  mesmo trato?!... 
A uns matava-os a soco, outros a tiro, à paulada ou à machinada! 
Alinhava-os ao longo da vala para não me darem muito trabalho.
Alguns ainda gritavam lá dentro, mas calava-os imediatamente,
com umas quantas pazadas de terra. 
Nem era eu que as deitava,
mas a outra "empreitada"
que vinha logo  a seguir.


O campo estava vedado de arame farpado
Mas houve quem fugisse. Houve uns macacos que se puseram andar!!..
Por isso,  passei acorrentá-los para não se escaparem,
e, às vezes,  para não me maçar  muito,
mandava-os carregar água do mar em potes até se cansarem!..
E tinham que andar ligeiros, dar a volta pelos coqueiros 
e a despeja-la ali de novo à beira  da praia!
Dei muitos murros e pontapés até se cagarem!
Depois mandava-os abrir as covas 
para outros os enterrarem!
Não tenho pena de nenhum dos que matei!  
- Foram  uns  milhares de  "comunistas"  à  vida! 
Fui duro!... Bem sei... Tinha de ser...
E não me pergunte se  estou arrependido,
não senhor! Não estou!!.. - Outros amarrava-os  à cadeira
dos choques eléctricos: 
"até pulavam!...Até gritavam!... 
Eram uns tristes ... Coitados!...Passavam sede e fome!.. .
Andavam magros como os cães!... Alguns caiam já mortos!..
Eu sei...Foi duro!.. Eram meus patrícios!...
Mas quem é que os mandava ser comunistas?!..
Houve muitos que sempre  negaram a morte do alferes
por mais verdoadas que levassem!



Oh! mas quando o cacete lhe caía nas costas!...
Ou o chicote lhes zurzia na cabeça e no focinho!...
Não havia língua que não se soltasse!
Abria-se-lhe logo a boca p´rá  verdade!!... 
E os desgraçados até  me davam vontade de rir
quando de repente confessavam:
." - Perdoa-me Zé Mulato! Perdoa-me Zé Mulato!
Eu sou comunista! Eu sou comunista! 
Não me mates!!Não me  mates!!!
Estou arrependido!
não me meto mais noutra!!"
- Era então quando lhe dava mais porrada!
Virava pau em cima deles!... Pau até partir ou rachar cabeça deles!..
  Ainda mais os  espancava!!...



Comunistas? - pergunto eu. Sabiam lá os tristes massacrados
o que era o comunismo!Nem  ele próprio sabia.
Mas, lá está... Zé Mulato era lesto e  mau!
Portava-se como todo o  mundo fosse seu. 
Cumpria as ordens que vinham de cima
por inteiro e ainda abusava!
Queria lá saber do sofrimento alheio!...
O verdugo  era impiedoso e não hesitava!


"Depois duns  valentes choques eléctricos, aos mais renitentes,
desapertava-lhe as fivelas, tirava-lhe os coletes e as correias,
soltava-os,  ficavam doidos e tontos, pareciam macacos esgazeados!
  Atiravam -se direitos às paredes às cabeçadas!
Até sangrarem-lhes os dentes!
Caiam no chão e  esperneavam!
E eu depois lá tinha de acabar com eles,
com uns pontapés na cara! - Esmagava-os!!...
O negro é rijo!... Custa a morrer! 
Eu também sou da mesma fibra.. 
e venha aí o primeiro 
que me queira dar alguma cacetada!
Senão os matasse nunca mais morriam e se acalmavam!
Dava em maluco!... Ainda ia ficar mais estragado do que eles!!..
Então era gritaria a toda a hora e  nunca mais se calavam!..

Mas Sô Zé Mulato tinha o perfil do carrasco ideal,
nem ia ficar louco nem minimamente  se impressionava!
- E, pelo que me disse, até achava muita graça e  piada - Porém, a tal cadeira 
- só de se ver - era mesmo real e  macabra.
Sim, ainda vi a imagem cruel e fotografada desse abominável suplício!
- Tive-a nas mãos mas não a pude publicar: o editor da Voz de São Tomé, 
(jornal do regime), essa e outras horrendas imagens não mas facultou
nem ele as publicou - espero  que estejam  guardadas em arquivo
- Um tal militar (um tenente fascista)  encarregou-se de limpar 
os arquivos da PIDE e o que não interessava.


