expr:class='"loading" + data:blog.mobileClass'>

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

S. Tomé e Príncipe – Homenageou hoje os mártires de 3 de Fevereiro de 1953, junto ao monumento em memória dos que tombaram no massacre do Batepá – No local do famigerado campo de concentração de Fernão Dias


Por Jorge Trabulo Marques - Colaboração fotográfica de Adilson Castro 

A Marcha da Liberdade é uma das já tradicionais manifestações, que marca o início das comemorações dos fatídicos massacres do  Batepá  -  O ponto de concentração, começou na Praça da Independência, na cidade de S. Tomé, com centenas de jovens que, desde aquele emblemático local, logo pela manhã,  começaram a dirigir-se até Fernão Dias, onde costumam decorrer as cerimónias, alusivas aos 3 de Fevereiro de 1953, ou seja, nas imediações  do cais onde chagavam os trabalhadores contratados atulhados em sufocantes porões, nas mais miseráveis condições,  relativamente próximo do terreiro da antiga dependência da então Roça Rio do Ouro, local onde se situava   um autêntico campo de tortura e extermínio, sob o comando de um verdugo, conhecido por "José Mulato, recrutado das celas da prisão por vários crimes de violência doméstica e homicídio  – E este ano, com uma curiosidade acrescida, a da inauguração de  um novo memorial, erguido no alto  de um palanque, sobranceiro ao mar e aos caminhos que ali se cruzam e desembocam, com uma soberba panorâmica sobre a vasta planura de palmeiras, coqueiros e alguns pântanos, que também foram o cenário aos olhos aterrorizados dos milhares de infelizes que ali perderam a vida, sem outro conforto que não fosse o da paisagem envolvente 








A sessão comemorativa, à semelhança nos anos anteriores, salvo o ano passado, em que os atos públicos foram transferidos para o Museu Nacional, contou com a participação do Presidente da República e do Primeiro-Ministro,  dos membros do Governo, em exercício, bem como as principais entidades, tanto nacionais como estrangeiras – E, naturalmente, ainda dos escassos sobreviventes e de  muito povo – De imensa gente que não deixa de se associar ao espírito da efeméride

A cerimónia foi inaugurada com a deposição de uma coroa de flores pelo Presidente da República, junto ao novo Monumento dos Mártires da Liberdade, de autoria do arquiteto Alexandre d´Alva -


Ouviram-se  cânticos e prédicas dos principais credos religiosos, que ali se fizeram representar. Viram-se rostos, ainda emocionados ou com as rugas e expressões, ainda bem estampadas nos  semblantes de um punhado de  sobreviventes, dos que lograram resistir e que ali compareceram - Que ainda hoje não conseguem disfarçar as mazelas imensas, de que foram alvos, os imensos sacrifícios, o terrível sofrimento, a que foram submetidos   - A contrastar com os sorrisos de alegria da juventude, a mais calorosa e participativa, que, embora informada do significado do lugar, sabe que a melhor forma de fazer perdurar a memória dos seus antepassados, dos que ali tombaram, é também honrá-los, em ambiente festivo, mas pacífico, com o entusiasmo e o calor da sua vitalidade, determinação energia - Pois, no fundo, é sempre este o maior desejo dos que sabem que vão morrer por uma  causa nobre e justa e a que não resta outra esperança, senão a certeza ou a confiança  de que os vindouros, possam desfrutar de um melhor bem-estar e modo de vida, que eles não tiveram.





Não se ouviram discursos do alto de um qualquer púlpito, e, todavia, os políticos de S. Tomé e Príncipe, estiveram lá todos,  representados e irmanados no mesmo sentimento comum: o de honrar a memória daqueles que foram os percursores da luta anti-colonial, os heróis  da luta pela independência nacional  de São Tomé e Príncipe conquistada em 12 de Julho de 1975

Temos que render homenagem àqueles que dedicaram o sacrifico extremo para nós hoje sermos livres; devemos fazer tudo para merecermos a liberdade que temos; porque aqueles que morreram em 53, fizeram um sacrifício para termos o que somos hoje – E temos que fazer o melhor para que aqueles que vierem depois de nós, também se orgulhem de nós” – Disse o Presidente, Manuel Pinto da Costa, no final da cerimónia e em declarações aos Jornalistas. Por sua vez, o Primeiro-ministro Patrice Trovoada, optou por sublinhar a mensagem veiculada pelas religiões, que apela à  união da paz e do entendimento entre os jovens”.


