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segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Odisseia de dois pescadores de S. Tomé e Príncipe – Resgatados na Ilha de Príncipe – Mais um drama dos muitos vividos pelos bravos homens das canoas - Agora da praia das Neves, distrito de Lembá - Fora aqueles que caiem no anonimato.

 NAUFRÁGIOS DE CANOAS – FREQUENTES NOS MARES DE SÃO TOMÉ

Por Jorge Trabulo Marques - Jornalista 

Não há episódio mais dramático, que o protagonizado por  náufrago. É tema, de ontem, de hoje e de sempre. Seja qual for o oceano, há em todas as águas, em todos os mares, vidas tragadas pela violência das vagas ou que sucumbem, vítimas da incerteza ou do desespero, do um atroz sofrimento  da  fome e da sede.

Só quem passou por essa terrível situação, sabe avaliar quão angustiosos são esses dias e noites de abandono e incerteza – Especialmente a  bordo de uma frágil canoa – E, de facto, são muito frequentes os desaparecimentos de pescadores nas canoas, nos mares em torno destas maravilhosas Ilhas do Equador. De volta e meia, sucedem noticias destes dramas. Por vezes, com desfecho feliz, porém, mais das vezes, é o pescador que parte ou pescadores que partem da sua praia e nunca mais voltam.

Agora coube o drama ao Sérgio, de 66 anos  e Ilídio, ma casa dos 40, pescadores residentes na cidade de Neves, no norte da ilha de São Tomé, que, segundo o Jornal Telanon, na sexta feira 21 de Janeiro, foram a faina e não regressaram a casa. Angústia tomou conta da família dos dois pescadores.

Os familiares disseram ao Téla Nón que Sérgio e Ilídio partilham a mesma canoa(piroga).Uma canoa a motor que permite aos dois homens pescarem em águas mais afastadas da costa da cidade de Neves.

Após 8 dias dados como desaparecidos, os dois pescadores foram resgatados no mar próximo da ilha do Príncipe. Os pescadores da ilha do Príncipe deram conta que uma canoa estava a deriva no alto mar, e socorreram os dois colegas da ilha de São Tomé. «Estavam muito debilitados», explicou um dos familiares em conversa com o Téla Nón.  https://www.telanon.info/sociedade/2022/01/31/36372/pescadores-que-desapareceram-em-sao-tome-foram-resgatados-na-ilha-do-principe/


ODISSEIA VIVIDA POR DOIS PESCADORES DA PRAIA MELÃO EM 2014 

Idalécio, de 22 anos, e, José António, de 49, pescadores nas  canoas  da Praia Melão, em São Tomé,  que andaram cinco dias perdidos no mar, viveram um drama, que dificilmente vão esquecer para o resto da vida – É o que o leitor poderá depreender do diálogo que lhe apresento num vídeo, registado, no principio de Julho passado,  no dia seguinte ao seu regresso a São Tomé.

Os dias à deriva e, depois a longa ausência de notícias da família, constituiu, para ambos, um tormentoso pesadelo – Sobretudo, ao Idalécio, que, apesar de andar nas lides da pesca, desde os 12 anos, quase se ia dando por vencido e perdendo a fala, não fosse o encorajamento do seu companheiro, José António, mais velho e experiente nas agruras do mar.. Nem mesmo já depois dos abraços que recebeu no seu humilde lar, do conforto dos familiares e amigos, na pequena aldeia, parecia recomposto: continuava quase mudo e silencioso.

De resto, foi neste estado de espírito, remetido a uma certa timidez e  mutismo, pelo Idalécio, que decorreu o casual encontro  com estes bravos homens do mar. 

Na véspera, tinha-me apercebido do seu drama, através de uma reportagem transmitida pela Televisão de São Tomé, pelo que, tendo eu também conhecido a tormentosa situação de náufrago, desde logo fiquei  com o desejo de falar com eles e conhecer a sua experiência – Porém, longe de imaginar que, tal oportunidade, ia surgir no  dia seguinte.  Ao deambular pela marginal,  como primeiro passeio dessa manhã, após ter deixado a pensão onde me encontrava hospedado,  sim - qual não a minha surpresa! – é justamente, perante esse maravilhoso cenário (sobretudo quando se está com os pés bem firmes em terra), que os vou encontrar – Iam para a sua praia, depois de terem sido  recebidos na Capitania dos Portos,  conjuntamente com o dono da canoa – que ali tinham ido  para narrarem a sua odisseia e exporem as dificuldades com que agora se debatiam: sem os meios indispensáveis para continuarem a trabalhar; sem  a canoa e o motor.

