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segunda-feira, 30 de julho de 2012

VOGANDO SEM DESTINO E A NOITE POR COMPANHEIRA.. O sol mergulhou e afundou-se há muito, algures sobre o imenso círculo a ocidente – Momentos antes, alguns dos seus raios rasgaram as nuvens, espalharam-se em mil reflexos e chegaram até mim - Como que despedindo-se



















O sol  mergulhou e afundou-se há muito,  algures
sobre o imenso círculo a ocidente – Momentos antes,
alguns  dos seus raios rasgaram as nuvens, espalharam-se
em mil reflexos e chegaram até mim - Como que despedindo-se
através de nostálgica  e reluzente estrada de luz - Já lá vão umas horas!...
Espero voltar a vê-los esplendorosos a oriente.
A noite vai alta e espessa! O mar encapelou-se
com o refrescar do vento - A canoa balança....
Atmosfera é húmida de névoas negras,
que correm baixas, rolando mui densas.....
- Para onde vou eu  na estreita concavidade
deste frágil  tronco escavado?!...
Para onde me levará este esquife fantasmal?!...
De que te lamentas, afinal,
meu coração esquivo e atormentado?!..
Não terá sido loucura insensata
ter confiado a minha vida em tão precária fragilidade?!...

Não sei, nem me importa. Vim sem destino,
meu rumo é ditado pelos ventos e correntes,
não tenho nenhum itinerário  programado!
- Não sou senhor de mim: - lancei-me ao mar
sem instrumentos náuticos e cartas de marear.
Medito e por vezes fico ainda mais triste e em sobressalto,
ao sentir o mar a rugir e o vento a fustigar-me e a uivar!
Nada mais posso fazer que sentir a ansiedade
dos vivos nas horas incertas ou esperar absorto
pela eterna paz dos mortos se a vida me escapar.
Vou balanceado para onde o vento  soprar.
À flor das águas, vogando deitado e solto!
Vou  para onde  me arrastarem as  ondas
os caprichos do destino, me quiserem levar!....





Quando não chove e o céu está descoberto, não vejo o mar
mas ouço constantemente as suas pancadas ao meu lado,
até que adormeço com o bailado das estrelas - Mas hoje
ainda não vi nem as estrelas nem vi o luar... 
Não consegui adormecer -  Oh vil ou doce tormento!
Pecados mortais meus ou ira negra dos altos céus!  

Meu colchão é côncavo estreito e duro - Muito desconfortável.
Não me permite sequer abrir os braços,  mal posso respirar.
Pior ainda quando estendo e cubro a canoa com o toldo de plástico.
Meu coração, quase sufoca, possuído pelas sombras do oceano noturno.
Mesmo assim, meus olhos, cegos de cansaço, perdidos 
num horrível vazio sonoro e escuro,
não cerram as pálpebras, não cedem 
à continuada afronta que os amarra 
mergulha e sobressalta!

Vão abertos, em persistente vigília e alerta! - Não  param de sondar
os  ruídos, os marulhos! - E, quando estes ressoam no casco
ainda mais os intrigam e assustam -  Arregalados,
perscrutam e devassam a penumbra absoluta -Porém,
nada enxergam do  que vai   dentro ou lá fora - Vão cegos
mas não desistem!- Nesta horrenda dança de vida 
ou morte, são eles e os meus ouvidos, 
o mais íntimo sonar, desta minha 
inarrável errância marítima

Neste corrocel ensurdecedor  de sonoros embates de arrepiar,
vergastas impiedosas das vagas  que vão sucedendo 
em brutais baques crispados de quase enlouquecer, 
Oh quantas ideias! Quantos pensamentos!
Quantas dúvidas e inquietações!....
Que resposta poderei eu   dar à noite?!... 
Que devo eu  fazer?!...Senão conformar-me 
ou renunciar às interrogações da sua  infinita curiosidade...
Pois todos os momentos, por mais negros e incertos que sejam,
 vão além dos mares e da terra, são parte do Universo!
São verdadeiramente  divinos!..Pertencem a Deus!
Mesmo através da mais cerrada escuridão,
elevam-se dos mares ou da terra aos céus!


