Jorge Trabulo Marques - Completam-se hoje 47 anos - Náufrago, algures no Golfo da Guiné, 8 de Novembro de 1975
Diário de Bordo- Alto lá!... Acabo de ver, pela primeira vez, um farol, o sinal de um farol!!... Parece que sim... que deve haver um farol.... Porque chega aqui um sinal luminoso, de lá de longe!...Deve ser , portanto, o farol de Fernando Pó...
UM FAROL NAS DISTÂNCIAS! – Ao náufrago, o piscar do seu pirilâmpago, é como se um raio de luz divinal se escancarasse aos seus olhos aterrados pelas trevas e pela incerteza e lhe devolvesse a luminosa esperança de se salvar.
E foi realmente essa a ilusão da esperança que tive ao fim de mais um atormentado dia, e, quando, as sombras, a escuridão se estendiam à minha volta e por toda a abóboda celestial, cobrindo toda a vastidão do céu e do mar, numa escuríssima cor vogando a bordo de uma frágil piroga, escavada no tronco de ocá numa floresta dos arredores da Vila das Neves, atual cidade e capital do distrito de Lembá, a norte de S. Tomé.
Depois daquelas palavras, vertidas para um simples gravador, que guardava no interior de um vulgar caixote do plástico do lixo, canto ainda “A noite plácida!”, após o que me deito, acreditando que o amanhecer me aproxime definitivamente de terra.
E assim iria terminar o 19º dia a bordo de um frágil tronco escavado no vasto Golfo da Guiné, há precisamnte 47 anos.Mas ainda iria ter pela frente mais 19 dias até acostar a uma discreta reconcavidade de areia escura da Ilha de Bioko, antiga Ilha de Fernando Pó, Guiné equatorial
Diário de Bordo 1 - Hoje é o 19º dia. Este é o meu calendário. Não sei qual será neste momento o de Terra - Dizia eu para o pequeno gravador que consegui preservar no interior do meu baú, um caixote de plástico.
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Mais uma noite de vigília. O temporal de ontem à tarde, manteve o mar ainda muito cavado pela noite adentro, embora, pouco a pouco, fosse ficando mais calmo. Mesmo assim, não consegui reconciliar o sono; estive toda a noite atento. Enfim, atento às águas e à proximidade de Fernando Pó ou até da Nigéria.
A manhã amanheceu com uma certa bruma mas até certo ponto radiosa!... Quer dizer, muito sol, algumas nuvens, mas bastante sol!... O mar calmo! Completamente chão!... De uma calmaria podre, como soe dizer-se em linguagem marítima.
Diário de Bordo 2 – Durante a manhã, empreguei o tempo a pescar. Entretive-me a pescar e pesquei mais um peixe qualquer, um peixe esquisito, de que não seio o nome. Entretive-me também com os tubarões, pois são os peixes que mais se aproximam da canoa. Sobretudo o tubarão martelo, que é verde e o tubarão azul. Acontece que, hoje, eles andavam tão próximos e a fazer umas piruetas, que os marquei com o machim. Acertei-lhes em cheio!...Houve alguns que se puseram a penates!... Acertei-lhes na cabeça!... E é pena que o machim não estivesse mais afiado, quando não teria morto algum...Entretanto, mais tarde apareceu um dos escuros, um tubarão muito esquisito, que parece que é dos vorazes!... Dele, só me apercebi quando deu umas rabanadas na canoa!... Deu umas rabanadas na canoa e depois voltou a insistir!... Aí, acabei por lhe dar com o machim e depois desapareceu.
Diário de Bordo 3 – Pois tenho aqui Fernando pó, bastante próximo!... Não sinto qualquer interesse em me aproximar da Ilha de Macías, não sei porquê!...Aliás, hoje seria um bocado difícil, dada a posição, mas já tive a possibilidade de me aproximar de lá. Não tenho interesse. O meu desejo é a Nigéria. Talvez vá dar à Nigéria, dada a direção que as correntes estão a tomar....A canoa nem sempre vai pelas correntes. Quando aparece um tornado, toma a direção do tornado. E, se por um lado é mau, por outro ajuda bastante!... Pois, quando há temporal, a canoa desenvolve muito. Às vezes parece esqui aquático!
Diário de Bordo 4 – É meio-dia. Está um calor muito grande!... Sinto muita sede!... Ontem procurei aproveitar mais um bocado de água das chuvas. Depois tive o azar da rolha saltar do bidão de plástico eu fiquei sem essa água. Só estou com um bocadinho, cerca de um litro, se tanto, que aproveitei anteontem. Até tem um sabor esquisito... Mas, enfim, vai-se aguentando com ela. Portanto, estou cheio de sede!..