Sim, já  lá vão 63 anos mas os santomenses ainda hoje não esquecem  as  milhares de vidas que tombaram vitimas da barbárie e da prepotência  das ordens do então Governador Carlos Gorgulho  - Atos de cruel selvajaria,que  ficariam conhecidos, para a posteridade,  como os Massacres do Batepá. Tudo isto pelo facto de a população nativa se haver recusado aos trabalhos forçados nas plantações do Cacau e do Café ou para trabalharem como escravos nas obras públicas,  o que desencadeou do então governante uma tenebrosa onda de repressão, fúria e malvadez, que viria a provocar milhares de mortos -  E mazelas de um sofrimento, inexprimível, naqueles que lograram resistir

RECEBIDOS EM ENCONTRO INFORMAL PELO PRIMEIRO-MINISTRO PATRICE TROVOADA - E ainda pelos Ministros da Juventude e desportos, Marcelinho Sanches e pelo Ministro da Educação, Cultura e Ciência, Olinto Daio 


Ministro da Educação,  Cultura e Ciência,  com os alpinistas


Tal como referi na anterior postagem, encontram-se, na cidade de S. Tomé, desde esta última terça-feira, duas equipas de alpinistas e investigadores ( dois casais ) especialistas em escalada e mergulho submarino, para uma visita de estudo ao sul da Ilha, com eventual tentativa do Pico Cão Pequeno e, em colaboração, com Jorge Trabulo Marques,  participarem  nas pesquisas, que, desde há dois anos, tem sido realizadas, por este investigador e jornalista, nomeadamente em Anambô, onde é suposto ter começado a colonização portuguesa

Primeiro-Ministro, Patrice Trovoada, encontro informal 
 E ainda pelos Ministros da Juventude e desportos, Marcelinho Sanches e pelo Ministro da Educação, Cultura e Ciência, Olinto Daio 

A, referida equipa, que conta permanecer dez  dias na Ilha de S. Tomé, é constituída por Paulo Ferreira, Engª de Ambiente; Duarte Calheiros, médico oftalmologista; Rogério Alpine Morais, Ciências Sociais, formador na Associação Desnível, em Cascais, http://desnivel.pt/actividades/curso-alpinismo-n1-2015/ , todos naturais de Lisboa e Catherine De Freitas, de nacionalidade canadadiana, Design gráfico residente em Portugal, há vários anos – Ambos, dedicados investigadores e com um vasto currículo, em mergulho marítimo e  de escalada nalguns dos picos mais difíceis em várias partes do mundo

BAPETÁ - A PÁGINA MAIS NEGRA DO PERÍODO COLONIALl

COMO A MORTE CEIFOU POR COMPLETO UMA PEQUENA ALDEIA E SE ALASTROU POR QUASE TODA A ILHA -  AS CONFISSÕES DO CRIMINOSO ZÉ MULATO  E DO "HOMEM "CRISTO"- O HOMEM QUE FOI CRIVADO DE BALAS E SOBREVIVEU (relato de um santomense que fora torturado - 20 anos depois - agora já lá vão 58 ).

Escasseava a  mão de obra barata..
E o governador planeava construir grandes edifícios
à custa do trabalho forçado nas ilhas
 e  mandou o ajudante de campo 
armado em soldado nazi a comandar 
um grupo de milícias para  ordenar
o trabalho obrigatório..
num verdadeiro retorno aos primórdios
do ignóbil e duro esclavagismo,
até que,  numa remota aldeia perdida no mato, 
algures pela Vila da Trindade,
alguém se encheu de coragem e reagiu 
sobre o fogoso e arrogante alferes,
que teve a reação popular que merecia 
e à altura da leviandade
e do desprezo como olhava a  população 
e impunha  a sua vontade .

