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domingo, 25 de novembro de 2012

Dia 34º - Deitado no fundo da canoa...Não tenho comida... Sinto uma grande dureza no estômago

Algures no Golfo da Guiné, 23 de Novembro de 1975




A fraqueza é imensa e deixa-me bastante debilitado. Tenho-me mantido num profundo silêncio - Foi um  dos dias em que não meti nada à boca e  falei muito pouco para o meu gravador.

 Somente ao fim da tarde, tive a coragem de abrir o meu baú (um contentor de plástico do lixo), onde o preservo da violência do mar e senti vontade de dizer algumas palavras.  Remeti-me a um profundo e resignado mutismo: sem lágrimas mas também sem nenhuma alegria. Sem desespero mas possuído de uma enorme angustia a perturbar-me a alma.  Com o sentimento de um enorme desconforto, em todos os aspetos: sem poder dormir, cheio de fome e no meio de um mar bravio, fortemente batido pelas vagas. 
 
Até por volta da  meia-noite o mar manteve-se calmo, com uma ligeira brisa do sul, mas eu  sentia-me muito ansioso e não conseguia adormecer, receoso que pudesse ser atirado para qualquer zona da rebentação da costa, embora confiante de que ao menos pudesse passar um resto de noite com alguma tranquilidade. Mas, subitamente, voltei a sentir o ímpeto da corrente de oeste para leste,  acompanhada de  forte ventania - E jamais tive um minuto de descanso.

As vagas sucediam-se umas atrás das outras, erguendo-se como  alterosas muralhas cor de ardósia, parecendo quebrar a frágil piroga, que não parava de balançar e de sofrer enorme solavancos, ameaçando rolar e engolir-me  num violento turbilhão de espumosas e ferventes massas escuríssimas.

 De volta e meia, algumas das espadanadas cristas, rebentavam ao meu lado, lançando-me fortíssimos jatos de água e encharcavam-me completamente. Por mais que pegasse no vertedouro, não lograva suster  o seu afluxo, que não parava de marulhar e de se acumular.  Por isso mesmo, não conseguia arranjar sequer um palmo enxuto, sobre o qual pudesse deitar-me e  ter alguns minutos de descanso.. 

 Sim, impossível dormir. Impossível um sono reparador. Lá tive pois que me recolher, ao longo de mais uma noite interminável, entre a esperança, o desassossego e o temor, encolhido e enrodilhado à minha capa, junto a uma das travessas e a meio da canoa, numa prostração de quase resignada indiferença. Sempre que podia, mergulhava os olhos continuamente na densa e turbulenta negridão, que parecia nunca mais ter fim. Mas de lá, dos confins da escuridão, não me chegava a luz de qualquer farol, assomo de recorte, nem o mais ténue sinal de vida. 





 NASCER DE SOL MARAVILHOSO – PENA QUE  A SUA LUZ DEPOIS DE IRROMPER  FOSSE TÃO BREVE...

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 Finalmente, o vasto manto negro e ondulante que me envolvera ao longo de horas infinitas, embora persistindo com a mesma agitação, muda a  cor da sua face. Aos primeiros alvores da manhã, passa de um cinzento-escuro a uma imensa toalha que ondula com tons de chumbo e de prata, refletindo as densas nuvens que começavam a clarear a oriente, onde, através de alguns rasgões, surgiria por fim a tão desejada luz! – A bendita luz do astro solar,  que é sempre um reforço de ânimo e de esperança para quem anda perdido na vastidão do mar

Sem dúvida, um nascer do sol, esplendoroso, que me trazia algum reconforto, que vinha soltar-me da fatalidade que parecia ensombrar cada vez mais o meu destino.  Uma autêntica explosão de um rubro esplendor, que irrompia do fundo das tormentosas águas, que imediatamente se refletia no meu espírito e vinha  aliviar-me  de uma profunda depressão e abatimento – Pena que, tão sublime aparição, fosse tão breve, de tão curta duração.   Pois, quase com a mesma rapidez  que se abriu e me saudou, assim voltou a ocultar-se por detrás dos espessos novelos de nuvens  que cobriam o céu de ponta a ponta do horizonte, em todo o vasto e azulado círculo.