O momento foi assinalado com o registo de várias imagens naquele deslumbrante recorte marginal, situado frente à Pousada Miramar. Pena o vídeo, também ali não ter sido  gravado -  Faltava-me o microfone, pelo que optei por registá-lo no átrio da pensão e o contra-luz ofuscou-me um bocado as imagens. Como se aproximasse a  hora de almoço, o convívio continuou depois num dos restaurantes do parque da cidade, na companhia do jornalista Adilson Castro, que tivera a gentileza de fazer de operador do filme,  bem como outros meus amigos do Jornal Transparência, a quem tornara extensivo o mesmo convite.



AINDA O SOL NÃO SE HAVIA ERGUIDO DO FUNDO DO OCEANO…

Foi a um sábado, do dia 16 de Maio. Manhazinha, como habitualmente, entre os vários pescadores, que partiam para mais uma faina de pesca, dois deles não voltavam nesse dia. São o jovem Idalécio e o Zé António. Depois de puxada a canoa da praia até flutuar sobre as  primeiras ondulações, lá vão eles mar fora! 

Dirigem-se, com o motor fora de borda,  ao Ilhéu Santana e por ali andam todo o dia. Entretanto, ao entardecer, surge uma calmaria e uma densa neblina, que lhes  ofusca  o horizonte, deixa-os desorientados e ao saber da corrente, que, pela noite adiante, os vai arrastando, ainda para mais longe.

Na manhã seguinte, com o clarear do dia, dão-se conta, que, postos perante o imenso circulo do mar à sua volta, para qualquer ponto para onde olhassem, não descobrem quaisquer sinais do litoral ou das montanhas da ilha – Sem saber que rumo verdadeiramente tomar, por lá andam, todo o domingo, desorientados, velejando de um lado para o outro. . Com o cair da tarde, vem  o crepúsculo, que, nestas paragens, é rápido: pouco depois, imersos  em sombras, envoltos pela escuridão da noite, mais perdidos e desamparados, ainda se sentem

Na segunda-feira, o tempo refresca, surge uma tempestade, que os atira  para mais longe. Ao dia, sucede uma noite  tormentosa e de grande ansiedade. As mesmas condições atmosféricas,  vão continuar terça-feira. Com  céu encoberto e  muito vento, a que se juntam os estampidos do  trovão, que vão  deixá-los ainda mais aturdidos e desanimados.


Chove, torrencialmente, mas não se lembram de aproveitar a água das chuvas. E a garrafa da água potável, que dispunham, já se esgotou.  Os efeitos da sede, no mar são terríveis! . É o maior tormento para o náufrago: muita água salgada em redor mas difícil de tragar - Relutantes em levarem sequer umas gotas aos  lábios, para aliviarem a secura da boca, optam por mastigar  as linhas da pesca, na esperança de que, a saliva  criada, lhes possa minorar o sofrimento

A fome, não é o maior problema, visto terem ainda consigo alguns peixes. Mas são as postas de um atum, pescado à linha, que vão aproveitar:  - Cortam-no aos bocados e deixam-nos  a secar ao sol. Pena desconhecerem que o sangue do peixe não é salgado e que, comendo o peixe cru e acabado de apanhar, além de lhes matar a fome, lhes poderia também aliviar a sede.

Finalmente, à noite do 5º dia, descobrem uma luz vermelha por entre a escuridão. . O Idalécio, vira-se para o Zé António, e diz-lhe, espantado; “ Vê!!...Há uma luz lá em baixo!!...Era o primeiro sinal luminoso de  uma frota nigeriana de traineiras de pesca.
E para lá navegaram  na esperança de serem socorridos. Pedem água, no que são atendidos. Porém, dificuldades linguistas, vão criar-lhes alguns embaraços: tomados por  pescadores, vão deixá-los de novo entregues à sua sorte. . Até que, por fim, interrogados por um piloto de uma das  traineiras, que fala português, este, compreendendo a situação,  os manda    subir para o convés, ordenando ao mesmo tempo  que o motor fora de borda fosse içado   e a canoa  arrastada para terra. À chegada a ocorrência  é comunicada à  Guarda Costeira da Nigéria, que, só um mês e meio depois, concluirá as diligências do seu repatriamento a São Tomé. 