 

Na verdade, mesmo deitado,  vogando à tona desta vastidão,
deste cemitério imenso, nunca estou inteiramente tranquilo 
– Imerso em tantas dúvidas! Assolado por tantas interrogações
 e por  tanto mistério! Enquanto não adormeço, 
vivo num estado de permanente torpor, angústia incerteza
 - A todos os instantes, a todas as horas, a minha alma interroga-me,
 faz-me perguntas à solidão que me assola, a que eu não sei responder.
. A canoa voga e  a minha vida voga e flutua igualmente suspensa.

Por vezes, depois de adormecer, acordo em sobressalto,
com o bater de uma vaga mais violenta ou de uma barbatana
que se encosta e roça asperamente no seu bojo - Outras vezes,
não é o sobressalto mas a desilusão: - a sonhar 
julgava-me noutras paragens mas, ao acordar,
constato que estou encaixado num exíguo espaço
e,  ao levantar-me, logo me apercebo
que nem sequer um passo  aos lados, posso dar.

O passado já não me pertence e o  meu futuro 
é como a noite: desconheço onde começa e onde acaba
-  E o presente é este estado de incerteza permanente,
que não é traduzível nem por imagens nem por palavras.
 Estendido sobre o fundo húmido da canoa,
que chega a assemelhar-se a uma salmoura - sim, às vezes só lanço mão
do vertedouro, quando a água  chincalha demasiado e me cobre.
Mesmo que não reze -  não, não rezo, só se for a  cantar
ou então quando as lágrimas me escorrem pela face,
tal como as contas de um rosário e têm o sabor a sal

 No entanto, quando me deito, depois de estender-me
por entre as madeiras do meu estreito leito,  sinto que as  minhas mãos
elas mesmas naturalmente se aconchegam ao meu peito e se entrelaçam
num gesto de  permanente pose de súplica e  de religiosa oração,
enquanto o peso do sono  me não vence  e a noite  me acolhe
com as  negras vestes  assombradas  ou maravilhadas do seu regaço
e me cobre por completo no mesmo infinito manto
da sua pacífica ou conturbada solidão. 





Eis, porque, a escolha que agora  se me oferece é só uma:
deixar-me ir para onde quer que seja arrastado,
enquanto a noite for correndo e for passando,
pasmado e confiante de que os astros longínquos
me sirvam de tecto e de  lastro, por companhia...
E que, o irromper da alvorada, não seja mais
o prolongamento da "noite eterna e antiquíssima"
mas o alvorecer e a promessa de um novo  dia...

Soergo-me, olho em redor, olho e revejo o melhor que posso,
inseguro e ansioso, mas nada mais vejo e descubro
que as trevas de um imenso, negro e medonho poço!
Enquanto a canoa, boiando na ondulante superfície,
boiando à flor do abismo, indiferentemente a tudo,
corajosamente, vai sulcando os  fugidios vultos...
.- Oh, sim!...Que vejo eu, enxergo ou  sinto
em mundo tão misterioso e desconhecido?...
Vejo que a solidão ainda é a mesma
para onde quer que alongue o meu olhar...
Sinto que vogo por um mar negro e indistinto,
Sinto-me, em parte incerta, vogando
prisioneiro do meu corpo e que,
tanto a minha alma, como o meu corpo,
ainda não são inteiramente livres um do outro..
Vou errante e solto à superfície
desta massa líquida ondulante.
Vou como ave noturna sem asas,
vogando inteiramente condicionado
e prisioneiro da minha liberdade ...

