JORGE TRABULO MARQUES - Jornalista
Finalmente pude localizar a fotografia, que hoje aqui revelo pela primeira vez
Em 1974, entrevistei algumas das vítimas do massacre do Batepá para a revista Semana Ilustrada, de Luanda, em Fernão Dias, e também uma outra, o Sr Cravid, funcionário da Câmara Municipal, na cidade, que ainda ostentava feridas por sarar numa das pernas, com que foi acorrentado -
Em 1974, entrevistei algumas das vítimas do massacre do Batepá para a revista Semana Ilustrada, de Luanda, em Fernão Dias, e também uma outra, o Sr Cravid, funcionário da Câmara Municipal, na cidade, que ainda ostentava feridas por sarar numa das pernas, com que foi acorrentado -
Num desses trabalhos, que me haveriam de
custar graves dissabores, violentas reações por parte de alguns colonos. que me furaram os pneus do meu carro
à navalhada, penduraram uma forca na porta de minha casa e me agrediram
selvaticamente, dizia eu o seguinte
Semana Ilustrada ...” Há dias
deslocámo-nos a Fernão Dias. Íamos com o propósito de fazermos' algumas fotografias do
local.
Corrente exposta no Museu Nacional |
Quando chegámos, pedimos a um natural de S. Tomé, que guardava uma vara de porcos, para nos indicar onde tinha sido, precisamente, o sitio, em que haviam decorrido os massacres de 1953. Tratava-se do Sr. Manuel dos Ramos, de 62 anos, por sinal, também, uma das vítimas. (...)trouxe-nos ao lugar onde os presos partiam brita para construção de uma pista para o aeroporto que a partir de ali se pretendia iniciar e apontou-nos o pântano onde eram também forçados a trabalhar. Na berma do mesmo, encontramos ainda uma argola de uma corrente de ferro, com que eram amarrados.
Levei a corrente no meu Mini-Morris para a minha casa, porém, como andava a ser perseguido por alguns colonos, devido à divulgação que vinha dando ao Caso Batepá, naquela revista, resolvi então levar a corrente para um pequeno areal, por entre umas rochas, a curta distância da Fortaleza S. Sebastião, com a intenção de a entregar à Associação Cívica Pró-MLSTP - Tal não chegaria, no entanto, a suceder por ter sido forçado a abandonar a ilha de canoa para a Nigéria por via da violência de que estava sendo alvo.
Já passaram 46 anos sobre esse achado. Não sei se ainda por lá existe, mas, tratando-se de ferro, até é provável que sim. Fiz o registo fotográfico da referida corrente, e, agora, por um feliz acaso, descobri a imagem numa das fotografias do único álbum que pude recuperar através do Sr. Afonso Henrique, empresário português, muito estimado na Ilha, que fez o favor de mo trazer para Portugal., enquanto o mesmo não sucedeu com os milhares de negativos que o Sr. Jorge Coimbra foi levantar a casa da minha companheira Margarida e até hoje, não teve a hombridade dos mos entregar
Um local pantanoso, infestado de
mosquitos, embora a escassos metros da praia, onde muitos presos, ou eram
imediatamente acorrentados e lançados ao mar ou, ainda sob o peso de fortes
grilhetas, obrigados a carregar pesadas tinas de água ou grandes blocos
de pedra, por forma a que o seu extermínio ainda fosse mais doloroso, porque
física e psicologicamente mais sórdido e lento, quando não sufocados pelo
terreno movediço da lama para onde também eram atirados ou mortos vivos em
valas abertas pelos próprios prisioneiros, que eram obrigados a cavar a
sepultura, sob as prepotências e as arbitrariedades de um contratado angolano,
um tal Zé Mulato, um inqualificável verdugo que que as autoridades foram
buscar à cadeia, onde cumpria pena de assassínio, para chefiar o
dito campo de morte.
CONFESSOU-ME " FUI UMA MÁQUINA BRUTA A MATAR" - A uns matava-os a soco, outros a tiro, à paulada ou à machinada! Alinhava-os ao longo da vala para não me darem muito trabalho.Alguns ainda gritavam lá dentro, mas calava-os imediatamente, com umas quantas pazadas de terra. Nem era eu que as deitava, mas a outra "empreitada" que vinha logo a seguir. - ...Fui duro!... Bem sei... Tinha de ser...E não me pergunte se estou arrependido,não senhor! Não estou!!.. - Outros amarrava-os à cadeira dos choques eléctricos!... "até pulavam!...Até gritavam!..
