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terça-feira, 1 de novembro de 2022

Odisseia no Golfo da Guiné - Neste dia, há 47 anos, andava eu perdido numa frágil piroga - A Sobreviver há 11 dias no mar dos tornados e tubarões

Jorge  Trabulo Marques - Jornalista e antigo navegador solitário em frágeis pirogas de S. Tomé 

Neste dia, há 47 anos, algures no imenso Golfo da Guiné, andava eu perdido a bordo de um tosco madeiro escavado ao sabor das correntes e dos ventos, enfrentando terríveis tempestades e perigosos ataques de tubarões, esfomeado e martirizado pela incerteza e pela sede - Não arrisquei a vida em busca de efémeras glórias mediáticas ou medalhas, nem as desejo aceitar mas por que me bati por nobres ideais e quis dar sentido à minha vida


E lá parti de calções e descalço, sem dinheiro no bolso, sem relógio e despojado de tudo; confiante de que a canoa seria o meu único soalho e o meu único abrigo e não me deixaria ficar pelo caminho. Todavia, sem saber por quanto tempo e os trabalhos que haveria de ter pela frente....Certo, no entanto, de que (à semelhança das duas anteriores viagens: de São Tomé à Ilha do Príncipe e São Tomé à Nigéria), haveria de encontrar dias e noites de paz e de calma (momentos maravilhosos!) e outros dias e noites de sobressalto, de tormento e agitação

Sozinho, apreensivo e triste, lá vou balanceado pela noite afora, velejando ansioso, proa apontada ao desconhecido. Tosco pano içado em tosca vara de mato a desafiar os ares destes turbulentos mares. Atento e vigilante. Atormentado pela incerteza, pela fome e pela sede- sim, a água que recolhi das chuvas, é pobre. Sem comer e sem poder dormir, lá vou velejando, impossibilitado, mais das vezes, de o fazer. Derivando, indo arrastado, ignorando o destino para onde me conduz o movimento incessante deste ondulante e lívido manto líquido.

Mas, oh Deus, a lua, descoberta ou encoberta, lá segue imperturbável o seu percurso - Jamais força alguma a desviará a impedirá de mostrar à Humanidade e a toda a Criação, as várias faces do seu rosto. Mas, o meu destino, como será?!... Sozinho e abandonado, debaixo da sua luz, ao sabor dos caprichos do mar e do vento, para onde me levará a noite?!... Qual o meu caminho?!... .. Quem me responde?!...

A que enseada de águas calmas, límpidas e profundas, a que bom porto de abrigo ou praia de areia fina, a minha canoa, poderá tranquilamente acostar? Ou a que íngreme escarpa, promontosa arriba, rochosa falésia, poderei vir a ser atirado e despedaçado?!... E, depois, o que poderá acontecer-me se pisar a tão desejada floresta, luxuriante e fértil, carregada de frutos silvestres, chão viçoso e perfumado, a tão ansiada terra firme?!...

Como irei ser recebido?!...Apiedando-se de mim, deste miserável náufrago, acolhendo-me, humanamente, ou intrigando-se com o meu aspeto, magro, atormentado, queimado e olheirento, de criatura vinda de outro mundo?!...

Recebendo-me com desumana desconfiança e hostilidade, como perigoso invasor e foragido?!.. Vendo em mim o ser pacífico, que ousou enfrentar sozinho as procelosas ondas dos tornados ou o vil estranho, o suspeito, desembarcado de barco espião ou pirata?!...

Ao fim de 38 dias de exaustivo tormento, conheceria a resposta - detido, algemado, encarcerado!... Mas, agora, era a noite, mais uma longa noite equatorial, um longo e exaustivo desafio - E, cada noite, nestes mares, não é uma noite, como outra qualquer, mas a sombria eternidade, a sempre misteriosa e antiquíssima noite, que, a cada momento, vai mostrando, aos meus olhos, ansiosos e perscrutadores, as mais diversas máscaras e fantasmas, com que se cobre ou revela.

SÓ O NÁUFRAGO SABE O QUE É A IMENSA SOLIDÃO DO MAR...

Ora subia ora descia numa vertiginosa ascensão e descida. Não havia horizonte à minha frente ou à minha volta. Senão névoas, chuva e mar revolto, vento e cristas espumosas que rebentavam e se desfaziam...

Covas profundas e picos de montanhas que, com a mesma rapidez que me elevavam, assim me faziam deslizar...Mas lá ia a frágil piroga - o madeiro escavado - rumo ao desconhecido e superando a fúria das ondas... De vela feita de panos de sacos de farinha e presa a um pau cortado no mato. Com um tosco remo improvisado, cravado nas agitação das águas, soprado por rijos ventos, enfrentando a tempestade...
Não, não há palavras para descrever aquilo que ofusca os olhos, agita e assusta o coração, quase asfixia os pulmões e atordoa e deslumbra de espanto e aflição: a alma, o corpo, os sentidos...A vastidão dos mares, quando irados por porcelosos vendavais, em noite escura como o breu, oh desgraçados daqueles que forem surpreendidos sozinhos e em frágeis balsas, em meros esquifes flutuantes, oh! se outro inferno existe depois da morte, talvez melhor sorte terão as almas que já por lá se debatem! - Resta-lhe a resignação à fatídica hora, a imagem da assombrosa expiação, mergulhados na beleza bravia e selvagem do cenário que os ameaça ou já os devora , ou então lutarem, como bravos, até ao último fôlego e nunca se darem por vencidos. Sim, que o desespero nunca seja a última causa do termo das suas vidas.

Sim, o mar palpita e freme, tem muitos humores, não é um corpo sem vida e morto - e junto à costa ainda é mais turbulento e nervoso. Eu ia mentalizado para tudo... Até para aceitar o naufrágio e a morte, se fosse essa a vontade do oceano... Mesmo que estivesse aflito, a ninguém podia implorar auxílio.... Batia-me por propósitos, estava disposto a encarar os maiores sacrifícios; não era uma aventura gratuita.. Isso encorajava-me! - O que eu não esperava é que tão cedo viesse a ficar sem mantimentos, sem leme e sem remos. Afinal, em boa parte, o mar deu-me aquilo que lhe pedi... O de demonstrar que as canoas podem ligar as ilhas com o continente, tal como o teriam feito os seus primeiros povos e, ao mesmo tempo, viver as mesmas ansiedades, incertezas e privações do náufrago e chegar a terra são e salvo - Mas, oh Deus!...A que preço!... E os prémios?!...

Como se não bastasse o tormentoso calvário... Por três vezes onde aportei, fui preso e encarcerado por suspeito e perigoso! - O mar fez-me sofrer imenso mas poupou-me a vida. E, se alguma vez pecara, trazia o coração atormentado mas liberto, os olhos cansados de tanto perscrutar as noites cerradas ou os agitados horizontes mas puros de espaço e maresia, tinha a plena sensação de que o meu sofrimento me reconduzira à idade da inocência e me libertara de toda a mácula. Porém, em terra, foi tal a vil desconfiança que sempre se abateu sobre mim, que cheguei a pensar se não foi um castigo infame e maldito ter chegado vivo a terra.. se não teria sido preferível ficar para sempre - morto ou vivo - sobre as ondas ou no fundo do mar..

"Sempre enfim para o Austro a aguda proa
No grandíssimo gólfão nos metemos,
Deixando a serra aspérrima Leoa,
Co'o cabo a quem das Palmas nome demos.
O grande rio, onde batendo soa
O mar nas praias notas que ali temos,
Ficou, com a Ilha ilustre que tomou
O nome dum que o lado a Deus tocou."

In Lusíadas

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