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segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Há 40 anos - canoa acosta na Guiné Equatorial - 38 dias depois, fazendo a ligação desde a Ilha de Ano Bom, localizada no Atlântico Sul, a 350 km da costa oeste do continente africano e 180 km a sudoeste da ilha de São Tomé, até à Ilha de Bioko. ex-Fernando Pó, então sob a tirania do ditador Macias Nguema - Era o principio de outra odisseia.

- Por Jorge Trabulo Marques - jornalista 

Na costa da Ilha de Bioko - ex-Fernando Pó
27 de Nov - 1975 - 38º Dia - Eis que, finalmente, depois de 38 dias, me encontro numa praia!... Junto a um recanto!... de uma magnífica montanha! De verdura!... Equatorial!... De plantas exóticas ! das mais variadas espécies!.... Foi extremamente difícil chegar até aqui!... Foi para além mesmo da minha resistência!... Mas finalmente , atingi esta costa!... Esta costa que  se ergue aqui numa montanha de verdura!... De magníficas árvores, das mais variadas cores!...

 Estas foram as últimas palavras que pronunciei para o meu diário gravado, para um pequeno gravador que consegui preservar no interior de um contentor de plástico, igual aos do lixo. assim como a máquina fotográfica , cujos rolos  o mar poupou mas que bem podiam ter sido confiscados pelas autoridades policiais da Guiné Equatorial, o que não aconteceu, porventura por descuido, já que, quando me prenderam, além de terem passado tudo a pente fino, até as gravações chegaram a ouvir, de ponta a ponta - E eram seis as  cassetes. 





Ilha de Ano Bom
A canoa foi carregada a bordo do pesqueiro Hornet, em 15 de Outubro, ao largo da Baía Ana de Chaves, com o objetivo de ser largada na corrente equatorial, um pouco a sul de Ano Bom, e dali partir para uma travessia transatlântica - .   O comandante não cumpre, porém, com a sua palavra, tenta demover-me a desistir da minha aventura e ficar a bordo a trabalhar - Não tendo aceite a sua proposta, a canoa é arreada,  alegando que a canoa estorvava a pesca.

Ao fundo a Ilha de Ano Bom

A bordo do Hornet
20 de Outubro - 1975 - Desiludido por não ter sido largado um pouco mais a sul e a oeste, lá parti, de regresso a São Tomé, pelo desconhecido oceano a fora, a pensar em refazer nova viagem e com o apoio marítimo  de alguém que não me traísse! - . Após um dia de navegação normal, com vento pela popa e à vela - mas sempre perseguido por duas canoas  para me roubarem os alimentos, dada a extrema penúria vivida naquela ilha - surge o inevitável temporal: um violento tornado, ao princípio da noite, vindo do sudeste,  uma súbita rajada de vento seguida por uma enorme vaga, apanha-me desprevenido e ainda com a nova casca de noz,  mal acabada de experimentar,  solta-me o leme (que lhe adaptei - e só por milagre também eu não fui atirado, com a cana do leme, para o seio daquela escurissima confusão, que só a curtos espaços os relâmpagos iluminavam) deixa-me a piroga atravessada à vaga e desgovernada, varrendo-me os apetrechos e forçando-me alijar da maior parte de viveres para aliviar o lastro e não ir ao fundo

Âncora Flutuante com um bidõe
Enfrentando tempestade

- Lá foram mandados ao mar três bidões de água potável  e  as latas de conserva  oferecidas a bordo do pesqueiro Hornet. Apressei-me a enrolar a vela e a colocar o mastro (suplente) de través para lhe conferir alguma estabilidade e a lançar o 4º bidão de plástico, meio de água, preso a uma corda para fazer de âncora flutuante de modo a forçá-la a estar de proa à vaga.. O colchão insuflável, coloquei-o à proa com a lanterna, sobre o estrado) para o que desse e viesse, sim, era a única boia que dispunha e eu não sabia ainda muito bem como a canoa iria resistir e se comportar.. Escusado será dizer que a noite fora pavorosa!...Não há palavras para a descrever..De manhã improvisei um remo com um barrote e uns bocados que arranquei da cobertura, junto à popa..Sim, nunca cruzei os braços, nunca me dei por vencido: foram infinitos os momentos em que a vida esteve sempre presa  por um fio. Mas havia que lutar.