Claro que não se pode dizer que, em 1953, os tempos também fossem bons para os portugueses que viviam na “metrópole do império colonial”, muito pelo contrário: eram tempos de repressão, de fome e de miséria – Nas escolas as crianças eram reprimidas à chibatada e com reguadas de deixar as mãos arder e ensanguentadas -
E quem poderá esquecer o massacre de a pequena aldeia do colmeal, onde nasceu o meu bisavô paterno, varrida por ação de um processo judicial, injusto e prepotente, no dia 10 de Junho de 1957, com os seus habitantes despejados à força, com desfecho trágico de casas queimadas e algumas mortes por balas da GNR- a guarda pretoriana do regime colonial-fascista -, é também outra das páginas negras da História da Lusitânia moderna – Ver pormenores em http://www.vida-e-tempos.com/2019/09/colmeal-romagem-espiritual-silenciada-e.html
Marcha da Liberdade - 2020 |
2014 |
Portugal “assume a responsabilidade” pelo massacre de Batepá – Palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, há dois anos, na visita que fez ao Memorial dos Heróis da Liberdade, caídos à mão de um governador português há 65 anos aqui em Fernão Dias: com estas palavras, depois de depositar uma coroa de flores:“Vim aqui homenagear todos aqueles que lutaram pela liberdade e em particular todos os que morreram pela liberdade faz agora precisamente 65 anos”
EM PORTUGAL - NUMA REMOTA ALDEIA - TAMBÉM HOUVE OUTRO MASSACRE
Claro que não se pode dizer que, em 1953, os tempos também fossem bons para os portugueses que viviam na “metrópole do império colonial”, muito pelo contrário: eram tempos de repressão, de fome e de miséria – Nas escolas as crianças eram reprimidas à chibatada e com reguadas de deixar as mãos arder e ensanguentadas -
E quem poderá esquecer o massacre de a pequena aldeia do colmeal, onde nasceu o meu bisavô paterno, varrida por ação de um processo judicial, injusto e prepotente, no dia 10 de Junho de 1957, com os seus habitantes despejados à força, com desfecho trágico de casas queimadas e algumas mortes por balas da GNR- a guarda pretoriana do regime colonial-fascista -, é também outra das páginas negras da História da Lusitânia moderna – Ver pormenores em http://www.vida-e-tempos.com/2019/09/colmeal-romagem-espiritual-silenciada-e.html
MEMÓRIA DESTES HOMENS E DE OUTRAS
CENTENAS DE VÍTIMAS NÃO PODE SER APAGADA
Manuel dos Ramos – guardador de porcos em
Fernão Dias “. O meu pai era o Manuel João da Graça das Neves. Tinha o número
430. Vi chegar
aqui um senhor que trabalhava na Câmara. Veio ao meio dia e meio e à uma hora
morreu. Era o Sr. Tini da Câmara - Pormenores mais à frente
Manuel Carmona, trabalhador na Ribeira Peixe - Todo o individuo que trabalhava na brigada, nesse tempo vivia porque era Deus que queria. Comia feijão feito com milho sem pisar. E desde manhã até há uma hora, com esta comida, corno podia um homem aguentar? – Pormenores mais à frente
Bartolomeu Cravid -
– Bartolomeu Cravid “Bateram-me. Puseram-me numa cela, incomunicável,
durante 45 dias -Pormenores mais à frente
Escasseava a mão de obra barata..E o
governador planeava construir grandes edifícios à custa do trabalho
forçado nas ilhas e mandou o ajudante de campo armado em soldado
nazi a comandar um grupo de milícias para ordenar o trabalho
obrigatório.. Num verdadeiro retorno aos primórdios do ignóbil e duro
esclavagismo, até que, numa remota aldeia perdida no mato, algures
pela Vila da Trindade, alguém se encheu de coragem e reagiu sobre o fogoso
e arrogante alferes, que teve a reação popular que merecia e à altura da
leviandade e do desprezo como olhava a população e impunha a
sua vontade .