Falei  com o "Homem Cristo", o único sobrevivente
que, entre três dezenas de aprisionados,
numa  cela de polícia, irrespirável, minúscula e apertada,
logrou resistir e pôde  escapar-se  a uma saraivada de balas!
Pois, de  manhã, o carcereiro ao abrir a porta
munido de  uma arma,  vendo-o a fugir,
apresou-se a carregar  sobre ele toda  a metralha
crivando-o, quase completamente, com dezenas de disparos.

Mostrou-me, em sua casa, as calças completamente esburacadas
por onde cada bala  fizera a sua perfuração,
desde os pés, às pernas e quase  à cintura,
fora  os disparos que o atingiram noutras partes do corpo.
Confesso que fiquei incrédulo: nem queria acreditar
no mistério assombroso  que teria estado na sua salvação.
Mas a verdade é que ele estava vivo
e estava ali à minha frente.
Era de carne e osso como eu.
Era um ser humano. Não se sentia nem inferior nem superior a nada.
Nem era nenhum espírito de outro mundo, duende ou fantasma.


Interrogava-me de como teria sido possível resistir
ao despejar de carregadores de balas, suportar tanta metralha
e ficar vivo?!...- Oh, sim.. Pobre homem!... Foi um milagre!
Estou a imaginar o sofrimento
e a enorme aflição por que passou
na sua atormentada mas tão espetacular fuga!
- Claro que foi um homem de sorte!... Apesar de fortemente baleado,
foi um felizardo ter sobrevivido! - Um verdadeiro milagre que o salvou!
- Por esse motivo, por essa razão,
passaram a chamar-lhe o "HOMEM CRISTO"



Eu vi a franzina figura desse  CRISTO!
Desse pequeno grande homem, corajoso, simples e humilde.
e o mais surpreendente de tudo é que ele parecia
não alimentar o menor rancor, ódio ou mágoa
de quem quer que fosse!...No seu rosto
transparecia confiança  e uma espécie de  luminosa claridade!
- E até sorria, quase com infantil ingenuidade
quando olhava para as calças e me dizia:
"Veja a sorte que eu tive!... Veja como  as  balas
furaram as minhas calças, atravessaram
as minhas pernas  e não me mataram!..."
Espantoso! - Todas estas palavras
expressas com tão claríssima serenidade!

-

Sim, apesar de tudo, as malditas balas - que tudo perfuram - foram suas  amigas,
deixaram-lhe as pernas ensanguentadas  e  quase partidas
mas não o deixaram estendido e o atiraram para a sepultura
(tal como os demais companheiros que morreram horrivelmente asfixiados)
Ele estava ali à minha frente,
embora cheio de cicatrizes,
mas ainda bem lúcido e vivo!
Todavia, a testemunhar
e a gritar aos céus e a Deus,
tão gritante tirania
e maldade!


- Curiosamente, o saber perdoar aos seus algozes, 
não alimentar deles rancores nem ódios, 
dar a vida pelos homens de boa vontade,
não  ver inimigos em qualquer rosto 
e ser infinitamente bom e amoroso
é também a imagem, legada
do coração prenhe de uma infinita bondade,
exemplo pacífico e de caridade,
sim, é precisamente o que  transparece  
da vida e da morte, o coração generoso
de  Jesus Cristo - o  crucificado
 Na verdade, o desprendimento, o amor ao próximo, 
o ser humilde e saber perdoar
é o que define as virtudes e as qualidades
dos grandes espíritos  - E o HOMEM CRISTO,
era um desses raros espíritos
que o bom povo,
onde nasceu, viveu e cresceu,
tão cedo o esquecerá.




Também  vi chagas vivas  em alguns sobreviventes
  tal como as que foram provocadas pelos  pregos 
e as pontas de lança nas mãos e nos pés 
do filho de Maria e de José - iguais às do Cristo crucificado.
Causadas pelos argolas de ferro agrilhoadas nas  pernas
dos que foram brutalmente espancados
e barbaramente seviciados e acorrentados
- Vi e reconheci, estupefacto, que, passados 20 anos, 
e por força da  maresia, da humidade e do sal, 
durante o logo e brutal cativeiro  a que foram expostos,
ainda existiam feridas que não tinham totalmente sarado:
e não só eram bem visíveis como expunham bem as marcas 
deixadas pelas  correntes e as argolas,
como se o hediondo massacre 
tivesse ocorrido de véspera!