É certo que não tenho paredes à minha volta a cercearem-me
os movimentos - Pelo contrário:  esta cúpula infinitamente parda
é toda a minha, este mar  imenso  e negríssimo é todo meu,
 mesmo assim,  sinto-me infeliz, pois não sou eu
que vou a comandar a minha nau e o meu destino,
mas é o mar que me leva, não sei para onde
ou para que parte incerta do negro horizonte...
- Ó mensageira áurea luz! Errantes forças divinas!
Vós que alternais dentro do meu peito a paz e harmonia
das manhãs e tardes serenas ou mesmo as noites mais escuras e assombrosas,
com a voragem devoradora das tempestades - sejam quais forem as horas! -
 em que alturas celestiais ou erma solidão, agora estais?!..
Será que abandonaste meu pobre coração mortal?!...
- A noite nestes mares equatoriais, reparte por igual
as suas trevas com a claridade do dia 
- Quando chegará a hora - ó luz bendita! -
de vos contemplar?! Poder eu adormecer, libertar-me 
e esquecer-me de tudo isto?!...
.









sábado, 21 de julho de 2012

NO DIA EM QUE UM GRANDE BARCO PASSOU AO MEU LADO E NÃO ME VIU - Foi ao 15º Dia - Ou se me viu, ignorou-me e abandonou-me à minha sorte de miserável náufrago


Ainda possuía alguns mantimentos, mas, à minha frente, ainda haviam de decorrer mais  23 longos dias e longas noites equatoriais. Longe, porém, de conhecer o calvário que me esperava. Ao fim de cada dia, havia sempre a esperança de que pudesse aportar a qualquer ponto da costa africana na manhã ou na tarde do dia seguinte. Porém, os dias davam lugar  às noites e estas sucediam aos dias.  - Já aqui transcrevi alguns excertos do meu diário, referente ao 15º dia e a outros dias, mas creio que vale a pena transcrever outras passagens, que ia registando num pequeno gravador, que pude guardar no meu baú, um modesto caixote do lixo (em plástico)

Diário de Bordo 1- Hoje, 15º dia. Grande decepção!... Um barco cargueiro passa aqui ao meu lado ...Faço-lhe sinais vários de aproximação... mas não correspondeu!...     Não há dúvida nenhuma que tenho que contar apenas com os meus modestos recursos. Mais nada! 

 
Diário de Bordo 2- Devem ser neste momento, cerca das nove horas da manhã. Agora tenho a nítida sensação que  devo estar a aproximar-me da Ilha de Fernando Pó. (Bioko) - Ontem tive a impressão, depois de ter enfrentado um violento temporal, que estava próximo da Ilha do Príncipe. Mas não, foi ilusão...Agora há muito calor. Uma calmaria podre... Não há vento nenhum.

(no diário, recordo ainda os motivos pelos quais o comandante do pesqueiro não me largou na corrente equatorial e a noite do naufrágio)

Há pouco tive a sorte de pescar outro tubarão!....Pelos vistos, peixes aqui há muitos e até se podem pescar à mão e a machim, se for preciso... 

Diário de Bordo 3 - De noite, a dada altura, fui surpreendido por ruídos estranhos dos golfinhos, que andavam aqui a voltear a canoa (às cambalhotas por cima dela) e de um lado para o outro. É curioso, porque deixavam um rasto luminoso e exprimiam uns grunhidos!... Por um lado, aquilo pareceu-me simpático, mas, por outro, atemorizou-me. Depois dei umas apitadelas e consegui afastá-los.





LÁ ERGUI A VELA NO TOSCO MASTRO E, COM AJUDA DE UM REMO IMPROVISADO, ESFORCEI-ME POR NAVEGAR, CONVENCIDO QUE ATINGIRIA O  QUE ME PARECIA A ILHA DE BIOKO – MAS  POUCO TEMPO NAVEGUEI...E, terra à vista,  acabaria por ser mais uma das muitas desoladoras ilusões. - Novelos de nuvens escuras sobre o horizonte, eram o bastante para me darem à ilusão de perfis de terra

Diário de Bordo 3 -Neste momento, devem ser cerca das dez horas. Está a fazer um bocadinho de vento. A canoa já está a balancear... Portanto, vou comer qualquer coisa, pôr uma vela e ver se me aproximo o mais depressa possível da praia... Não sei a que praia mas o que me interessa é que seja terra