CINCO DIAS À DERIVA - A ODISSEIA DE DOIS PESCADORES DA PRAIA GAMBOA QUE FORAM PARAR AO GABÃO

O drama ocorreu há cerca de 50 anos.  Referíamos na reportagem que então efectuámos para a Semana Ilustrada, de Luanda, "apaixonados que somos pelas lides do mar (e também porque já estivemos em apuros mais ou menos idênticos), não resistimos à tentação de procurar  localizar esses dois homens e com eles estabelecer diálogo" 

O DIA DA PARTIDA

(...) "Foi no dia 12 de Junho do corrente ano, que Manuel Quaresma e Fernando Afonso - aquele com 32 e este com 40 anos - se fizeram na sua canoa ao mar. Largaram de manhã cedinho, como habitualmente. O sol, muito brilhante nesse dia, nascera-lhes lá fora, ao largo. Com eles, outros companheiros de faina, partiram em suas canoas. Iam pescar,  para algumas milhas mas com a Ilha sempre à vista. A tê-la constantemente a seu lado, pois nenhum deles possui processos de orientação. Pescar era pois o objectivo de todos. E o de voltar, como não podia deixar de ser. Porém, para Manuel Quaresma e Fernando Afonso, tal não aconteceria. Um tornado surpreendeu-os, deixou-os desorientados e completamente à deriva. Eram mais ou menos duas da tarde quando isso aconteceu. O mar ficou de calema, segundo a linguagem sua, a ilha encoberta por densa neblina  e o horizonte esfumou-se. A partir de então ficaram sem saber em que ponte se encontravam e para onde navegavam. 

(...) Salvos cinco dias depois

Não foi tanto a fome que os martirizou mas a sede - "Para mitigar a sede, sobretudo a secura dos lábios e da boca, que a ardência de um sol forte, equatorial, impiedoso, os causticava, valeram-se de óleo de palma (imagine o leitor qual não terá sido a aflição dos pobres homens para chegar a este ponto!) e chuparem os próprios chumbos para criarem saliva na boca" (....) Eram decorridos já cinco dias e cinco noites, quando finalmente, viram contornos de terra" - Excerto de uma reportagem de quatro páginas

OUTRO EPISÓDIO – ESTE DE ONZE DIAS

Eis alguns traços da noticia, publicada pelo Télanon

Nigéria mais uma vez resgata perdidos no mar
18/08/2015  -Os dois pescadores que perderam no mar de São Tomé já foram resgatados por uma tripulação nigeriana Depois de dias a deriva, foram encontradas perto de Costa Nigeriana e passam bem, depois de quase dois meses.
Severino dos Santos de 52 anos de idade e Anastácio de 40 anos, ambos amigos e pai de família, saíram para pescar como era habitual. Por uma infelicidade, segundo as vítimas, o motor parou de funcionar e eles foram arrastados pela correnteza do mar.
"Partimos para pescar no dia 13 de julho. O mar estava um pouco agitado e o nosso motor não suportou, escapou e caiu no mar. Então, dai ficamos deixados a sorte, porque não havia mais solução. Como chegar a terra se já não tínhamos motor? E esta tristeza deixou-nos no mar durante onze (11) dias" diz Severino em movimentos inquietos.

(…) "A forma que os nigerianos nos receberam e comportaram connosco foi uma coisa fantástica. Nós não estávamos a espera disso. Foram tão sensíveis, trataram-nos tão bem que não temos como descrever" aponta Severino  Pescadores que se perderam em alto-mar encontram-se ..

São Tomé – Os seis pescadores desaparecidos chegaram a Bata – Ao enclave da Guiné Equatorial no continente africano – Nove dias depois de terem sido deixados à sua sorte – O nosso alerta tinha razão de ser – Autoridades santomenses limitaram-se  “ a esperar” não mexeram uma palha – E podiam talvez ter evitado tanto sofrimento.

Os 6 pescadores da cidade de Neves que desapareceram no mar há 9 dias, terão sido levados pela corrente marítima para a Guiné Equatorial. A capitania dos portos de São Tomé e Príncipe, Rui Vera Cruz, anunciou a boa nova, após confirmação obtida do país vizinho. «Quero manifestar a nossa satisfação por saber que esses pescadores estão em vida. Felizmente tivemos a notícia de que os pescadores estavam em Bata», referiu o responsável da capitania dos portos.


A deriva os 6 pescadores que navegavam em 3 canoas, acabaram por chegar a Bata, cidade da região continental da Guiné Equatorial.

A capitania dos portos promete investigar as causas dos sucessivos desaparecimentos de pescadores nesta altura do ano. «Temos que acompanhar isso porque o fenómeno começa a ser muito repetitivo. Para aquilo que é a nossa experiência normalmente essas perdas acontecem no período de janeiro à Fevereiro em que por causa do nevoeiro reduz a visibilidade. Nesse momento não é o caso», pontuou.