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CALOR DE MATAR: HAJA ÁGUA QUE PEIXES NÃO FALTAM
Quanto aos alimentos, tenho procurado fazer um certo racionamento, porque já não são muitos. Até são poucos. Mas isso também não importa, porque há peixes. Ainda ontem, por exemplo, tentei fazer um bife de tubarão com álcool que aqui tenho. Quis assar o fígado do tubarão, mas depois não consegui... De qualquer maneira comi-o cru e soube-me bem!... Portanto, haja água que há aqui peixes à farta à volta da canoa. Claro que, não sendo cozinhados, não se comem assim muito bem, mas aguenta-se, que é o que interessa fundamentalmente.
Diário de Bordo 5 – A principio, isto era tudo um caos. As coisas estavam todas a monte. Algumas a apodrecerem, a estragarem-se. Mas agora, enfim, embora um bocado desordenado, já tenho isto mais ou menos com uma certa decência...Eu já lhe chamei um hotel. Mas de hotel nada tem, pois não disponho de comodidades nenhumas!... Agora estou deitado no fundo da canoa, com uma toalha sobre a cabeça para me proteger do sol, esperando vento... Já está a sentir-se uma ligeira brisa, mas ainda é muito fraca!....Para o fim da tarde, vou ver se consigo pôr a vela. E vamos lá a ver se aproveito o vento para dar outro andamento a isto...
Diário de Bordo 6 – Quanto à segurança da canoa, algumas rachas ainda metem um bocadinho de água, mas estou esperando que vá aguentando até chegar a terra.
Os tubarões é que me surpreenderam!... Porque eu habituei-me, logo desde princípio, a vê-los, mas quando eles começaram às rabanadas, então aí é que eu comecei a ficar um bocado assustado!
Esta manhã dei-lhes mossa. Ao passarem por baixo da canoa, marquei uma data deles!.. Tem piada que continuaram ali marcados no dorso.
Diário de Bordo 6 – Agora falando da Ilha de Fernando Pó, que tenho aqui à minha direita, a leste. Direi que é uma ilha montanhosa, com um relevo ainda mais recortado que o de São Tomé, com picos talvez ainda mais altos e eriçados mas igualmente revestidos por espesso manto verde, que agora estão encobertos nas partes mais altas. Tem vários ilhéus e toma a direcção Sul-Norte no seu máximo comprimento.
Diário de Bordo 7 – Curioso espetáculo neste princípio de tarde! Três bonitas baleias passaram aqui próximo, ofegantes, vomitando água, como é costume, aqui próximo da Ilha de Fernando Pó. É um pormenor que me apraz registar nesta tarde soalhenta, cheia de sol! Apenas com uma brisa muito leve.
Diário de Bordo 8 - Dado os recursos de água já serem muito limitados, pois tenho apenas aí meio litro, acabo agora de beber água do mar. E, sinceramente, confesso que não me parece muito salgada! Bebeu-se bem!... Vamos lá a ver onde isto vai parar!... (sorrindo) Aliás, Alain Bombard , um médico francês, que fez uma viagem também muito grande, provou que era possível sobreviver durante vários dias, bebendo água do mar. Portanto, se me faltar a água das chuvas, tenho água do mar aqui à fartura!
Diário de Bordo 9 - Fim de tarde do 19º dia.
Céu descoberto, muito azul, apenas com umas nuvens de onde em onde.. E a leste, a Ilha de Fernando Pó. As aves a fazerem-me companhia, em bandos, à procura de peixes...
O mar, agora ao fim da tarde, princípio da noite – pois já se pôs o sol – está um bocadinho mais agitado, devido a uma pequena brisa....Devo estar muito próximo da Nigéria, porque, as correntes, já não são tão fortes como lá mais a Sul. Aqui são de facto mais suaves.
Pois já não tenho água. Não chove; agora estou a utilizar água do mar. Ainda há pouco a bebi e fiz uma farinha. Não é assim muito saborosa mas também não é muito desagradável.
NOITE SERENA DE LUAR EM MAR TRANQUILO
Diário de Bordo 10 – É noite do 19º dia.