NÃO ADIANTEI NADA – ILUSÃO SOBRE ILUSÃO – E AINDA A IMAGEM DO BARCO QUE NÃO ME SAÍA DOS MEUS OLHOS - QUE TÃO PERTO PASSOU E QUE ME ABANDONOU

Diário de Bordo 4 - De manhã avistei um barco!... Passou relativamente próximo de mim. Até tive a impressão que ele vinha a aproximar-se... Mas ele manteve o seu rumo, certamente por não me julgar perdido ou por me julgar muito próximo de terra... Espero que sim, que esteja próximo de terra.. Aliás, tenho essa impressão, quer pelo aspecto do mar – pela maneira serena como se apresenta – quer pelos contornos que eu vislumbro.

Quanto a provisões?!... Estou ainda garantido com algumas latas. Mas, quanto a água, tenho muito pouca!... Claro que isso pode não representar problema... Se demorasse mais algum tempo, teria que recorrer à água das chuvas ou então dos peixes ou do mar. Espero que isso não seja necessário porque não é nada agradável...

Diário de Bordo 5 - É uma hora da tarde do 15º dia. Estou a escutar a Rádio Nacional de São Tomé e Príncipe (enquanto as pilhas do pequeno transístor não se gastaram). Está um calor abrasador!... Uma calmaria muito grande. Não há praticamente vento. O que pode ser mau sinal, porque, quando o tempo está calmo, normalmente segue-se um temporal violento... De tempestade... De ventos fortes!... Apetecia-me realmente beber água...Já tenho pouca... E tomar um banho fresco... Mas é impossível aqui neste mar... Há muitos tubarões em volta, muita fauna marinha que não me apetece visitar....Mas o céu está totalmente descoberto. O mar de um azul muito claro. Há por aqui algumas aves que andam a voar à procura de peixes e eu sempre na mira de ver terra. (inesperadamente dos sons do pequeno rádio, sai a voz de  Paco Bandeira, nem a propósito)

 
(...)"A noite é clara! A imagem rara!...Meu destino lá no mar.!...Meu barco baloiça nas ondas salgadas! Mais uma remadas para descansar!... Olho mais ao longe, lá no horizonte, um clarão brilhante reflecte o luar!... Remo!... Vivo cantando! o vento é brando, como a mansidão do mar! Volto!... O sol já raia! e lá na praia está alguém para me esperar!.. Meu barco baloiça nas ondas salgadas. Mais uma remas para descansar!...Olho mais ao longe, lá no horizonte, um clarão brilhante reflecte o luar!..."

Diário de Bordo 6- Esta foi a voz de Paco Bandeira, que acabei de escutar, bastante emocionado!.... Pois ainda continuo esperando que chegue a uma praia....Neste momento, a contrastar com o de ontem.... Ontem!... Era pavoroso! O mar estava agitadíssimo!.... Ondas alterosas, com mais de dez metros, pareciam engolir a cada instante a minha canoa!... Hoje não!... Hoje o mar está chão! Sereno!... Não há vento!...Eu queria velejar um bocadinho mas não há vento...
A água que tenho, já é pouca. Mas tenho esperança de que hei-de chegar a terra o mais depressa possível. Se é como julgo estar na Baía de Biafra, portanto, próximo de Fernando Pó, é natural que me aproxime da costa africana, talvez da Nigéria.

BALEIA À VISTA...

Diário de Bordo 7 - Hoje avistei duas enormes baleias!... Aqui próximo da canoa e um tubarão monstro!... Um tubarão muito grande!... Que andou aqui a voltear a canoa de um lado para o outro... Os pequenos tubarões, esses, continuam a todo o momento. Pois, até já pesquei dois!... Foi fácil!... Mal meti a linha veio logo um!... Outros peixes continuam aqui em grandes cardumes. Na questão de peixes. Não há dúvida nenhuma  que este mar é riquíssimo! Mas também é perigoso, porque, efectivamente,  se apanharem uma pessoa onde só eles podem viver, naturalmente que não me perdoariam!... Mas eu evitarei, a todo o custo, que isso aconteça.