MANHÃ CHEIA DE BRUMAS E CHUVOSA - TARDE SEM CHUVA MAS TAMBÉM MUITO  AGITADA, BATIDA POR RAJADAS DE ÁSPERO VENTO 

Mar aberto e turbulento. Sobre o qual o vento não cessa de descarregar a sua ira, enfurecendo também as águas.  Atiçado por constantes rajadas e que nem sempre vêm da mesma direção. Fustigando-me asperamente o rosto! Levantando as ondas em loucos redemoinhos, sacudindo a canoa num vertiginoso balanço! Erguendo-a perigosamente! Fazendo-a ondular e deslizar por vertentes descomunais!  Dificultando-me o equilibro, quase tolhendo-me de qualquer movimento livre, obrigando-me a um inaudito esforço – sobretudo para conter a invasão da água,  que entra pelas rachas e daquela que é atirada pela rebentação e crista das vagas mais alterosas 

Ainda não vislumbrei qualquer contorno de terra e também não tive coragem de colocar o mastro e a vela.Com o remo improvisado, é muito difícil navegar. Por isso, vai à deriva, vai ao sabor do vento das vagas! Não sei para onde me leva  - Está sendo arrastada para leste com a força das correntes mas não sei onde possa ir parar e se poderá resistir ao forte impacto do constante chape chape que ressoa no costado.


Estou muito fraco. Mal me posso levantar: tenho-me limitado às tarefas mais indispensáveis. A pôr a roupa a secar e a despejar a água que se acumula no fundo da canoa. Mas tudo isto é exaustivo!..  Exige-me um inaudito esforço e eu estou muito fraco!.. . Disponho apenas de uns três ou quatro anzóis. Mas não tenho iscas; não vale a pena lançar a linha e o anzol. .


Muitas vezes, prostro-me de  joelhos junto à borda de canoa para ver se apanho algum peixe à mão. Há sempre peixes de todos os tamanhos à volta da canoa e acompanhá-la. Alguns vêm  à cata das lapas que nascem no costado. Mas quando estendo o braço para os apanhar, escapam-se-me; são mais rápidos de que eu!  Mais das vezes acabo por desistir e deito-me no fundo da canoa para poupar as minhas forças – Pois, mesmo atolado numa autêntica salmoura, tenho necessidade de descansar.  Nem que fosse sobre um tapete de pregos.  - Até porque não consegui dormir em toda a  noite.

A fome é terrível! É terrível!... Não sentir nada no estômago, é um sofrimento, muito doloroso!... Valha-me ao menos este ar puro que respiro. Quando me levanto, tenho a sensação que é apenas o ar que me alimenta. Fustiga-me o rosto mas entra-me  pela boca e pelo nariz em rijas lufadas, ásperas, violentas, mas muito  revigorantes, que me desentorpecem o corpo.

Sim, respiro o vento e o mar. Não tenho nada na barriga. Por isso, deito-me no fundo da canoa, com os braços cruzados, simplesmente porque me faltam as forças para me manter em pé mas não é por me sentir derrotado.. Não é porque me tenha rendido à luta!... É para ver se conservo prender-me à  vida. Quero viver. Estou fraco, muito fraco!...Mas "Viver também cansa". E a fome mata. É cruel!...O meu corpo cambaleia de fraqueza, cheio de dolorosas borbulhas da humidade. Tenho os dedos das mãos  e os pés muito gretados. A unhas dos pés irreconhecíveis da água salgada. As costas numa chaga. O estômago  fortemente encolhido... Os olhos muito doridos... Ó Meu Deus!... Serei ainda um ser humano?!... Até quando este sofrimento?!...


 




SINTO UMA GRANDE DUREZA NO ESTÔMAGO...


Diário de Bordo 1 É já o fim de tarde  do 34º dia. Mais um dia que passei... praticamente deitado sobre o fundo da canoa... Com os braços cruzados, pois não tenho outra solução.... O mar continua com bastante ressaca... O vento agora não é muito forte.... Mas a única solução que tenho é realmente deitar-me no fundo da canoa, até para não gastar energias... Para não fazer muito esforço físico.

Não tenho comida... Sinto uma grande dureza no estômago... Uma grande dor nas costas!... Todo o meu corpo me dói... Há uma fraqueza geral em mim...

De manhã, vi muito ao longe a chaminé de um barco....mas bastante afastado! O mar contínua muito bravo!... O equilíbrio é realmente difícil...

Estou apenas com três comprimidos e água das chuvas... Mais nada no estômago... Tenho um apetite voraz...Neste momento eu comia não sei o quê!...

Um pormenor importante que notei é apenas da água... que têm uma cor esverdeada... Mais escura de que o habitual....Agora as correntes mudaram de direção. Estou sendo arrastado para sul... Agora já não é de oeste para este... 

E  ANOITECE...