A partir daí o Governador  Gorgulho -  para salvar  a face 
dos seus desmandos e  prepotências,
e, como os grandes erros, nunca vêm sós,
para justificar uns cometia outros, cada vez mais graves. 
passou acusar os "rebeldes" de comunistas,
através da imprensa e da rádio.
E  não tardou que os colonos - incentivados  ao ódio à  dita   "hidra comunista", 
respondessem ao apelo dos muitos boatos propalados:
"Há notícias de que foram avistados submarinos soviéticos ao largo 
e descarregadas armas para apoiar a revolta  dos negros insurretos contra 
a integridade desta província ultramarina!"  - Foram detidos
e presos vários suspeitos. O governo promete firmeza 
e mão pesada aos criminosos! 
Por toda a ilha mobilizam-se milhares de voluntários."
- E, quilo que  poderia ter sido um caso isolado,
depressa é rotulado de rebeldia comunista.

Face a tais atoardas e  falsos alarmes, as roças  passam ao ataque:
empregados de mato e dos escritórios, 
feitores e administradores - e até capatazes negros -
  partindo em jipes de todas os cantos da colónia,
concentraram-se na Trindade, e, fortemente armados,  dirigem-se
através dos caminhos do mato ao Batepá, descarregando  tiroteio forte e feio, 
(naquela e noutras aldeias) sobre as populações indefesas e pacíficas
- mães com os filhos às costas,  homens,  mulheres e inocentes criancinhas,
e até porcos, cabras e galinhas -,
tudo é imediatamente alvejado e varrido!
Tudo quanto é vivo e apanhado pela frente,  é vítima
das maiores  atrocidades e dos disparos mortíferos
das velhas máuseres alemãs hitlerianas - herança do nazismo.
A  fúria assassina só terminou, quando, 
em escassos cinco dias,
rapidamente todas as munições se esgotaram na ilha
- Para trás, ficava um autêntico banho de sangue,
aldeias totalmente queimadas e destruídas
e inúmeros cadáveres estendidos
sobre o chão fértil e verde  da luxuriante floresta.

E a paz , que ali reinava dantes, 
dava lugar a um autêntico cenário de horrores: 
por todo o lado havia a imagem e o cheiro da morte!...
- E aqueles que conseguiram escapar,  feridos ou vivos,
onde quer que se encontrassem,
vertiam agora lágrimas de dor e de luto, de desespero e aflição.
Rara era a família santomense que não chorasse
um dos seus mortos.
 - Porém, o macabro crime não tardaria também a atingi-los 
da forma mais violenta e cobarde.
Enceta-se a caça aos "culpados" e outro cenário cruel
rapidamente vai ter lugar.

O governador ordena a matança  de  uma assentada 
e depois arrasa, em campos de morte e repressão,
outros tantos  milhares
para justificar o injustificável:
o  abominável crime, as incomensuráveis arbitrariedades

Ouvi as declarações e os desabafos de algumas das vítimas 
que sobreviveram  ao massacre do Batepá 
e às prisões  e  torturas de centenas de mortes que se seguiram.
Por fim,  também ouvi o principal carrasco, cujo diálogo
registei para um pequeno gravador . Recebeu-me na sua oficina, cá fora,
encostado à sua carrinha. Mas não foi fácil falar com o  corpulento Zé Mulato.
E até me dirigi a ele com alguma relutância e   medo,  receando
que pudesse ter a mesma atitude intempestiva 
dos colonos e me agredisse - Não o fez fisicamente
mas as suas palavras soaram-me a balas,
a extrema violência e a  fusis!