Na noite do naufrágio
Era o começo de um longo e exaustivo tormento . Encontrava-me no Atlântico Sul , em pleno mar alto,  a 350 km da costa oeste do continente africano  e 180 km a sudoeste da ilha de São Tomé. As chuvas constantes da primeira semana, com o horizonte sempre encoberto, impedir-me-iam de avistar São Tomé. Mais tarde avistei a Ilha do Príncipe e Ilhéu das Tinhosas, mas, a falta de remo adequado, não me permitiram a aproximação. Por fim, a 27 de Novembro, acostei numa praia de Bioko (ex-Fernando Pó) .Onde fui preso e encarcerado por suspeita de espionagem.

Uma parte do meu diário dos meus longos e tormentosos 38 dias numa frágil canoa - muitos dos quais  à deriva, ao sabor dos ventos, das tempestades e das correntes - , foram publicados neste site, há três anos  - Nomeadamente, desde o 17º dia até  ao 37º Dia Hoje resolvi editar o  último dia dessa odisseia, aquele em que pude pisar terra firma, numa recôndita enseada da Ilha de Bioko (ex-Fernando Pó), da Guiné Equatorial,  E, nas próximas postagens, além de minha incursão pela floresta até ser acolhido numa finca (roça) os interrogatórios a que fui submetido pelo chefe da policia daquela área e conduzido aos calabouços da esquadra, a drama que se seguiu na tenebrosa Black Beach


 No dia anterior pronunciaria estas palavras

  É já noite do 27º dia! Estou à beira de uma praia!... De uma floresta virgem!...Floresta maravilhosa!... Tive imensas dificuldades!... Foi um bocado exaustivo!...Para conseguir...utilizei todas as minhas forças!... Já não tinha água!...Não tinha nada!...Depois encontrei alguns cocos... próximo aqui da praia!... Com os quais mitiguei a fome!... Estou  muito fraco! Mas ao mesmo tempo reanimado! porque estou próximo...Tenho aqui a canoa fundeada!....esperando o dia da amanhã!...Não sei, efetivamente, que terra é esta!... Mas é terra!... Uma terra que me parece fértl, rica e  maravilhosa!

 Fundeado junto a uma praia da região de  Bococo, a sul da Ilha de Bioko - Guiné Equatorial -  26 de Novembro de 1975 -  Era já noite e não pude acostar. Na manhã seguinte, descobriria, na mesma orla, algures para oeste, um pequeno areal negro onde pude finalmente desembarcar. As horas magníficas que ali passei durante a manhã, até meio da tarde, naquela pequena enseada luxuriante -  qual  aspirante a Robinson Crusoe  e depois a caminhada pela floresta que me levaria a uma finca de cacau, a forma amistosa como ali fui bem recebido a contrastar com o comportamento desumano das autoridades que, mesmo extremamente debilitado, nesse dia à noite, me levariam para os calabouços de uma esquadra, sob suspeita de espionagem, tendo, no dia seguinte, sido conduzido algemado para a  mais temível cadeia de África - a tenebrosa Bach Beach  - que  quer dizer morte. Quando um prisioneiro chega a esta prisão, sua família começa a preparar o caixão.-

 Na manhã do dia seguinte, procuro  então um lugar seguro onde pudesse acostar a canoa, mas não me parecia fácil - A costa era abrupta e montanhosa e eu estava muito fraco, sem forças para remar para  muito longe, já que à vela, o vento era insuficiente. Foi então, que me apercebi, ao rema um pouco para o largo, de que havia uma pequena enseada que, dispondo de um pequeno areal, aparentemente me oferecia algumas condições de ali acostar - Entretanto, naquele compasso de observação, vejo ali chegar um homem que começa  a escavar a areia, porventura à procura de ovos de tartaruga. 