E cai a noite...Escurece o céu e também escurece o mar. E mudam as correntes e  os ventos.... Agora ainda mais intensos... Sempre o eterno capricho dos ventos e das correntes.... Para onde me levará esta força descomunal?!... Que poder ou entidade sobrenatural  rege ou poderá opor-se a estas forças indomáveis que tumultuam e rodopiam em torno de mim numa zoada enegrecida e da mais confusa desordem?... Forças da Natura que, em vez de se acalmarem com a solidão noturna, recrudescem de violência... 

Recebo lufadas de ventos de todos os lados. Todos os sons  tornam-se ainda mais audíveis  mas simultaneamente confundíveis num único ressoar. Este é o silêncio dos ruídos que submergem até as longínquas estrelas e que o sol, ao despedir-se, não quis levar consigo e abandonou do seu giro. Não se sabe, se o que ressoa  é o bramido das vagas ou o silvo do vento. Todavia, sob a incomensurável concha negra dos céus, no meio de toda esta imensa sinfonia de sons, surdos, abafados, polvilhados pelo ressoar  e o marulho bravio  das espumas, há uma vida humana solitária que resiste . 

Sei, no entanto, que mesmo que gritasse, ninguém ouviria os meus gritos - Serei porventura a mais desgraçada e abandonada criatura que se pode ser na vida. Mas eu quero viver. Viver até à mais débil energia, até ao último sopro de vida. Há, porém, uma realidade, incontornável,  que eu não posso ignorar: a morte está sempre ao meu lado. Umas vezes mais terna e sedutora, ofuscada  pela beleza das manhãs e tardes calmas e deslumbradas, quando as águas se aquietam, brilhantes de escamas  fugidias de pérolas e de rubis. Outras  sob o disfarce de crepúsculos de oiro, tingidos por aguarelas e transparências de vitrais ou até sob a capa da luz branca de luas enormes e nostálgicas que vagueiam e espreitam, lá do alto, por entre grossos novelos de nuvens, em límpidos céus de veludo, com lábios sedutores de um brilho de inigualável ternura, namoro e mistério. Ou, então, como agora, com a sua face mais hedionda, completamente desfigurada e atormentadora,  possessa e atiçada pela crina de ventos soltos e endiabrados.

 HAVERÁ FIGURA MAIS PRÓXIMA DA IMAGEM DA MORTE DE QUE A  DE UM NAVIO PERDIDO NO ALTO MAR, FUSTIGADO POR UMA NOITE NEGRA E TEMPESTUOSA?!...OU DE UM HOMEM SOLITÁRIO VAGUEANDO ESQUECIDO AO SABOR DAS ONDAS E  VENTOS TUMULTUOSOS E NOCTURNOS NO SEU MINÚSCULO ESQUIFE?!..
 ..

 




A bem dizer, a morte é a minha companheira de todas as horas. Convivo, lado  a lado com a sua vertigem, seja atraente ou aterradora, vagueio à superfície do abismo da sua imensa sepultura. A qualquer instante poderei desaparecer e  quase sem dar por isso. Basta que os dedos engalfinhados das suas poderosas mãos, que a noite cobre com golas rendadas e franjadas de luto,  me surpreendam a dormir ou até em qualquer instante da minha penosa vigília. Mas, se tiver de morrer, se for chegada a minha hora,  paciência!... Também não é caso para desesperar. Antes de me meter nesta aventura, equacionei todas as hipóteses: de viver e de morrer. Estou preparado para tudo; para o que o der e vier. - Só desejo que ao menos me acolha no seu leito, como um dos bravos, dos que  não lhe viram a cara e lhe dão luta, e, sendo assim, só lhe peço que ao menos seja um pouco mais complacente e me livre da terrível agonia dos miseráveis afogados que impiedosamente já sufocou e tragou nestes mesmos mares. 

Mais a mais, se eu partir para o lado de lá, ninguém vai saber como e quando a morte me chamou. Ninguém vai ter de cavar a minha sepultura, pois tenho-a, aqui ao meu lado, sempre aberta. Não, não posso receá-la... Pois haverá maior solidão do que aquela que agora que me envolve?!...Do que aquela em que  estou profundamente mergulhado?!... Haverá maior martírio do que aquele que eu vivo nestas horas, dolorosamente incertas  e  infinitas?  Que me arrastam, não sei para que confins desta  imensa e tumultuosa negridão!