A
Face a tais atoardas e falsos
alarmes, as roças passam ao ataque: empregados de mato e dos
escritórios, feitores e administradores - e até capatazes negros -partindo
em jipes de todas os cantos da colónia, concentraram-se na Trindade, e,
fortemente armados, dirigem-se através dos caminhos do mato ao Batepá,
descarregando tiroteio forte e feio, (naquela e noutras aldeias)
sobre as populações indefesas e pacíficas - mães com os filhos às costas,
homens, mulheres e inocentes criancinhas, e até porcos, cabras e galinhas
-, tudo é imediatamente alvejado e varrido!
partir daí o Governador Gorgulho
- para salvar a face dos seus desmandos e prepotências,
e, como os grandes erros, nunca vêm sós, para justificar uns cometia outros,
cada vez mais graves. passou acusar os "rebeldes" de
comunistas, através da imprensa e da rádio. E não tardou que os colonos
- incentivados ao ódio à dita "hidra
comunista", respondessem ao apelo dos muitos boatos propalados
"Há notícias de que foram
avistados submarinos soviéticos ao largo e descarregadas armas para apoiar
a revolta dos negros insurretos contra a integridade desta província
ultramarina!" - Foram detidos e presos vários suspeitos.
O governo promete firmeza e mão pesada aos criminosos! . Por
toda a ilha mobilizam-se milhares de voluntários."
- E, quilo que poderia ter sido um
caso isolado, depressa é rotulado de rebeldia comunista.
2014 |
Tudo quanto é vivo e apanhado pela
frente, é vítima das maiores atrocidades e dos disparos mortíferos
das velhas máuseres alemãs hitlerianas - herança do nazismo. A
fúria assassina só terminou, quando, em escassos cinco dias, rapidamente
todas as munições se esgotaram na ilha- Para trás, ficava um autêntico banho de
sangue, aldeias totalmente queimadas e destruídas e inúmeros cadáveres
estendidos sobre o chão fértil e verde da luxuriante floresta. E a paz ,
que ali reinava dantes, dava lugar a um autêntico cenário de
horrores:
VISITA AO LOCAL DOS TRÁGICOS
ACONTECIMENTOS – EM 1974 – 20 ANOS DEPOIS - TENDO COMO
GUIA DOIS SOBREVIVENTES: Manuel dos Ramos e Manuel Carmona
Este o relato – “O local fica perto da.
sede da de pendência Fernão Dias, à Roça Rio do Ouro, à frente de um' mar azul imenso,
bordado de viçosos coqueiros e de um capim que cresce exuberantemente e,
por entre vestígios e recortes de antigas construções, em tempos utilizados
para servir a ponte de cais acostável para os- barcos de longo curso
que ali atracam
A ponte destinada então, aquele porto, encontra-se em
ruínas, e o sítio onde se localizavam as tais construções, são boje,
praticamente, lugares de abandono, preenchidos, apenas, na pequena planura que
ali se ergue, por uns tantos pés de coqueiros, que após terem servido de palco aos
tristes como lamentáveis acontecimentos no ano de 1953, ali foram
plantados, talvez para quebrar a aridez e tristeza ambiente
2014 |
Lá se encontravam ainda, junto à praia conforme nos
disse, os dois ta marinheiros onde diariamente eram estendidos os cadáveres e
dali transportados, por uma camioneta, para uma vala comum, no cemitério da
cidade.
Mostrou-nos, igualmente, o sítio onde ele também
esteve estendido no chão duro, cercado então por arame farpado, e onde ficavam
a aguardar o momento do interrogatório ou da pena capital.
Acompanhou-nos ao lugar, onde ficava a
casa que o chefe da brigada do campo de concentração e de trabalhos Forçados
utilizava para pro ceder às torturas, aos interrogatóri0.e: e julgamento das
inúmeras pessoas que para ali iam presas.
Por último, trouxe-nos ao lugar onde os
presos partiam brita para construção de uma pista para o aeroporto que a partir
de ali se pretendia iniciar e apontou-nos o pântano onde eram também forçados a
trabalhar. Na berma do mesmo, encontramos ainda uma argola de uma corrente de
ferro, com que eram amarrados.
“Mata ali e vai pôr junto desses tamarinos e
tapa com chapa”.