Sensibilização dos pescadores para utilizarem os equipamentos de navegação marítima, que lhes foram ofertados, depois da devida formação, através do projecto Mudanças climáticas financiado pelo Banco Mundial, é prioridade. «Tudo isso é uma prática que se tem que introduzir. Não só os materiais de navegação, mas também aconselhamos os pescadores a levarem água suficiente, capas de chuva etc, Mas eles continuar a ser resistentes em levar esses materiais para a faina», explicou.
A capitania dos Portos, fez saber que se os pescadores que desapareceram tivessem levado o reflector de radar, a unidade daa guarda costeira poderia localiza-los e então avançar com uma operação de busca e salvamento. Pescadores desaparecidos chegaram a Bata | Téla Nó

ERAM UNS POBRES PESCADORES – MAS, SE FOSSEM TURISTAS ENDINHEIRADOS, NATURALMENTE QUE NÃO FALTAVAM RECURSOS

NÃO HÁ MEIOS PARA ESTES POBRES PESCADORES MAS JÁ HOUVE PARA TURISTAS

Tal como referi na postagem anterior, não há meios para estes pobres pescadores, mas houve para turistas:

17 de Setembro de 2008 – Veja-se a diferença – para uns houve e para outros, o esquecimento: Dois pilotos da companhia aérea são-tomense, STP-Airways, disseram ao Téla Nón, que vão realizar voos de reconhecimento na zona do sinistro para tentar encontrar os passageiros dados como desaparecidos. São cerca de 14 pessoas que não foram resgatadas na operação de socorro da última noite. O Téla Nón registou também noporto de São Tomé, o lançamento ao mar de uma vedeta privada contratada pelo estado são-tomense para reforçar a busca. Por sua vez o Governo regional do Príncipe, pela voz de Carlos Gomes(na foto) já reagiu ao acidente, tendo responsabilizado os sucessivos governos da república como sendo os responsáveis por mais este desastre - Intensificam-se as buscas dos passageiros que desapareceram após o naufrágio do navio Therese na noite de terça-feira

Não resignados enviamos o nosso apelo aos membros da Associação da Imprensa Estranageira, acreditada em Portugal, a quem agora vamos também dar a boa nova..

QUEM SOMOS?

O mar chama por nós, somos ilhéus!
Trazemos nas mãos sal e espuma
cantamos nas canoas
dançamos na bruma

somos pescadores-marinheiros
de marés vivas onde se escondeu
a nossa alma ignota
o nosso povo ilhéu

a nossa ilha balouça ao sabor das vagas
e traz a espraiar-se no areal da História
a voz do gandu
na nossa memória...

Somos a mestiçagem de um deus que quis mostrar
ao universo a nossa cor tisnada
resistimos à voragem do tempo
aos apelos do nada

continuaremos a plantar café cacau
e a comer por gosto fruta-pão
filhos do sol e do mato
arrancados à dor da escravidão

 Olinda Beja

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

A triste vida de um náufrago, quando anoitece e se perde na vastidão escura do mar

 Jorge Trabulo  Marques

E ANOITECE!....Na vasta imensidão do mar!... E o brilho do sol se afunda e desaparece!... Em redor de um náufrago, só há sombras e trevas a ondular. E uma ave solitária vem pousar para descansar...– Que depois de apanhar e beijar, a teve de sacrificar para matar a fome e se alimentar - Não há tristeza mais sofrida ou dor de alma, mais infinda ou profunda!... Que a de uma criatura humana perdida, sozinha e à deriva à flor de um manto enegrecido e ondulado de vagas, encaixada num simples tronco escavado, qual esquife ou caixaão flutuante à espera de a sepultar, quando, até as longínquas estrelas, já se apagaram aos seus olhos esbugalhados de incerteza e mágoa, de cuja abóbada de cinza, nem uma réstia de luz e de esperança de lá brilhe e o possa animar, senão apenas o giro e ameaça de fantasmagóricas imagens em permanente assombro e torvelinho

 Sem água potável e sem comida!... 

Às desoras da noite eu ouvia 
a voz do vento a chamar-me e sem cessar!...
Sem cessar!... E a mandar-me esperar!... Esperar!?...
Naquele turbulento, ondulante e fundo mar!... 
Sozinho no seio das trevas mais fundas !
Sob o espesso teto de errabundas névoas!...
 À flor das vagas, do abismo negro sem fundo!
A coberto dos infinitos e escuríssimos céus!...
Abandonado e esquecido de todo o Mundo
menos sem a Luz da Fé e da Esperança de Deus

Olhando para o horizonte, não descortino ainda a terra. Não vejo absolutamente quaisquer vestígios de terra. Mas tenho um pressentimento de que não devo estar muito longe.