 A morte?!... Como posso eu  temer a sombra da minha própria sombra se nem sequer a enxergo?... Que diferença fará a minha triste figura das sombras soltas, do confuso tumulto que campeia à superfície da conturbada planura que a espessa noite impele, transfigura e oculta?!... Noite  sobre a qual vogo e ninguém me distingue e nem eu vejo o fundo do madeiro que piso!... Que contraste haverá de mim e das trevas  que ondulam por toda a parte e têm como coberto o negrume de um espesso e pesado céu?!...Oh, sim!. Haverá maior solidão do que aquela que povoa o meu coração de mil sobressaltos, angústias  e de incertezas?!... Sim,  que me confunde e esmaga sob o teto da mesma assombrosa atmosfera em que vagueio, sem rumo e pedido!.. 

Oh, como posso eu virar as costas à  Soberana Morte, se ela me chamar?!... Até porque, se o mar me levar, meu corpo, nunca ficará  tão sozinho como agora se encontra....Há uma cova continuamente aberta, que já recebeu milhões de vidas e não se importa de continuar a receber ainda muitas mais vidas!  - Que foi a sepultura  dos milhares de escravos que, nestes mesmos mares, agonizaram horrivelmente, nos escuros porões dos barcos negreiros ou foram atirados vivos para o tumulto das ondas!.. A morte quando bate a porta, não distingue o escravo do escravizador, do pobre do rico. Levou corsários e piratas, criminosos algozes, sem escrúpulos, que não chegaram a ser mais valentes com as tempestades de que com   as suas vítimas. Não poupou e não se condoeu  de corajosos e  intrépidos pescadores, pilotos e marinheiros. Oh quantas vidas, por aqui  já não terão parecido, na vastidão do "Grandíssimo Golfo", nestes mesmíssimos mares de outrora, do passado e do presente!... Mares eternos" Mares de sempre! Mares de inesperados tornados e perigosos tubarões!



Na verdade, já lá vão algumas horas depois que o sol se pôs, e eu continuo sem me poder deitar. Sinto-me exausto e possuído por um desejo irresistível de dormir. Estou para aqui enrodilhado como um miserável trapo. Abrigado  debaixo de um toldo para me defender dos  espirros das ondas, porém,  do que eu não consigo proteger-me e defender-me, é da água que entra através da rachas. Há a que aflora pelo sítio onde assenta o mastro e também ainda a que atravessa as rachas que estão acima da linha das águas. Só que, acima dos 40 cm submersos, os 20 cm que restam, é muito pouco. Entra lentamente mas, como não pára de entrar, vai-se avolumando. E eu não disponho de bombas para a escoar; tenho que o fazer eu com o balde ou com a espátula.

 Apetecia-me estender ao comprido, pois é assim que eu faço nas noites mais serenas, e quando não chove, tal como são estendidos os cadáveres nos caixões - Sim, esta canoa é um caixão flutuante. Não é feito de várias tábuas mas num só madeiro. Mas estou a ver que não vou conseguir. Sofre constantes balanços. As ondas estalam no costado com fortes chicotadas. Por mais que escoe a água, o fundo continua num autêntico charco. De volta e meia, lá tenho eu de me ajoelhar para a escoar e espreitar o ambiente lá fora. E é o que vou fazer agora. Não deve faltar muito para a meia-noite. Mesmo sem horas, sinto o seu peso. E de noite já reajo às mesmas horas, como um autómato. Não para verter a água que faz da canoa uma banheira, pois só a baldeio quando me cobre as costas - E agora não estou deitado, mas quero saber como tempo está lá fora.

Está a molinhar. Vejo relâmpagos a rasgar o negrume das distâncias. Com o barulho das ondas ainda não ouvi o trovão, mas não deve tardar a fazer soar por aí a sua orquestra.  Meu Deus!...Este mar não me dá tréguas nem descanso!.. Pelo que vejo, espera-me um resto de noite, ainda mais confuso e atribulado.  Uma noite, açoitada  por um vento furioso, que parece não se acalmar. Vejo as habituais manchas luminescentes, aqui e além no ondulado negro das ondas, brilhos confusos e terríficos, vindos de mil direções, e certamente também das profundezas,  que refulgem, que reluzem e tremeluzem de onde em onde. Que aparecem e desaparecem. São as manchas do plâncton  e certamente da fauna marinha das profundidades que o persegue às horas mais escuras e sinistras,  que aflora à superfície.  Quando fiz a travessia de São ao Príncipe é que eu fiquei arrepiado. Era simplesmente pavoroso ver as ondas em vez de a branquear de espumas, vê-las franjadas de lume. Com explosões que faziam lembrar um mar em chamas. Até a pá do remo parecia sair de um mar a arder. Ou saída da corrente do magma de um vulcão explodindo e cuspindo a sua lava. Estas imagens são muito comuns nos mares tropicais. Agora já  estou habituado a esses estranhos brilhos. Não é isto que me assusta ou preocupa. Mas a chuva que apanho no corpo e as tempestades noturnas que só vêm dificultar ainda mais a minha segurança e sobrevivência.