Receando que, ao chegar à zona de rebentação,  não tivesse forças para retirar o contentor da canoa e salvaguardá-lo, e, por isso, não querendo correr tal arisco, resolvi usar o apito que trazia num cordel ao peito e apitar para o dito homem a fim de lhe pedir apoio - De facto, ele olhou mas, talvez supondo-me pescador, não quis saber. E pouco depois ia-se embora.     

Eis algumas passagens reescritas do relato que verti para os meus cadernos, quando estive preso e que agora reescrevi  - "Dei umas assobiadelas, com o apito que tenho num cordel ao peito, ele levantou-se, olhou, por uns instantes na minha direção, mas não fez caso, continuou a escavar com o machim na areia. Com certeza, julgou-me  algum pescador. Pouco depois, desaparecia, possivelmente pelo caminho donde tinha vindo. A partir daí fiquei mais inquieto. Pensei que, de facto, mesmo perto de terra, a não podia alcançar, Mesmo assim, nem por isso perdi a serenidade. 

Apesar de tudo, estou calmo .Acho que  um homem, enquanto estiver sujeito aos caprichos  do mar, nunca se deve precipitar. Mesmo à beira da costa, tal como agora me encontro, onde os perigos aparentemente não parecem ser tão visíveis, no entanto não faltam, em forma de escolhos ocultos, talvez em maior ameaça, que no mar alto

FINALMENTE, DECIDIDO A REMAR EM DIREÇÃO A TERRA

Recanto da Ilha de S. Tomé,  parecidos aos de Fernando Pó
Decido-me, por fim, a empreender a abordagem. E vai ser precisamente para a mesma praia donde há bocado vi desaparecer o tal enigmático homem – A primeira imagem humana, que me foi dado ver,  depois de ter sido largado do pesqueiro Hornet, em Ano Bom. Parece ser o único sítio ao longo da costa, que me parece oferecer mais confiança. As ondas, lá também branqueiam de espuma ao desfazerem-se na reduzida borda de areia negra, julgo, no entanto, que deverá ser o mais propício que por aqui, nesta costa aprumo.

Porém, antes de puxar a âncora para bordo, vou primeiramente reunir certo material que aí tenho no interior do meu baú – um caixote de plástico, que era usado para depósito do lixo. Após o que o amarro, com alguns cordéis e coloco-o à minha frente, onde vou remar. De modo que, quando a canoa embicar na areia, seja a primeira coisa a salvaguardar. Assim, na iminência de a canoa se poder voltar, eu possa evitar que o seu  conteúdo, onde guardo o gravador e as cassetes, com o meu diário, a máquina fotográfica e os rolo, possa ficar à mercê das vagas e se danificar. Uma coisa, porém, devo atirar borda fora, é o machim, pois não quero que seja tomado por algum salteador mas de um aventureiro corajoso mas pacífico.

 O mar está ligeiramente encapelado, há alguma rebentação,  junto à margem, mas no ponto em que vou largar  ainda não esteja difícil. Corre uma tépida brisa de oeste, que, pela sua fraca intensidade, nem me afecta nem me favorece, tanto mais que não navego à vela. O Sol ainda hoje não fez a sua aparição.

A pequena enseada de areia,  deverá  situar-se a uns 50 a 100 metros. É na sua direção que já aproei a minha canoa.  Remo com a corrente a bater de alheta e com a margem da costa a estibordo.