2014 |
Tudo isto lhe ouvimos contar com palavras de emoção e tristeza , ao recordar aqueles horrendos episódios de que foi vitima e assistiu
No final, registamos o seguinte depoimento:
- J. M. O sr. também foi, portanto, das pessoas que aqui
esteve no campo de concentração, não é verdade?
- M.R. Sim senhor. Estive aqui a trabalhar.
- J. M. Foi muito mal tratado:
- M. R. Bateram-me com um pau
na cabeça e outro na nádega. Mas o ruim da minha vida era a carga
muito pesada que tinha de transportar.
- JM. O sr. viu bater em alguém?
- M. R. Sim senhor! Vi chegar aqui um
senhor que trabalhava na Câmara. Veio ao meio dia e meio e à uma hora morreu.
Era o Sr. Tini da Câmara
- J.M. Disse-me que o seu pai também aqui
esteve. Ele morreu cá?
- M.R. Morreu em casa.
- J.M. Mas também foi morto durante os
massacres do Batepá?
- M. R. Não senhor. O meu pai veio de
castigo. Tiraram depois o meu pai e mandaram-no para casa, ·mas depois morreu
devido à doença que aqui apanhou. .
- J. M. Com é que se chamava o seu pai?
- M. R. O meu pai era o Manuel João da Graça das
Neves. Tinha o número 430.
- J.M. Já havia aqui muita gente
condenada?.
- M. R. Sim. Muita pessoa a
trabalhar. Mas para eu dizer a quantidade de pessoas que
aqui estavam a trabalhar é que eu não posso dizer.
- J. M. Aquele lugar ali era para o
julgamento: o que é que o Sr. .José fazia lá?
- M. R. Tudo. Com cacete e outras
pancadas. Quem não morreu, ficou. Quem morreu, morreu! Qualquer pessoa que
vinha, ia para o Sr. José, fazer perguntas. Depois de perguntar ele
fazia conforme entendia.
- J. M. E ali, junto daqueles tamarinos,
que se fazia?
- M. R. Lá! Mata ali e vai pôr junto
desses tamarinos e tapa com chapa.
- J. M. E depois os cadáveres eram
enterradas ou lançados ao mar?
- M. R. Os que estavam em baixo de chapa,
o carro, por volta das três ou cinco horas da tarde,
carregava-os para cidade. Lá é que se iam sepultar.
- J. M, Mas outros eram atirados ao mar,
não eram?
- M. R. Dizem que atiravam ao mar, mas
nunca vi porque de noite ia dormir outra pessoa ficava a trabalhar. Mas
dizem que morreu muita gente no mar e outra foi enterrada.
DEPOIMENTO DE MANUEL CARMONA
Chama-se Manuel Carmona. Tem 42 anos de
idade. É natural de S. Tomé e, actualmente, é trabalhador rural na Roça Ribeira
Peixe. Disse-nos que também tinha sido uma das vitimas sobreviventes aos
massacres do Batepá - Respondeu-nos do seguinte modo:
- M. C. Estava na minha casa
deitado. Eram sete horas da noite, e apareceu o carro, cheio de polícias, e com
o Sr. José Mulato. Fui pegado na minha casa, às sete horas de noite. Levei
muita pancada por ordem do Sr. José. Entre os que matavam destacava-se o cabo
Rodrigues e outro homem que parece que ainda se encontra em S. Tomé. E os
capatazes, que mandavam nesse tempo, e mataram bastante por ordem do Sr. José.
Era o Gonçalves, Cidade, Massêca, Jamba.
J. M. Que lhe fizeram, quando chegou à tal
brigada de trabalhos, em Fernão Dias'?
- M. C. Padeci bastante Levei pancada
demais.
- J. M. Quanto tempo esteve nessa· tal
brigada ?
- M. C. Cinco meses. Vi muitos mortos, que
foram pegados vivos , num bote grande que os lançava ao mar. Eu
próprio é que vi, com a minha vista, em Fernão Dias, matar por ordens do Sr.
José.
- J. M. O Sr. acha que se deve fazer
justiça a esses indivíduos que o trataram mal e mataram outras pessoas, que
ainda não foram julgados?
- M.C. Acho . Ficaria muito satisfeito até
…
- J. M. Conhece muitas pessoas
que o tararam mal e que ainda cá estão?