A noite é equatorial mas o tempo refrescou e arrefeceu. Começou a soprar uma aragem fresca. Durante a tarde fez muito calor, mas agora sinto arrepios de um grande desconforto. Estou deitado no fundo da canoa, com a capa vestida e coberto com uns plásticos, mas estou com frio (pois também há sempre água a chocalhar por baixo da grade) e sinto-me muito cansado. Tenho experimentado, ora a ficar de bruços, de lado, ora de costas, mas parece que não há maneira de me chegar o sono. Por outro lado, o meu espírito mantém-se ainda demasiado possuído pelas fantásticas sensações com que me presenteou a magnífica tarde. Mas também é do que me valho. A brisa passou de fresca a ventosa e veio trazer uma agitação inesperada à noite. A única alternativa que me espera é aguardar pacientemente pela alvorada do novo dia....

Estou preocupado um bocadinho, porque a canoa continua a meter água pela carlinga, pois os pregos (onde encaixava a vara do mastro) atingiram o fundo. Por outro lado, notam-se algumas fraturas e podem realmente de um momento para o outro provocar roturas maiores...oxalá que não. Que isso não me aconteça

Excertos do meu diário de bordo, vertidos para um gravador que levava com a máquina fotográfica dentro de contentor de plástico, igual aos do lixo, a bordo de uma piroga no Golfo da Guiné, em Outubro e Novembro de 1975, 38 dias à deriva, após um violento tornado me ter feito perder parte dos alimentos e utensílios, inclusivamente o remo, que depois tive de improvisar com pedaços arrancados a uma das cobertas da popa, sobre a ponte de um barrote.


Imagens obtidas com a máquina amarrada ao mastro e disparada com uma das mãos com auxilio de um barrote

Ó MISERICORDIOSO  CRISTO! - OH O DOCE E  CRUEL TORMENTO! 
MEU CORPO MORTAL ENCAIXADO NUM EXÍGUO ESPAÇO E COM A SEPULTURA SEMPRE AO MEU LADO

Monteverdi - Si dolce è 'l tormento






douradas mordicando as lapas da canoa
Sê Integro, pacifico e verdadeiro – Mas não conivente com as injustiças … E, se não puderes seguir o exemplo e os passos daquele que se deixou matar  em nome da sua palavra, ao menos constrói o teu altar em lugar abençoado e escolhido por ti – Sê paciente mas não resignado e  não te importes de levar com persistente tenacidade a cruz que terás de levar até ao fim da tua vida. Pois este mundo é apenas uma mera passagem veloz e fugaz

PERDIDO NO MAR - Não tenho água potável... e, todavia, tanta água à minha volta!...Tanto espaço, tanta liberdade e tanto azul a inundar-me os olhos!...Tanta coisa em excesso e tanta coisa em falta!... – Que suplício!... Que tormento mais duro, meu Deus!... Até quando?!....
A pouca água do mar
que bebo aos golinhos de vez em quando,
em vez de matar-me a sede,
ainda mais agrava o meu mal-estar
e torna muito penosa, demasiado penosa,
talvez mesmo impossível, a minha sobrevivência!...
Mesmo assim, não me sinto desanimado!...
E vou lutando com os precários meios que disponho
e conforme posso... Mas já não chove há uns dias!...


Pela primeira vez na minha vida masquei
uma lasquinha de madeira como um chiclete!...
Arranquei-a da borda da canoa...
Tinha a garganta tão queimada e a boca
já tão ressequida e os meus lábios tão secos,
que a sede se me tornava já um suplício insuportável!...
E, com o sol tão intenso, até parecia que o desespero
começava a tomar conta de mim!...
Com a sua frescura, consegui aliviar
um pouco o meu tormento!...- Mas é cruel!
É terrível a sede!... – E nenhuma nuvem no céu!!..
Até este ar quente já me sufoca!...
Tenho que voltar a beber mais uns golinhos de água do mar...
A ver se aguento...


Oxalá venha uma grande chuvada!...
Mas geralmente surge quando menos se deseja
e quase sempre antecedida de fortes ventanias
e agitação das águas!... – É assim o tempo
nesta região do oceano!... – Podres calmarias...
que até parecem eternidades por tão prolongadas e mortas!...
Logo seguidas de grandes tempestades que, de tão rápidas
e enfurecidas, parecem destruir tudo à sua à sua passagem....


Não tenho água potável... e, todavia, tanta água à minha volta!...
Tanto espaço, tanta liberdade e tanto azul a inundar-me os olhos!...
Tanta coisa em excesso e tanta coisa em falta!... – Que suplício!...
Que tormento mais duro, meu Deus!... Até quando
?!.

Excerto do poema SÓ A VOZ DO MAR..