Confesso que  vou com algum medo. A bem dizer, parece custar-me a abandonar o mundo que  até agora me aceitou, se bem que fazendo-me viver as mais duras provações. Mas, custe o que custar, tenho que vencer este derradeiro lanço – E, paulatinamente, meio dobrado pela enorme fraqueza,  cheio de terríveis dores no rins e no estômago, lá vou remando, com auxílio do remo improvisado, golpeando a água de mansinho, ora de um bordo ora de outro.

Não pronuncio uma palavra mas o meu coração não para de bater - Pensamentos diversos e contraditórios, perpassam-me pelo meu cérebro, com múltiplas interrogações às quais não sei responder. Pois desconheço  que terra vou pisar e  que ambiente de pessoas poderei encontrar. Já sou vejo  água efervescente  por todos os lados e, como pano de fundo,  toda a grandeza estonteante do verde profundo e luxuriante da floresta. A canoa balouça perigosamente, sobre a linha de rebentação,  que  a sacode em  sucessivos turbilhões.  

Finalmente, e aproveitando o vai-e-vem das ondas, um dos seus movimentos ascendentes, largo remo e preparo-me para saltar borda fora com o baú da minha trouxa e de outras preciosidades (registo do diário e fotografias), esperando que uma vaga acabe por empurrar livremente a canoa. E, nisto, mal  sinto a proa a roçar na areia negra, nem sequer hesito mais um instante,  imediatamente salto à agua e arrasto o caixote à zona enxuta para escapar dos remoinhos, evitando a todo o custo que, nestes  derradeiros momentos, a tampa se destape  ou seja envolvida pelo sucessivos marulhos que ali vão rebentar. 

Mas esta é, porém, uma tarefa hercúlea - Pois eu mal me posso manter em pé, sou  quase um esqueleto ambulante; é com extrema dificuldade que arrasto o meu baú: mais cambaleando, cambaleando, de que propriamente andando em passos firmes. Mas lá o vou conseguindo, com inaudito esforço,  pouco a pouco, pisando a areia escura mas macia e fina de um maravilhoso recanto, de um país que ainda desconheço, um tanto com o propósito de consumar uma fuga para a vida , um tanto quase com sentido religioso de salvaguardar  da voragem das vagas o meu relicário aventureiro e poético. 

Mas, oh que esquisito e atabalhoado caminhar! Para um navegante caminheiro!... Enfim, lá vou tomando plena consciência,  que o chão que piso é firme e seguro e não balança, como durante tantos dias e noites balanceou, à superfície de um abismo azul, que a qualquer instante me podia engolir e do qual me separava apenas a grossura de um dois dedos. Mesmo assim, ainda muito estonteado pelos incessantes movimentos da duríssima  prova de sobrevivência, a que resistira.

Arrastado o contentor de plástico para a margem, porém,  ainda não me dou por tranquilo: no meu espírito ainda há tarefas a cumprir, pois não me resigno a deixar a minha canoa abandonada e à mercê das ondas, não quero que a minha fiel companheira, seja agora destroçada  pelas arremetidas da  arrebentação. Queria amarrá-la à corda da âncora mas quando relanço o olhar, vejo-a já semi-voltada, invadida pelas águas, feita numa banheira, num mero destroço –  Que todavia parece divertir um bando de golfinhos, que haviam começado aos saltos, quando eu pisei terra firme, e que, entretanto, ora se afastam, ora se aproximam, em acrobáticas cambalhotas, como que festejando a minha salvação: - quem sabe senão os mesmos que, às tantas horas, numa certa noite, haviam feito da canoa o seu brinquedo, com sucessivas piruetas, talvez chamando-me para a vida, visto naquele dia ter passado muitos trabalhos e me ter deitado com poucas certezas se, na manhã seguinte, acordaria vivo.  São dos tais mistérios que só o mar poderia explicar mas que ficam nele bem guardados, tal como a sorte de tantas vidas que não chegou a poupar
.
Entretanto, esfomeado que estou, apesar de, no dia de ontem, à media que me aproximava das águas da costa, ter apanhado um fartote de toda a espécie de  folhas e frutos, toda a espécie de verdura, que boiasse,  incluindo a amêndoa de um delicioso coco, não resisto a  deixar de colher uma raízes de mandioca, que descubro na margem. De seguida, com o estômago,  um pouco refeito, sento-me um pouco e detenho-me a olhar o mar. Que parece entoar, ora alegres cânticos, melodias imperecíveis,  ora marulhos e rugidos de vozes agoniosas, soluçantes, estranhas, intraduzíveis.