- M.C. Bem, outros morreram, os capatazes
ainda cá estão. Até o que foi o chefe, o autor da justiça , ainda está a viver e
outros ainda estão em S. Tomé. Eu conheço-os…
- J.M. Que lhes davam de comida , nessa
briga ?
- M.C.Todo o individuo que
trabalhava na brigada, nesse tempo vivia porque era Deus que queria.
Comia feijão feito com milho sem pisar. E desde manhã até há uma hora, com esta
comida, como podia um homem aguentar? ·
- J. M. Você dormiam
normalmente, ou dormiam muito mal?
- M. C. Dormíamos uns em cima, outros
em baixo, como arrumação de saco.
- J. M. Acha que os tais senhores deviam
ser julgados e estar presos?.
- M. C. Não deviam estar, sequer, livres
por um dia. Porque, nessa altura, em 53, esse senhor autorizava a
colocação de marcas nos que iam .ser mortos em Fernando Dias, com
tinta vermelha na camisa. E de madrugada, quando vinha a camioneta eram esses
que a família perdia. Não duravam nem meia hora
- J. M. Então ele não obedecia a ordens?
Fazia aquilo, sua 'por vontade própria? ·
- M. C. Recebia ordens de Sua Excelência
que governava. ·
- J. M. Mas ele é que mandava lá?
M. C. Ele é que mandava. Na secção da
brigada.
BARTOLOMEU CRAVID
- J.M._ Diz-se que o Sr. Cravid também foi
uma das pessoas afectadas pelos acontecimentos do Batepá. Que se passou então
em relação à sua pessoa?
- B. C. - Lembro-me que fui preso e que
estive na cadeia 45 dias. ·
-
J.M. -Por que é que o prenderam?
- B. C. - Não sei explicar; o certo é que
houve a ideia de arranjar mão-de-obra gratuita. E daí' surgiram as prisões,
mais prisões mas sem quaisquer razoes para isso.
Procurava-se emprego e não sé
encontrava. No entanto, as rusgas sucediam-se e as pessoas que encontravam,
eram presas. É, claro, ao fim ao cabo houve um ou outro que reagiu sobre esses
atitudes. Mas a verdade é que nem chegou a existir reaccão nenhuma.
- J.M – Na altura, trabalhava em quê?
- B.C – No Tribunal.
- J.M. - Portanto na altura em que foi
preso. Mas em que suspeitas se basearam para o prenderem?
- B.C. - Naquela altura só se 'tratava de
boatos, mais boatos. O individuo era apontado de estar metido em reuniões. Mas
a verdade é que nem sequer havia reuniões.
- J.M. - Durante o tempo em que esteve
preso foi muito mal tratado?
- B.C - Fui. Bateram-me. Puseram-me numa
cela, incomunicável, durante 45 dias.
- J.M. - E a alimentação? De que constava?
- B. C - De fuba com feijões, sem um
mínimo de higiene. Enfim, tratavam-nos piores que escravos.
- J.M. --'Tinha lá muitos companheiros? .
- B. C.. -· Sim. Tinha lá muitos
companheiros. Muitos funcionários públicos. ·
- J. M. - Eram todos
submetidos a igual tratamento?
- B. C. - Sujeitavam-nos aos mesmos
tratos. Puseram-nos descalços. Bastiam-nos ...
- J. M. - Com que é que os castigavam?
- B.C. – Com pauladas. Chicoteadas.
Palmatoadas. Enfim…
- JM - Depois acabaram por o
soltar, porque? · Como é que chegaram à conclusão que não havia motivo para o
terem preso? ·
- B. C. - Não sei se foi o Juiz que
trabalhou Comigo. Não sei explicar como é que isso se passou. O certo é que um
dia qualquer chamaram-me e soltaram-me.
- J.M. - E aos outros seus companheiros?
- B.C. - Um outro colega meu foi solto um
dia antes: o Sr. Martins Fernandes de Castro.
- J.M. - Como é que o Sr.
Cravid interpreta a origem desses acontecimentos ? ·
- B. C. – Dá-me a entender que o
Governador Gorgulho tinha na ideia escravizar todos os naturais de S. Tomé. Não
os queria, até, como funcionários públicos. 'Deu-me· a entender que só os
queria na situação de contratados. De verdadeiros escravos.