quinta-feira, 22 de novembro de 2012

33º Dia - Estou exausto!... Neste momento apetecia-me chamar ... Pai!... Afinal, você tinha razão!.... Porquê?!... Meu filho!..... Esta tarde vi grandes toras!... Grandes paus!! E eu confundia-me com tudo isso!... Como um ser desprezível!...

Algures no Golfo da Guiné, 22 de Novembro de 1975







Foi há 37 anos... O relato do meu diário, relativo ao 33º dia (o gravado, sublinhado a azul) foi registado precisamente, neste mesmo dia do mês, mas já foi há muito tempo - Muitos que me irão ler, ainda não tinham nascido. Perguntar-me-ei, hoje:  o que seria agora o meu corpo tragado no fundo do mar?!...Se calhar - por entre as algas e os sedimentos daqueles fundos abismos, sobre os quais voguei -  já nem sequer restasse a   sola das minhas sandálias.

Sim, estou vivo.  Dou graças a Deus! - Imerso pelo rolar terrível  das ondas e do grito afogado do vento, à deriva em tão minúsculo esquife  e ainda ter sobrevivido?!...Só por Obra e Graça de Deus e por Divino Milagre!... - E, todavia, não sou católico, mas reconheço que me valeu nunca ter perdido a confiança, ter sempre lutado e também nunca ter perdido a fé, que me foi ensinada em criança  -  De facto,, já não sou o tradicional católico, mas acredito em algo sobrenatural. 

Se o ter  nascido é já por si um milagre de Deus,  - pois quem é que ainda duvida que haverá milagre maior e mais maravilhoso de que um nascimento ou a reprodução das espécies?!... No entanto, o ter resistido, a tão dura provação - e o leitor há-de ver que as maiores tormentas, por que passei, ainda estavam por vir -  sim, não sei se não será menos espantoso como o milagre de a minha mãe me ter parido numa noite fria de Janeiro, no seu modesto leito habitual e sem parteira.


NOITE NEGRA, LONGA E TEMPESTUOSA E DIA CHUVOSO, CINZENTO E TRISTE - MAIS UM LONGO E TORMENTOSO CALVÁRIO  DE FOME. E DE INCERTEZA.

A manhã amanheceu baixa  e plúmbea: despertou com uma enorme tristeza de lágrimas. Ou será  porque  sou eu que me sinto imensamente triste?!... O mar ressoa a sua fúria nervosa, ainda não se acalmou, e o sol, perdido que parece estar lá pelos confins do seu habitual giro, dificilmente hoje irá  fazer a sua aparição e mostrar  a pino o esplendor do seu sorriso equatorial.

A noite foi longa e tumultuosa, com ondas intermináveis! Cada minuto tinha a dimensão da imensa negridão e, cada hora, mais parecia uma eternidade. Ondas rugidoras e lúgubres, ameaçavam cuspir-me a todo o momento para o sinistro sorvedouro, que se ocultava e estendia numa compacta massa tumultuante. Horas intermináveis, horas terrivelmente infinitas! Flutuando perdido ao sabor do rolar de vagas furiosas. Mas, finalmente, tenho um novo dia pela frente!... Sinto-me muito fraco e abatido, mas felizmente ainda estou vivo - Assim o testemunha o meu diário gravado, que defendo do mar no meu baú - um antigo caixote do lixo

Diário de Bordo 1 Passei uma noite, exaustiva!... De chuva... O mar extremamente agitado e muito perigoso!...A manhã continua com um mar cavado, com muita ressaca!...Há vento!... E eu sem ver a costa de África... Estou muito fraco!... Muito fraco!... Vou tentar colocar a vela... Vou ver se consigo  fazer  alguma coisa neste mar extremamente difícil e perigoso! 

 Mas é-me quase impossível navegar. Se ao menos dispusesse de um remo capaz!... Perdi o que tinha com o tornando na primeira noite - perdi quase tudo. E o que improvisei, é demasiado tosco. E o mau tempo, próximo da costa, é muito mais perigoso de que no alto mar... Continuo sem qualquer sustento. A única coisa que já meti à boca foram umas folhitas de umas ervas que encontrei vogando à superfície do mar. Água das chuvas não me tem faltado e então agora até demais., porque, desde há umas largas horas que ainda não parou de chover. Estou para aqui escolhido a um canto da popa da canoa, quase imóvel, repassado pela humidade e arrepiado pelo frio.