Revivo por instantes os terríveis e maravilhosos momentos vividos. E começo a chorar de intensa comoção. As lágrimas mourejam-me nos olhos e perdem-se pela face e pela barba, enegrecida e  queimada pelo sol ardente equatorial  e as desgastantes maresias. 

É então que sinto o meu coração ficar simultaneamente aliviado e me dou conta que estou finalmente salvo. Sim, já não tenho a menor dúvida: o momento, tão ansiosamente esperado, havia chegado. Sinto-me bem disposto, posso tranquilizar-me à vontade. E aspirar, com todos os meus pulmões, este hálito benfazejo e perfumado da floresta, deste fascinante rincão  de natureza plena de frescura, viscosidade e de mistério.  E sorrio, sorrio, doido de contente, como que animado por um selvagem alegria, deambulando de um lado para o outro desta frondosa praia, sorrindo e gesticulando a cada instante, sorrindo sempre, ingénua e inocentemente, tal qual o sorriso de uma criança, quando a mãe lhe oferece um lindo brinquedo, ao sentir-me presenteado por esta maravilhosa e abençoada terra, que se me oferece como um verdadeiro paraíso perdido do resto do mundo, como se por vontade sobrenatural, depois de tantos tormentos, me fosse oferecido  como seu único possuidor e mandatário.

Porém, a contrastar com tão generosa dádiva, tão inexplicável riqueza, eu sou a perfeita estátua viva e ambulante da fome e da miséria. Tenho o corpo num deplorável estado  de fraqueza. No entanto, não paro de caminhar. Ando  daqui para ali  como que embebedado  pela beleza e doçura extasiante do local. 

Já tive oportunidade de me consolar com água fresca e pura de um murmurante riacho que aqui vem desaguar. Também já acabei de transportar todas as minhas coisas que havia ficado na canoa para a orla da  floresta. Do interior do plástico, retirei a máquina fotográfica e já bati algumas chapas à “Yon Gato”. Deverão ser as últimas recordações que guardarei da minha corajosa piroga.  

Confesso que, quando aqui cheguei, o meu desejo, era esconder-me em qualquer sítio, Não ficar aqui, junto à borda da praia, por muito tempo. Tive a impressão de que estava a violar qualquer coisa: um território alheio. Não me sentia muito seguro. Olho para um lado e para outro, com desconfiança. Tinha  a sensação de pertencer  a outra espécie, a outro planeta. Porém, estranhamente, agora apetece-me aqui ficar eternamente. Estou encantado com isto. Não me sinto nada preocupado com o meu destino. Até me parece que o meu destino é  o de continuar  perpetuamente embalado neste maravilhoso domínio: sinto uma segurança, sem limites.

Que  beleza! Que doce e agradável melancolia me produz! Que seria difícil ter chegado a um lugar mais calmo  e bonito como este!

27 DE NOV – DUAS DA TARDE

Calculo que sejam as duas da tarde. Não sei porém, que dia da semana é hoje. Fui largado, na canoa,  no dia 20 de Outubro, às 5,30 da manhã, ao nascer do sol, um pouco a norte da Ilha de Ano Bom. Portanto, hoje  completam-se 38 dias - Deve ser 27 de Novembro.