Mas, Sô Zé Mulato estava consciente da suas maldades 
e conhecia bem as vítimas.
E o que mais o incomodava não era o sentimento  de culpabilidade!..
Que parecia não ter  nenhum: mas saber que houve sobreviventes
e  estar desgostoso por  não os ter  matado a todos!
Eu vi esse desejo,  esse requinte,  esse ódio bem patente, no seu semblante! - 
Não suportava que lhe falasse dos que dele se queixavam:
dos que estavam vivos e haviam resistindo às suas atrocidades.
Vinha logo com as mais insólitas acusações!...  Que resumia, repetidamente,
nesta  mesma expressão:  "Esses pretos não prestam!,"São todos uns aldrabões!"
No seu ponto de vista, 
os criminosos eram eles! - Zé Mulato   o bonzinho.
Ele sabia que era mau, mas, por vezes, contradizia
 a confissão: "Eu nunca fiz mal a ninguém! 
Eu cumpria as ordens que me davam!!.." 
Porém, logo a seguir, recriminava-se, 
não do que fez mas do que não chegou a fazer.
Por não ter levado ainda mais longe 
a sede assassina dos seus instintos!..

Na verdade, no  perfil do grandalhão e insensível do Zé Mulato:
- De alto a baixo daquele seu enorme corpanzil - só havia maldade! - 
Que o passar dos anos ainda mais azedara e não erradicara.
A escolha  para capataz não foi obra do acaso:
O regime colonial foi buscá-lo à cadeia
onde cumpria pena grave 
por ter salsado e esquartejado
à machinada a sua infeliz companheira.

Pelo que depreendi, o colonialismo-fascista
- para levar a cabo com eficiência o plano de atrocidades -,
estava perfeitamente consciente dos riscos e do que fazia:
historicamente, é o grande réu e culpado
do vergonhoso e ignóbil massacre do Batepá.
Pois não podia ter escolhido
maior assassino e vilão,
maior  sanguinário e bandido!


Após, o 25 de Abri, reabriram-se processos e reviu-se o caso:
Procurou-se ressarcir-se algumas das vítimas.
Porém, por mais boa vontade que  houvesse
- eu não  acredito que tivesse havido -,
não há dinheiro algum, seja qual for a palavra justiça 
- seja lá, em qualquer ponto da Terra, seja onde for,
que possa  justiçar e redimir 
o sofrimento,  a morte, o  luto  e a dor
de tão horrenda e inqualificável carnificina
Não, não me arrependo de nada!.. 
 Rematava o Zé Mulato, ao questioná-lo: sem alterar
o semblante odioso e carregado,
sem esboçar o menor remoque de consciência,
sem alterar a mesma dura frieza
com que começar a desbobinar
o rol das atrocidades que havia cometido.
Sem exteriorizar o mais leve sentimento de arrependimento,
sem manifestar o menor pudor ou vergonha,
sem alterar o tom de voz e o mesmo ar de insensibilidade,
de quem faz mal, provoca  a dor o sofrimento e a morte
e parece passar completamente à margem de tudo isso.

Arrepender-me?!... Era o que me falava!!..
O que lá vai, lá vai! O que passou,  passou!...
O 3 de Fevereiro de 53 já  não é de hoje! (1)
Eu não olho para trás quando vou ao volante do meu carro!...
- Olho em frente!!...
Eram ordens, meu senhor!.. Ordens do  Governador!
Eu cumpri as ordens! Era meu dever cumprir as ordens!...
Tudo quanto fiz  foi em serviço!
Não tenho  culpa de nada 
e nada tenho contra o Gorgulho Governador!
Não sinto  remorsos de coisa nenhuma.
Não houve nenhum massacre!
Eu era apenas o capataz!
Não  era mais nada!

Será que a alma  desse vil assassino,  desenvergonhado algoz
- ele que abandonou a cidade disfarçado
de fato-macaco azul e entrou no avião à socapa,
(deixando para trás a oficina da carpintaria  para buscar refúgio na metrópole: 
na terra do pai mas longe da sua pátria),
- sim, esse vilão, que também já lá está - 
ele os outros que foram tão algozes como ele e lhe deram as ordens,
poderão algum dia ter ponta de perdão, descansar 
tranquilamente de tanta maldade!
Descansar sem remorsos no outro mundo em paz?!...
Deus é grande! Pois é... mas não morre!
E a morte dos que cedo partem  não é menor!... 

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