  Diário de Bordo 8 - Há uma serenidade!... Só se vê mar!... Absolutamente mar!... Mar e mais nada!... A minha canoa a vaguear, a vaguear!...

Eu não si onde estou!... Não sei!... Mas não estou desesperado!... Não perdi a confiança!... estou emocionado, com certeza!...Mas continuo confiante!...Realmente, o homem!... Eu acho que o homem é nestas circunstâncias que ele se superioriza a si próprio!... O seu espírito se enaltece!...

Há qualquer coisa de místico!....Ontem! no meio daquelas ondas!... Alterosas!!...De vez em quando, uma ou outra entrava  com alguma água, dentro da minha canoa!... Eu sentia-me ao mesmo tempo pequeno e gigante!... Pequeno!...   No meio de tanta grandeza!.... E gigante!... por vencer tamanha força!...

Diário de Bordo 9 - Os peixes, aqui ao lado; de vez em quando a saltar!... Pois, são decorridos 15 dias e tal, que me encontro nestas circunstâncias, vivendo numa autêntica banheira, a que eu, pomposamente, dei o nome de hotel.

Eu posso!... Eu sinto-me capaz  de fazer  uma viagem muito grande!... Evidentemente que tenho de ir bem preparado, com alimentos e água!... A canoa tem de oferecer outra segurança. Porque, esta canoa, de facto, não está bem construída!... Não está muito mal mas já está com rombos; está um bocadinho torta...Ela não ficou equilibrada... Enfim, estou convencido de que, com uma boa canoa, com boa alimentação e água, sou capaz de ir muito longe. Sinto-me encorajado!... E com velas boas. Velas quadrangulares!...Porque, estas velas rectangulares, não se adaptam à canoa.

Diário de Bordo  10 - Pois... não sei!... Não sei!... Estou longe de tudo!... Longe das vistas de toda a gente!... Perdido nesta imensidão!... É de facto uma imensidão!... Eu, se caísse aqui, não me salvaria!....

Ninguém! Absolutamente ninguém!... Ainda não perdi a confiança... Eu, acima de tudo, acredito em algo... Algo superior a mim... Há uma força qualquer que nos protege, de certeza absoluta!.... Porque, se assim não fosse, estou convencido que não estaria aqui!... Porque eu tenho vencido muitas dificuldades!... Imensas!... Eu, ontem parecia não seu o quê no meio daquela fúria!... Fúria autêntica!... Indescritível!... O vento!...As vagas alterosas!... O mar parecia engolir-me a cada momento!... Eu não teria salvação nenhuma se a canoa se virasse!... Eu continuei!...

Diário de Bordo  11- Realmente... sinto-me saturado!... Saturado!... Olho para a minha canoa... vejo  tudo em desordem!... Não sei!... Logo de manhã, passou um barco, perto de mim... Fiz tudo por tudo por ir à fala  com ele... Pois preciso de água... Tenho muito pouca!... Tenho apenas uns dois litros de água... Pelo menos para me dar água... No entanto, o barco continuou a sua marcha, como que indiferentemente a mim!... Afinal de contas, só posso contar comigo e com a minha canoa. Com mais ninguém. E com uma força!... Uma força qualquer!... Sim, uma força divina!... Uma força superior!...

Diário de Bordo 12 - Apenas a presença de aves, aqui perto e de peixes, aqui debaixo da canoa.... Peixes de todas as espécies são a minha companhia... Nesta serenidade!...Nesta calmaria!...Não sei se isto é prologo para mais uns momentos como os de ontem....O mar é assim!... Umas vezes sereno, outras furioso!

Diário de Bordo 13 -  Fim de tarde do 15º dia. Estou a ouvir o Duro Ouro Negro (Muxima) através da Rádio Nacional de São Tomé e Príncipe. Uma tarde serena!... Mas, no horizonte, ao longe, nuvens carregadas, nuvens escuras!....Ameaçam chuva!...