Não queria falar 
e vi que também estava zangado comigo: "Você é um parvo!!..
Tinha obrigação de conhecer  melhor o preto!!..
Eu sou negro e analfabeto e sei bem o que sou: conheço a minha rês!!" 
Mas depois de o deixar desabafar,
lá foi desfiando alguns dos episódios, 
revelando pormenores
do acontecimento macabro

Sei que não serei capaz  de o recapitular.
Embora me lembre, todavia, de tudo quanto me disse.
- Sim, já me haviam relatado os seus crimes,
mesmo assim não esperava tão inesperada confissão.
actos de tamanha impunidade e crueldade!
Descritos  com tão flagrante e  desbragada  sinceridade.
Tão crassa frieza,  impiedade e desfaçatez
Cujas palavras ainda  me não  saíram  
completamente dos ouvidos,
tal a impiedade com que as pronunciou 
e  a impressão com que ainda  hoje as recordo.
Mas vou tentar - vou ver o que consigo.

Sim, confessava-me ele num certo dia e com  palavras  de arrepiar:
numa entrevista que depois não chegou a sair na Semana Ilustrada 
Disseram-me de Luanda que era muito chocante e não podia ser publicada:

"Em Fernão Dias eu era o capataz 
e fui uma máquina bruta a matar!!...
Era eu quem mandava. Cumpria ordens!...
O que querem agora que eu faça?!..
Querem que eu me mate 
ou querem que eu me deixe  matar por eles?!...
Agora andam para aí a rondar-me a porta: 
o primeiro que aqui entrar, 
deixo-o aqui degolado, não sai daqui inteiro nem vivo!...
Querem que lhes dê o  mesmo trato?!... 
A uns matava-os a soco, outros a tiro, à paulada ou à machinada! 
Alinhava-os ao longo da vala para não me darem muito trabalho.
Alguns ainda gritavam lá dentro, mas calava-os imediatamente,
com umas quantas pazadas de terra. 
Nem era eu que as deitava,
mas a outra "empreitada"
que vinha logo  a seguir.

O campo estava vedado de arame farpado
Mas houve quem fugisse. Houve uns macacos que se puseram andar!!..
Por isso,  passei acorrentá-los para não se escaparem,
e, às vezes,  para não me maçar  muito,
mandava-os carregar água do mar em potes até se cansarem!..
E tinham que andar ligeiros, dar a volta pelos coqueiros 
e a despeja-la ali de novo à beira  da praia!
Dei muitos murros e pontapés até se cagarem!
Depois mandava-os abrir as covas 
para outros os enterrarem!
Não tenho pena de nenhum dos que matei!  
- Foram  uns  milhares de  "comunistas"  à  vida! 
Fui duro!... Bem sei... Tinha de ser...
E não me pergunte se  estou arrependido,
não senhor! Não estou!!.. - Outros amarrava-os  à cadeira
dos choques eléctricos: 
"até pulavam!...Até gritavam!... 
Eram uns tristes ... Coitados!...Passavam sede e fome!.. .
Andavam magros como os cães!... Alguns caiam já mortos!..
Eu sei...Foi duro!.. Eram meus patrícios!...
Mas quem é que os mandava ser comunistas?!..
Houve muitos que sempre  negaram a morte do alferes
por mais verdoadas que levassem!

Oh! mas quando o cacete lhe caía nas costas!...
Ou o chicote lhes zurzia na cabeça e no focinho!...
Não havia língua que não se soltasse!
Abria-se-lhe logo a boca p´rá  verdade!!... 
E os desgraçados até  me davam vontade de rir
quando de repente confessavam:
." - Perdoa-me Zé Mulato! Perdoa-me Zé Mulato!
Eu sou comunista! Eu sou comunista! 
Não me mates!!Não me  mates!!!
Estou arrependido!
não me meto mais noutra!!"
- Era então quando lhe dava mais porrada!
Virava pau em cima deles!... Pau até partir ou rachar cabeça deles!..
  Ainda mais os  espancava!!...