Paisagem de S. Tomé, muito idêntica à de Fernando Pó
Na verdade, após ter perdido o controlo da canoa, ter ficado sem o leme, que lhe adaptara,  os remos principais e a maior parte dos apetrechos e alimentos, devido à fúria de um tornado,  embora nunca tivesse desanimado e perdido a esperança, a bem dizer nunca mais quis saber do dia da semana ou do mês, em que me situava em relação ao calendário: o tempo passou a ter para mim uma dimensão e um significado diferente. Pouco me importava saber que fosse domingo ou segunda-feira. Que fosse este ou aquele dia do mês. Não tinha horário, não tinha qualquer tipo de obrigações a cumprir. Sentia-me desligado do tempo. A única preocupação era sobreviver. No meu diário só fazia alusão ao número de dias, que ia sobrevivendo. Foram, pois, 38 longos dias e 38 longas noites. Uma eternidade! O meu pequeno rádio avariou-se-me nos últimos dias, devido ao banho de uma onda traiçoeira. Quando o ligava, às vezes, ia tomando conhecimento de informações precisas em relação às horas  e até do próprio calendário do tempo. Mas, na verdade, o meu relógio preferido, era o movimento aparente do sol, nos dias em que estava descoberto

Porém, agora que estou finalmente com os pés assentes em terra, já gostaria de ter uma noção mais completa do tempo. Talvez por uma questão de organização humana em que me sinto mais identificado – Sim, gostaria de aqui ficar por algum tempo, viver dos frutos da floresta e  de uns peixitos que pudesse apanhar à  mão, tal como cheguei a apanhar, quando deixei de ter anzóis e eles vinham catar as lapas do costado da canoa.  Já por ali vi, junto a uma rocha, uma gruta onde podia fazer a minha cabana e já  lá deixei uns frondes de palmeiras e uns ramitos para me deitar, mas parece que aqui as horas também não jogam a meu favor .
Gostaria de continuar a saborear este lugar encantador, por tempo indeterminado,  mas  já me apercebi de um certo alarido de sons no interior da floresta, que não me tranquilizam, que também ainda não sei se são de pessoas ou de animais  e que vieram quebrar o enlevo em que eme encontrava.. Afinal, esta terra não me pertence, o mais  prudente é sair daqui: e até ir ao encontro de onde partiram essa mistura de sons ou vozes.

O pior são as minhas coisas. Eu não tenho forças  para transportar coisa alguma . O mato é cerrado e a encosta íngreme. Vou primeiramente esconder parte delas aí junto de algum tufo de vegetação. Quanto avistar  alguém, peço-lhe que venha comigo ao local para me ajudar a busca-las. 

Entretanto,  mais uma vez, olho o mar. O mesmo mar, desde a rebentação até, ao longe, a perder-se de vista no horizonte, agora a revelar-se-me  uma extensa superfície meiga e tranquila, sim o mesmo mar que tantos perigos me fez correr e que talvez só por milagre não me arrasou para o fundo das suas águas.

Olhando, ainda atentamente a minha canoa, que, estranhamente,  se abria ao meio, passando de um a dois destroços   – Não creio que tanto por  força da rebentação mas sobretudo pelos maus tratos que havia suportado, devido aos constantes embates das vagas, que, quando não navegava, a sacudiam  incessantemente. E, talvez,   também, devido a uma racha,  provocada pelos ataques de um gigantesco tubarão ,  que,  depois de investir contra ela, como um petardo,  mergulhando e forçando voltá-la, deu  em começar às voltas,  em sucessivas rabanadas – Lá o sacudi  com o machim, tal como havia de fazer a outros ataques,  o que me valeu é que a racha era um palmo acima da linha d’água . Lá  a  costurei, conforme pude, valendo-me  de chaves de latas de sardinha, dobradas, evitando que abrisse totalmente, o que não pude evitar foi a entrada da água, sempre que a cano adernava para esse lado. agora,  acabou por se escaqueirar, tanto pela pancadaria que levou  no alto mar, como pelas surtidas das vagas que  vinham rebentar  no areal, pelos muitos estrondos contra o seu casco. .

(continua em próxima postagem)