Está uma noite serena! De luar!... Uma noite bonita!...Não há vento. O mar tem uma ligeira ondulação. A Ilha de Fernando Pó está completamente obscura!.... Já não se vê. Aliás, nota-se um ligeiro recorte, apenas entre o horizonte... Dá a impressão que é uma ilha sem vida!... Eu sei que há lá milhares de pessoas a viverem... Mas não há sinais de vida nenhuns!... Nem um sinal luminoso, sequer!...
Farto-me de perscrutar, de vislumbrar o horizonte a ver se vejo algum sinal luminoso, mas nada, absolutamente nada!... Enfim é uma noite serena! Uma noite agradável!... Espero que entretanto não se altere., porque já tenho passado noites muito aborrecidas!... Tempestuosas!...
Peixes aqui?!... Tubarões?... Ou o que é?!.... Dão saltos!... Tenho que me resguardar, porque já várias vezes me aconteceu, estar sentado, aqui na canoa, e ter sofrido umas rabanadas! Umas investidas dos tubarões mais atrevidos!.
Agora não os consigo ver. Não vejo nada!... Às vezes, vê-se reluzir debaixo da canoa... Nunca se sabe se algum está aqui, mais próximo!... Aliás, nunca faltam... Enfim, não me interessa lá deles, o que eu quero é que não me chateiem!..
ateiem!..
Portanto, é uma noite muito agradável!... De serenidade!... Estou absolutamente longe de tudo!... Ao mesmo tempo sou um Zé ninguém mas também sou gente!...Gente!... Aqui no meio disto tudo!... É indescritível!...
Sinto-me abandonado mas ao mesmo tempo entregue a esta natureza, a estas forças todas!....Belas!...Puras!... Que aqui estão, ante os meus olhos!... Esta ondulação escura! Com reflexos luminosos, aqui atrás das minhas costas, do luar!....Mas há vida!!...Respira-se uma vida!!...Uma vida pura!! Uma vida livre!... Livre de tudo!... É agradável!...É agradável!...Muito agradável!...Viver aqui, quando o mar se apresenta com esta face...Porque o mar tem muitas faces!.... Faces agradáveis! Belas!... Faces negras, sombrias e tristes!... E eu já por todas passei.... Enfim, é uma noite.... Espero que continue assim....
Diário de Bordo 11 – Ao mesmo tempo, eu sinto-me desprendido!... Sinto-me livre de todas as pessoas que às vezes me chateiam!.... Sinto-me livre de tudo! De todo o mundo!...De todos os ódios! Invejas! Intrigas!... Aqui não há nada disso!... Aqui há horizontes vastos, apenas!....
Céu!.... Um céu magnífico!!!... Oh que beleza!!...Oh que largura!!...Oh que lonjura!!... Tudo aqui não tem dimensão!... O espaço livre! Absolutamente livre!!... O mar!!! Este ar fresco!...Ah quem me dera meter-me no mar!!... Mas não posso!...Mas quem me dera!!... Falta-me esse prazer!...
Sinto-me alegre! Sinto qualquer coisa em mim que não me prende!!... Sinto-me liberto! Liberto de tudo!!...Ó mar!!... Ó mar!!... Força enorme!!... Eu estou aqui sobre ti! Ó mar!!...Céu estrelado!!... Luar tão belo!!...Oh que beleza contemplar este panorama!... Este cenário!...Não tenho palavras com que possa transmitir tudo o que sinto!..
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Diário de Bordo 12 – E a minha canoa vagueia!... Vagueia ao sabor das correntes!....Esta força invisível! Mas que existe!... Ela impulsiona-a!... E uma força! Uma força do mar! Das vagas que estão sob ela a impulsioná-la!... E a minha canoa, suavemente, umas vezes, brusca, outras suavemente, desliza!...Sente-se que desliza!...
Aqui no mar há vida!... Muita vida!!... E há uma luta feroz, talvez mais feroz que na Terra. Uma luta de sobrevivência de umas espécies com as outras!...Ah!... Só aqui me sinto livre! Absolutamente livre!... Absolutamente independente de tudo!
UM FAROL NAS DISTÂNCIAS! – AO NÁUFRAGO A SUA LUZ, É COMO SE UM RAIO DE DEUS O CONTEMPLASSE,
Diário de Bordo 13- Alto lá!... Acabo de ver, pela primeira vez, um farol, o sinal de um farol!!... Parece que sim... que deve haver um farol.... Porque chega aqui um sinal luminoso, de lá de longe!...Deve ser , portanto, o farol de Fernando Pó...
(Depois canto ainda “A noite plácida!”, após o que me deito, acreditando que o amanhecer me aproxime definitivamente de terra.
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