Comunistas? - pergunto eu. Sabiam lá os tristes massacrados
o que era o comunismo!Nem  ele próprio sabia.
Mas, lá está... Zé Mulato era lesto e  mau!
Portava-se como todo o  mundo fosse seu. 
Cumpria as ordens que vinham de cima
por inteiro e ainda abusava!
Queria lá saber do sofrimento alheio!...
O verdugo  era impiedoso e não hesitava!

"Depois duns  valentes choques eléctricos, aos mais renitentes,
desapertava-lhe as fivelas, tirava-lhe os coletes e as correias,
soltava-os,  ficavam doidos e tontos, pareciam macacos esgazeados!
  Atiravam -se direitos às paredes às cabeçadas!
Até sangrarem-lhes os dentes!
Caiam no chão e  esperneavam!
E eu depois lá tinha de acabar com eles,
com uns pontapés na cara! - Esmagava-os!!...
O negro é rijo!... Custa a morrer! 
Eu também sou da mesma fibra.. 
e venha aí o primeiro 
que me queira dar alguma cacetada!
Senão os matasse nunca mais morriam e se acalmavam!
Dava em maluco!... Ainda ia ficar mais estragado do que eles!!..
Então era gritaria a toda a hora e  nunca mais se calavam!..

Mas Sô Zé Mulato tinha o perfil do carrasco ideal,
nem ia ficar louco nem minimamente  se impressionava!
- E, pelo que me disse, até achava muita graça e  piada - Porém, a tal cadeira 
- só de se ver - era mesmo real e  macabra.
Sim, ainda vi a imagem cruel e fotografada desse abominável suplício!
- Tive-a nas mãos mas não a pude publicar: o editor da Voz de São Tomé, 
(jornal do regime), essa e outras horrendas imagens não mas facultou
nem ele as publicou - espero  que estejam  guardadas em arquivo
- Um tal militar (um tenente fascista)  encarregou-se de limpar 
os arquivos da PIDE e o que não interessava.


Entrevistei sobreviventes 
e publiquei fotografias que me valeram  - por duas vezes -
 todos os  pneus do meu carro à navalhada,
- isto já depois de uma tentativa de ser abalroado na estrada,
posta uma forca de corda pendurada por colonos à porta de minha casa,
ainda voltei a ser alvo de  muitas cenas de ódio
e afrontosas  patifarias! - Uma ocasião invadiram o Palácio,
e, quando me viram, eram milhares  de colonos à pedrada atrás de mim:
salvou-me o facto de ver uma porta aberta e subir pelas escadas
e me esconder no telhado - Felizmente houve quem assistisse
à perseguição e visse o meu esconderijo: um santomense,
pela calada da noite, chamou-me
e levou-me para o seu humilde casebre,
algures fora da cidade,
onde me tratou dos ferimentos
e, durante duas semanas, me acolheu generosamente.
Quando voltei à minha modesta casa - um simples quarto alugado
num edifício de escritórios, o seu estado era irreconhecível:
partiram-me tudo - roupa rasgada,
máquina de escrever destruída,
de inteiro não ficara nada.. 

Falei  com o "Homem Cristo", o único sobrevivente
que, entre três dezenas de aprisionados,
numa  cela de polícia, irrespirável, minúscula e apertada,
logrou resistir e pôde  escapar-se  a uma saraivada de balas!
Pois, de  manhã, o carcereiro ao abrir a porta
munido de  uma arma,  vendo-o a fugir,
apresou-se a carregar  sobre ele toda  a metralha
crivando-o, quase completamente, com dezenas de disparos.

Mostrou-me, em sua casa, as calças completamente esburacadas
por onde cada bala  fizera a sua perfuração,
desde os pés, às pernas e quase  à cintura,
fora  os disparos que o atingiram noutras partes do corpo.
Confesso que fiquei incrédulo: nem queria acreditar
no mistério assombroso  que teria estado na sua salvação.
Mas a verdade é que ele estava vivo
e estava ali à minha frente.
Era de carne e osso como eu.
Era um ser humano. Não se sentia nem inferior nem superior a nada.
Nem era nenhum espírito de outro mundo, duende ou fantasma.