Tenho urinado com regularidade mas estou preocupado porque já nem me lembra que tivesse feito uso do pequeno balde de plástico para evacuar. Claro que eu sei que não tenho metido quase nada na barriga, mas precisamente por isso é que me aflijo, que às vezes os intestinos até deixem de funcionar.

 A BÚSSOLA PERMITE-ME SABER PARA QUE PONTO NAVEGO OU VOU SENDO ARRASTADO - MAS, COM O CÉU ESCURECIDO E CHUVOSO, SINTO O PESO DO TEMPO, A SUA ADVERSIDADE MAS DESCONHEÇO A QUE HORAS ANDO

 Diário de Bordo  Não sei que horas serão da tarde do 33º dia. A verdade é que até agora tem chovido bastante!... Há bocado não estava a chover... Estava o mar bravo!... Mas de um momento para o outro passou a chover... Só chuva!... E vento!...

Diário de Bordo 3 Agora volta a haver uma certa calmia... Mas já vejo  ameaças de chuva no horizonte...  Ainda não comeram nada... Aliás, comi agora um bocadinho do resto do tubarão (pescado há vários dias)  que  está estragado praticamente... Estou cheio de fome! Não consigo pescar!... Não vejo terra... Estou realmente bastante... não direi desmoralizado... mas abatido psicologicamente.

O tubarão é dos peixes, cuja carne não aguenta muito tempo - Mal se pesca, não tarda a que seja uma carcaça em decomposição  - No mesmo dia, pesquei dois: um deitei-o fora,  o outro guardei-o para iscas e para o que desse e viesse - Mas gera um autêntico fedete. Quando mastigo alguns bocaditos -  roendo as barbatanas, sim, é o que tenho feito, quando o vazio do estômago se me torna mais insuportável. Não fecho os olhos, mas fico com uma azia tremenda.  




Estou convencido que alguns ataques dos tubarões, que de volta e meia se atiram como torpedos contra o costado da canoa, se devem a isso mesmo: ao cheiro que os atrai. Pois os tubarões veem mal mas têm um notável olfato.



Claro que não me sinto desmoralizado, pois continuo com a convicção de que hei-de chegar a terra. O que eu desconheço é quando a poderei alcançar.  Sim, mas,  fisicamente,  faltam-me as forças, estou muito fraco. Já não tenho a mesma energia que tinha quando deixei São Tomé. A minha  canoa é comprida mas frágil – Não tem mais de que um metro de largura, por 60 cm de altura, 40 cm dos quais, estão abaixo da linha de água. Foi talhada num madeiro, cortado na floresta, próximo  da Vila das Neves, da praia donde parti.


  Diário de Bordo    Em relação às correntes, em vez de de me aproximarem para norte, estão-me a levar ao longo da costa de África... Irei ter provavelmente ao recanto do Golfo do Biafra...Não vejo outra alternativa... Agora o que eu não sei é o tempo que irei demorar.

Esta manhã, a canoa, ficou alagadíssima!... devido às chuvadas!... Estou exausto, digamos assim.

Claro que não me sinto vencido ou resignado à minha sorte, e vou lutar, lutar, enquanto puder. Mas a verdade é que, dormir no fundo de um madeiro escavado, flutuante e encharcado, submetido a constantes balanços, a rolar a rolar e à deriva num mar escuro e encapelado, numa confusão tremenda, se,  já de si, é um tormentoso calvário, que não me dá tréguas, nem descanso, quem é que, cheio de fome,  pode ter o mínimo de repouso e de tranquilidade, ter um sono reparador, com o estômago completamente vazio?!... É que, além  de toda a incerteza que me oprime, também o estômago se me contrai , num horrível sofrimento!

Fazer jejum, de vez em quando, até pode ser saudável, mas, sendo no mar e prolongado, é muito doloroso!... Desgasta e abre o apetite  -  E, então,  como eu lhe poderei dar resposta, não tendo alimentos comigo, nem tendo conseguido pescar?!... Sim, a fome, aguça o engenho, mas seguramente que não é a melhor companheira para a tranquilidade do corpo e do espírito

Oh, mas quem me dera agora recuar àquela hora ensolarada e brilhante da manhã, em que deixava a linda praia da Vila das Neves,  envergando uma simples t shirt,  de calção e descalço, empurrando a minha canoa, com todos aqueles meus amigos, que me ajudavam  a arrastarem-na para o mar. 