- J.M. - Mas falou-se numa sublevação
comunista ? Que diz a este respeito? ·
- B.C. -- Que eu saiba, não
houve nada.
- J. M. - Não seria talvez uma forma de
ocultar ou tentar justificar os actos cometidos nesses acontecimentos ? ·
- B. C. - Penso que o que ele queria era
ter qualquer justificação. Qualquer coisa para poder defender-se; justificar,
talvez, ao Governo Central, de que tinha havido qualquer coisa que lhe desse
razão para proceder assim.
- J. M. - Qual é a opinião que tem acerca
desse Governador? Há quem diga que ele fez muitas obras. Para além de todos
esses actos que permitiu, que fez realmente vastas obras em S. Tomé.' Qual o
pensamento com que ficou acerca dele?
- B.C. - Inicialmente começou
por trazer obras à terra; tanto mais que até chegou a ser conduzido
a nosso pedido. Chegámos até a oferecer-lhe uma espada. Mas de um
momento para outro virou-se totalmente. Porque é que mudou? Não sei. O certo é
que também estava muito mal orientado. Tinha maus colaboradores.
- J.M. - Acha, portanto, que
essa tal mudança de atitude se deveu a uma actuação dos seus colaboradores?..Elementos
da cúpula governativa ?
- 8. C. - Não. Foi mais dele. Se fosse
bom, isso nunca teria acontecido. Se fosse individuo sensato, e que também se
interessasse pela vida dos outros, que eram tão humanos como ele, não' se davam
essas coisas; nada disso teria acontecido.
- J.M. - Esses acontecimentos tiveram
inicio a 3 de Fevereiro de 1953. Prolongaram-se até quando?
B. C. - Sim. Tiveram início nessa altura. Depois
fui preso, mais ou menos no dia 7 de Fevereiro. Fui solto 45 dias depois. 'Mas
antes de ser solto, chegou, o inspector Falcão da ex-PIDE.
'Esse senhor é que fez com que a situação se suavizasse bastante. E mais tarde
com· a vinda do Dr. Palma Carlos.
- J.M. -Acha então ser verdade que um dos trabalhos mais
válidos que a ex-PIDE fez em S. Tomé, foi precisamente esse?
- B.C. Pois, se não fosse a sensatez no
lnspector Falcão, isso seria um caso muito sério. Se tivesse cá vindo outra
pessoa a investigar o assunto, nós estaríamos muito mal. Correria tudo à
vontade do Sr. Governador e a coisa piorava.
- B.C- Ao certo não sei .Mas umas centenas de pessoas
morreram lá.
- J.M . Em que condições essas pessoas pereceram?
- B. C. - Uns asfixiados, outros com pauladas em
Fernão Dias. No mato, a tiro de espingardas. Enfim houve pessoas mortas e
torturadas nas mais bárbaras condições.
- J.M. - Além desses mortos que provocaram, que outros
danos mais terão causado à população?
- 8. C. - Muitas casas incendiadas. Muitas pessoas
roubadas e saqueadas. Muitas mulheres violentadas. Muitas crianças desonradas.
Enfim, desumanidades.
- J.M. – Um natural, na altura, era todo olhado da
mesma maneira, ou havia, digamos, certo sector que era respeitado?
- B. C. - Chegou-se a uma altura que não se respeitava
ninguém: só se respeitavam os criminosos: 0 José Mulato, o Chico … e os
capatazes das brigadas e mais nada. Com os naturais não havia um tratamento de
gente. Faziam-lhe pior que a um bicho.
- J.M. - Como é que interpreta o comportamento desses
indivíduos, de resto também naturais de S. Tomé? Eram simples
peças da máquina ? · Ou actuavam conscienciosamente ?
- B. C. - Bom, naquela altura, só cumpriam as ordens e
mais nada:
- J.M.-Mas eles não terão também culpas?
- B. C. - Nenhumas. Não houve culpas nenhumas
por parte desses indivíduos.
- J.M. - E os que colaboravam mais activamente?
- B. C. - A alguns, pelo menos, não se pode
atribuir-lhes propriamente culpas ... mas também foram maus. Deviam ter sido mais
benevolentes.