Interrogava-me de como teria sido possível resistir
ao despejar de carregadores de balas, suportar tanta metralha
e ficar vivo?!...- Oh, sim.. Pobre homem!... Foi um milagre!
Estou a imaginar o sofrimento
e a enorme aflição por que passou
na sua atormentada mas tão espetacular fuga!
- Claro que foi um homem de sorte!... Apesar de fortemente baleado,
foi um felizardo ter sobrevivido! - Um verdadeiro milagre que o salvou!
- Por esse motivo, por essa razão,
passaram a chamar-lhe o "HOMEM CRISTO"

Eu vi a franzina figura desse  CRISTO!
Desse pequeno grande homem, corajoso, simples e humilde.
e o mais surpreendente de tudo é que ele parecia
não alimentar o menor rancor, ódio ou mágoa
de quem quer que fosse!...No seu rosto
transparecia confiança  e uma espécie de  luminosa claridade!
- E até sorria, quase com infantil ingenuidade
quando olhava para as calças e me dizia:
"Veja a sorte que eu tive!... Veja como  as  balas
furaram as minhas calças, atravessaram
as minhas pernas  e não me mataram!..."
Espantoso! - Todas estas palavras
expressas com tão claríssima serenidade!
-
Sim, apesar de tudo, as malditas balas - que tudo perfuram - foram suas  amigas,
deixaram-lhe as pernas ensanguentadas  e  quase partidas
mas não o deixaram estendido e o atiraram para a sepultura
(tal como os demais companheiros que morreram horrivelmente asfixiados)
Ele estava ali à minha frente,
embora cheio de cicatrizes,
mas ainda bem lúcido e vivo!
Todavia, a testemunhar
e a gritar aos céus e a Deus,
tão gritante tirania
e maldade!


- Curiosamente, o saber perdoar aos seus algozes, 
não alimentar deles rancores nem ódios, 
dar a vida pelos homens de boa vontade,
não  ver inimigos em qualquer rosto 
e ser infinitamente bom e amoroso
é também a imagem, legada
do coração prenhe de uma infinita bondade,
exemplo pacífico e de caridade,
sim, é precisamente o que  transparece  
da vida e da morte, o coração generoso
de  Jesus Cristo - o  crucificado
 Na verdade, o desprendimento, o amor ao próximo, 
o ser humilde e saber perdoar
é o que define as virtudes e as qualidades
dos grandes espíritos  - E o HOMEM CRISTO,
era um desses raros espíritos
que o bom povo,
onde nasceu, viveu e cresceu,
tão cedo o esquecerá.


Também  vi chagas vivas  em alguns sobreviventes
  tal como as que foram provocadas pelos  pregos 
e as pontas de lança nas mãos e nos pés 
do filho de Maria e de José - iguais às do Cristo crucificado.
Causadas pelos argolas de ferro agrilhoadas nas  pernas
dos que foram brutalmente espancados
e barbaramente seviciados e acorrentados
- Vi e reconheci, estupefacto, que, passados 20 anos, 
e por força da  maresia, da humidade e do sal, 
durante o logo e brutal cativeiro  a que foram expostos,
ainda existiam feridas que não tinham totalmente sarado:
e não só eram bem visíveis como expunham bem as marcas 
deixadas pelas  correntes e as argolas,
como se o hediondo massacre 
tivesse ocorrido de véspera!