Eu a receber, de encontro à minha face e ao peito, a encher os meus pulmões, aquele bafo quente e acariciador, aquela doce maresia com o sabor mesclado de sal e dos odores perfumados da margem luxuriante,  caminhando e pisando as frondes (as andalas) dos coqueiros, enterrando os pés naquela areia negra e rugosa, escorregando nalguns dos seus gogos reluzentes, que pareciam cantar, com o vai e vem das ondas, com o marulhar carinhoso das águas, como que recebendo-me, festejando e participando comigo, no mesmo prazer e alegria, no mesmo sentimento comum de aventura e  descoberta, que tão intensamente me possuía! 

Prazer de total e  pura entrega a um mundo maravilhoso e sagrado, às forças brutais e naturais dos elementos, rendido à sua face sedutora e ameaçadora! Ao mundo primitivo e original da vida!... Ciente de que ia ao encontro de uma vasta superfície líquida, cujos horizontes se mantêm, continuamente, tão próximos, como distantes e inatingíveis... Mas, por isso mesmo, num permanente desafio de deslumbramento, despojamento e   descoberta -  Sim, não levava sequer um centavo no bolso. E para quê ser escravo do dinheiro?.. Era como se fosse em demanda de um Verdadeiro Mundo Novo, mais divino e mais puro.

Ah! que sensação de liberdade! Que momentos mais indescritíveis aqueles,  que se me abriam aos meus olhos, ávidos e ansiosos! Irmanado ao mar,  atraído pelo prodígio da sua grandeza e a vertigem do seu fascínio!.. Oh, como aquele oceano   se me revelava tão vasto, tão azul, lânguido e tranquilo! – Tantos sentimentos e tão belos!.. Tantas emoções, que agora recordo mas que parecem já tão distantes e arredias de mim.


Oh, mas embora longínqua de mim, como posso eu esquecer-me dessa esplendorosa manhã!  Cuja harmonia e beleza, tão calorosamente fazia pulsar meu coração!... Não de quem pertencesse a um país ou a uma pátria, ou mesmo partia de uma ilha que já era soberana e independente, onde tive todo o apoio e carinho para levar a cabo esta minha aventura. Não, esse é um sentimento e uma gratidão, que jamais se diluirá, que guardarei para sempre num cantinho especial do meu coração... 

Na verdade, o que então sentia, como que a fluir  febrilmente na minha mente e no meu peito,  era a sensação de que  o sangue que me corria nas minhas veias, era o mesmo todos os peixes e de todas as aves, que esperava encontrar na minha jornada pelo mar fora, o mesmo de todos os homens, de todos os seres e de todas as espécies, de cujo mundo me separava. Era como,  se eu próprio,  o vagabundo anarca e lascivo, que, partindo,  praticamente sem rumo e sem destino, já não pertencesse a parte alguma da Terra e tivesse, como única pátria todo mundo e toda a humanidade!...

E, por estranho que pareça,  o que é que eu agora sinto, nesta manhã cinzenta, turbada e triste?!... Sinto que tudo isso  se me desvanece com a angustiante e  amarga sensação, de que, mais de que me sentir um apátrida,   sou afinal um proscrito, a criatura mais esquecida  da Terra inteira!... - Ninguém sabe onde estou, nem eu mesmo  sei onde me encontro ou para onde vou.




Diário de Bordo 5 - O céu está muito carregado e parece quase noite. ...Sinceramente, sinto-me muito isolado!... Alagado completamente!...

Estou exausto!... Neste momento apetecia-me chamar ... Pai!...Meu pai!... Afinal, você tinha razão!....   - Porquê?!... Meu filho!...

Estou para aqui!... Não estou desiludido!... Tenho fé que hei-de chegar a terra!.... Mas, sinceramente... tenho tido tanta calma!... Tanta perseverança! ...No meio de tantos perigos... De tantas dificuldades!... Talvez já não existisse... Mas... eu hei-de chegar a terra.... Estou par aqui perdido.... nesta imensidão! Cinzenta!... Neste mar acinzentado... Nesta vastidão!...

Esta tarde vi grandes toras!!... Grandes Paus!... Tábuas!... E eu confundia-me com isso...Como um ser desprezível!... Talvez como esses paus à deriva... a mesma coisa
.