- J.M. - Antes de 3 de Fevereiro de 1953, o povo já era mal
tratado? Ou só foi a partir dessa data 7
- B. C. - Era. Então havia só rusgas, sem necessidade
nenhuma. E muitas prisões. Quer dizer, queriam mão-de-obra gratuita.
- J.M. - Quanto pagavam em 1953 ao trabalhador?
- B. C. - Não me lembro ao certo. Talvez cinco ou dez
escudos. Na altura era funcionário do ·Tribunal e não 'estava a par disso.
- J.M. -Actualmente está a colaborar no processo de
inquérito. Em que consiste o seu trabalho?
- B. C. - Ouvir as pessoas lesadas, que ficaram sem
as suas casas, para se saber depois o que se vai fazer. - Ao certo não sei.
- J.M. - Há muitos
processos?
-B. C. - Talvez muito mais do que uma
centena.
- J.A. - Acha que isso foi uma coisa que
marcou o povo de Tomé ? .
- B . C. - Bastante. Foi uma tortura! Uma coisa
inútil!
- J.M. - Diz-se que, de uma maneira geral,
todos os brancos que havia na altura em S. 'Tomé foram forçados a tomar parte
nos acontecimentos de 1953. Foram realmente todos ou houve alguns que não
quiserem ?
B.C. - Houve alguns que não colaboraram.
Lembro-me de um Carlos Soares, da Roça Montalegre. Esse, então,
padeceu bastante .'Esse branco da Roça Santy também esteve preso.
- J.M. - Portento, os brancos que não colaboravam eram
mal vistos ?
- B. C. - Sim: Houve alguns que foram perseguidos e
mal vistos.
- J-M Houve brancos que compreenderem o
problema e recusaram-se a colaborar nesses acontecimentos?
- B. C. - ·Sim, realmente, houve muitos que não
tomaram parte. · · · ·
- J.M. - Houve naturais que tiveram de fugir de S.
Tome, ou conseguiram escapar? .
B.C - Aqui não tinham
possibilidades de sair. Como sabe, S. Tomé é uma Ilha.
SOBREVIVENTE - A DOR QUE O TEMPO AINDA NÃO APAGOU - ESPANCADA À CRONHADA DEPOIS DE LHE METEREM A CABEÇA NUM TANQUE DE ÁGUA - Era menina e estava grávida.
Maria dos Santos, mais conhecida por Mena - Ainda jovem, e mesmo grávida, não foi poupada à brutalidade facínora das ordens do então Governador Carlos Gorgulho: arrastada à força de sua casa, levada para um calabouço na então Vila de Trindade, espancada barbaramente, Primeiro deu-se o saque às casas: carregaram o que puderam dos modestos teres e haveres, após o que as incendiaram.
Imagens e palavras de um abominável massacre. O pai de Teresa, esposo de Maria dos Santos, , também vitima da mesma barbárie, depois de lhe terem queimado a casa e o carro (que saquearam antes de a incendiarem) ainda procurou refúgio no mato mas foi apanhado, preso e enviado para o Campo de Concentração de Fernão, onde acabaria por embarcar, com mais 120 homens para serem lançados ao mar, no barco António Carlos. Tal porém não sucederia por a tripulação do navio se ter oposto, tal como vim a saber através de outro depoimento, que obrigaram o comandante a deixar os prisioneiros na Ilha do Príncipe, onde acabariam por ficar presos –
Um desses valorosos homens era o cabo-verdiano, Bernardino Lopes Monteiro, pai do Coronel Victor Monteiro Dias, que foi chefe do Gabinete do Presidente Fradique Menezes e de Manuel Pinto da Costa, a cujo episódio, já me referi neste site. ...http://www.odisseiasnosmares.com/2019/02/sao-tome-decorre-hoje-comemoracao-do-3.html
SOBRE O MESMO ASSUNTO:
30 de Jan. 2015…Memórias
do Bate-Pá (1) - Auschwitz, em S. Tomé também existiu no campo de concentração
de Fernão Dias ….1 De Feve. De 2015 Cerca
de centena e meia de prisioneiros iam ser lançados aos tubarões por onde de
Gorgulho …4 de Fev Zé mulato o
carrasco de Fernão Dias …6 de fev. Victor
Pereira de Castro diz que a cobfissão oficial do Governador debita 47 vidas
-
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