Mas, Sô Zé Mulato estava consciente da suas maldades 
e conhecia bem as vítimas.
E o que mais o incomodava não era o sentimento  de culpabilidade!..
Que parecia não ter  nenhum: mas saber que houve sobreviventes
e  estar desgostoso por  não os ter  matado a todos!
Eu vi esse desejo,  esse requinte,  esse ódio bem patente, no seu semblante! - 
Não suportava que lhe falasse dos que dele se queixavam:
dos que estavam vivos e haviam resistindo às suas atrocidades.
Vinha logo com as mais insólitas acusações!...  Que resumia, repetidamente,
nesta  mesma expressão:  "Esses pretos não prestam!,"São todos uns aldrabões!"
No seu ponto de vista, 
os criminosos eram eles! - Zé Mulato   o bonzinho.
Ele sabia que era mau, mas, por vezes, contradizia
 a confissão: "Eu nunca fiz mal a ninguém! 
Eu cumpria as ordens que me davam!!.." 
Porém, logo a seguir, recriminava-se, 
não do que fez mas do que não chegou a fazer.
Por não ter levado ainda mais longe 
a sede assassina dos seus instintos!..

Na verdade, no  perfil do grandalhão e insensível do Zé Mulato:
- De alto a baixo daquele seu enorme corpanzil - só havia maldade! - 
Que o passar dos anos ainda mais azedara e não erradicara.
A escolha  para capataz não foi obra do acaso:
O regime colonial foi buscá-lo à cadeia
onde cumpria pena grave 
por ter salsado e esquartejado
à machinada a sua infeliz companheira.

Pelo que depreendi, o colonialismo-fascista
- para levar a cabo com eficiência o plano de atrocidades -,
estava perfeitamente consciente dos riscos e do que fazia:
historicamente, é o grande réu e culpado
do vergonhoso e ignóbil massacre do Batepá.
Pois não podia ter escolhido
maior assassino e vilão,
maior  sanguinário e bandido!


Após, o 25 de Abri, reabriram-se processos e reviu-se o caso:
Procurou-se ressarcir-se algumas das vítimas.
Porém, por mais boa vontade que  houvesse
- eu não  acredito que tivesse havido -,
não há dinheiro algum, seja qual for a palavra justiça 
- seja lá, em qualquer ponto da Terra, seja onde for,
que possa  justiçar e redimir 
o sofrimento,  a morte, o  luto  e a dor
de tão horrenda e inqualificável carnificina
Não, não me arrependo de nada!.. 
 Rematava o Zé Mulato, ao questioná-lo: sem alterar
o semblante odioso e carregado,
sem esboçar o menor remoque de consciência,
sem alterar a mesma dura frieza
com que começar a desbobinar
o rol das atrocidades que havia cometido.
Sem exteriorizar o mais leve sentimento de arrependimento,
sem manifestar o menor pudor ou vergonha,
sem alterar o tom de voz e o mesmo ar de insensibilidade,
de quem faz mal, provoca  a dor o sofrimento e a morte
e parece passar completamente à margem de tudo isso.

Arrepender-me?!... Era o que me falava!!..
O que lá vai, lá vai! O que passou,  passou!...
O 3 de Fevereiro de 53 já  não é de hoje! (1)
Eu não olho para trás quando vou ao volante do meu carro!...
- Olho em frente!!...
Eram ordens, meu senhor!.. Ordens do  Governador!
Eu cumpri as ordens! Era meu dever cumprir as ordens!...
Tudo quanto fiz  foi em serviço!
Não tenho  culpa de nada 
e nada tenho contra o Gorgulho Governador!
Não sinto  remorsos de coisa nenhuma.
Não houve nenhum massacre!
Eu era apenas o capataz!
Não  era mais nada!

Será que a alma  desse vil assassino,  desenvergonhado algoz
- ele que abandonou a cidade disfarçado
de fato-macaco azul e entrou no avião à socapa,
(deixando para trás a oficina da carpintaria  para buscar refúgio na metrópole: 
na terra do pai mas longe da sua pátria),
- sim, esse vilão, que também já lá está - 
ele os outros que foram tão algozes como ele e lhe deram as ordens,
poderão algum dia ter ponta de perdão, descansar 
tranquilamente de tanta maldade!
Descansar sem remorsos no outro mundo em paz?!...
Deus é grande! Pois é... mas não morre!
E a morte dos que cedo partem  não é menor!... 











Nenhum comentário :