Confesso que já começo a ter algum receio que uma ou outra dessas enormes toras, de tamanhos descomunais, que aparecem e desaparecem à tona das ondas com incrível rapidez, se precipitem de encontro à minha canoa e a desfaçam. De dia ainda as vejo e ainda posso acautelar-me mas de noite é que eu não consigo localizá-las. Também existe a possibilidade de ser abalroado por um barco mas estes raramente os vejo e as toras já vi  muitas!

Realmente, nunca vi o mar assim tão sujo como agora. Desde há uns dias para cá, tenho observado  com mais frequência  essa sujidade. É certamente por me estar a aproximar  do recanto mais setentrional do Golfo da Guiné. Pois é para aqui, com certeza, que vai parar toda a sorte de detritos e madeiras, que são despejadas  pelas águas dos estuários. E depois também há os poços de petróleo. Pois também tenho visto muitas manchas de óleo, grânulos  de crude, os mais diversos objetos de plástico, esferovites, raízes - Quando vejo uma folha verde e a posso apanhar, levo-a imediatamente à boca.

DEPOIS DAS GRANDES CHUVADAS O HORIZONTE FICA MAIS DESCOBERTO E O MAR COSTUMA ACALMAR - FINALMENTE, DE NOVO  CONTORNOS DA COSTA AFRICANA OU DA ILHA DE BIOKO





Diário de Bordo 6  O fim da tarde está-se a pôr suave..O mar já não está tão agitado como esteve....Não chove.... O céu está brusco... Nublado... Apenas descoberto a poente...

Tive agora a felicidade de vir nítidos contrastes da costa de África a Norte e a Este... Que me dão a impressão de uma grande serra! De uma montanha!... Se a vista não me falha.... Portanto a distância não é muita.... Mas pode ocupar-me ainda o dia de amanhã...

Esta tarde , como já tive oportunidade dizer.... foi uma tarde bastante aborrecida... Por várias vezes choveu torrencialmente!... Alagando a minha canoa....

Como ainda não comi praticamente nada, senão umas barbatanas do tubarão... uns bocaditos para mitigar a fome....estou cheio de fraqueza....

Tive ocasião de ver muitos paus, muitas tábuas. também à deriva como eu... E, de vez em quando, o mar com manchas de óleo... O que  me leva a crer, portanto, que eu estava a ser arrastado para terra... Porque o mar... as coisas não ficam!... Vão ter a terra... Estou convencido, pois, que hei-de chegar a terra.

Diário de Bordo 7 . - Espero passar uma noite mais ou menos descansado... Não sei... Não sei como será... Peço só que não chova.... Porque quando chove é muito chato!... A gente fica todo molhado... É muito aborrecido!.

Neste momento o poente apresenta um panorama bonito!... O sol por entre nuvens!... É muito agradável neste momento!... Na altura de ver o sol a poente... De resto, o céu mantém-se cinzento e o mar igualmente
 .


Diário de Bordo 8 Segundo os conhecimentos que tenho, estou convencido de que posso sobreviver mesmo só a água... Durante alguns dias... Portanto, sobre este aspeto, estou mais ou menos conformado.

E, enquanto a tarde declina,  com o sol a espraiar os seus últimos raios num ocaso esplendoroso e tingido  por um vermelho de sangue, vou-me abstraindo de todos os pensamentos e ideias funestas que durante a tarde me perturbaram. Já nem penso nas palavras que ainda há pouco me conformavam. Só vejo raios de esperança e de luz. Estou completamente abstraído de tudo o que me tem preocupado. Apesar da enorme fraqueza que me desgasta e destrói e de ter o corpo cheio de chagas pela humidade, tal como o de Cristo, depois do suplício na cruz, mesmo assim, sinto reviver dentro de mim uma infinita ânsia de vida. Apenas concentro a minha atenção para as bandas onde o sol  se esconde. Só contemplo  esses raios que se estendem até mim, sobre a vasta planura do imenso círculo  que me envolve. Donde recebo uma sensação de paz,  de majestosa quietude e devota serenidade.

.Mas por pouco tempo - O crepúsculo nestes mares é rápido e, entretanto, a noite adensa-se: a oriente e a ocidente:  o cenário já  não é o mesmo. Tudo mergulhou sob uma abóbada  densa e sombria. Por todo o lado se estende uma vasta solidão.Há um silêncio absoluto que contrasta com agitação do mar pela tarde adiante.Não sei para onde vou sendo arrastado. Mas também não adianto preocupar-me. Vogo à flor das águas, que tanto me poderão arrastar para o abismo, como para um acolhedor recanto,  um tranquilo porto de abrigo e me salvar..Só amanhã, à hora do sol nascer, quando um novo dia surgir é que eu eu poderei saber.