Já vislumbrei contornos  da costa africana, portanto, espero chegar à manhã.... Os tubarões continuam aqui a voltear a canoa. Tentei pescar alguns mas já me comeram as iscas. O naylon mostra-se demasiado frágil para a força deles. Agora surgiu o tubarão martelo, completamente verde!... Deixa uma sombra verde por onde passa!... Há tubarões  de todas espécies!...Há bocado, um tubarão martelo, deu aqui uma cambalhota! Tem a cabeça realmente do feitio de um martelo e é completamente verde!.. É bonito, é lindo!... Mas ameaçador!... Outros tubarões, os mais feios, são precisamente os que vão mais vezes ao anzol.... Há bocado, houve um que veio ao anzol, mas, claro, arrebatou-o logo, porque era muito grande!

Diário de Bordo  14 - Neste momento, eu sinto-me tranquilo. Sinto-me sossegado... Vamos lá a ver como será a noite...Vamos lá a ver se tenho uma surpresa, como a que tive a noite passada!... Às tantas, um grupo de toninhas, começaram a voltear a canoa!... Pareciam  autênticos foguetes, deixando um rasto luminoso por baixo, por cima e em todas as direcções!... Exprimindo uns grunhidos muito estranhos!... Achei aquilo interessante, mas, por outro lado, também senti algum receio que caíssem na canoa e a partissem.

Diário de Bordo  15 - Pois tenho tudo arreado... A canoa, enfim, aos solavancos, tomboleando ao sabor da corrente. Uma corrente que se faz sentir, evidentemente, ouvindo Muxima-ai-oé!... É realmente, uma canção africana que eu gosto muito de ouvir.

Diário de Bordo  16 - Não há dúvida nenhuma... O mar é cheio de beleza!..... Umas vezes ameaçador!...Outras vezes belo! Maravilhoso!... De plenitude!...De alegria e de paz!...

Há uma serenidade em tudo o que vejo aqui... E há vida!... Há a luta dos peixes pela sobrevivência!... Luta mais feroz, talvez que a dos homens!...

Diário de Bordo 17 - Pois é já ao anoitecer... A  canoa com uma coberta, faz-me lembrar, não sei o quê... Uma espécie de junco chinês!... Apenas a rádio o meu rádio a tocar e mais nada!...Ah! sinto uma sensação  de me deitar ao mar!....Enfim, tomar um banho... Mas não posso!...Não posso!....(de seguida canto a Barca Bela) Quem quer ver a barca bela?/ Que se vai deitar ao mar/ Nossa Senhora, vai nela / E os anjos vão a remar! / S. Vicente, é o pilotJesus Cristo, o general


Diário de Bordo  17 - Parece-me que tenho ali a costa de África !...O céu está agora carregado para lá...Deve estar a chover, com certeza, porque as nuvens  estão para lá a descarregar chuva!.... Mas ainda estou muito longe.... Vejo, lá longe!... A umas 20 milhas, contornos de Fernando Pó...

(E volto a cantar: “Quem quer ver a barca bela” e “Ó Noite Plácida!

Diário de Bordo 18 - Ó noite plácida!.... Avança a medo!... Como em segredo! Por sobre o mar!!... Eu nesta hora, tão doce e calma!... Sinto a minha alma, voar!...Voar!!..”
(Deitado sobre o fundo da canoa e velas arreadas)
Diário de Bordo 19 - São cerca das 10 horas da noite. O ruído que se ouve são as vagas a baterem  constantemente e arrastarem-me!...Neste momento, não tenho qualquer vela içada...Estou aqui deitado numa espécie de caixão!...

De tarde, as nuvens ameaçavam chuva... Agora, não sei...Ainda não vi... Hei-de espreitar daqui a bocadinho....a ver como o tempo está lá fora...Oxalá se ache bom, senão daqui a pouco, fica tudo isto molhado!... (pausa) Silêncio absoluto!..Estou num completo abandono!...

(levanto-me para espreitar)

Noite escura!... Sombria!!... Ouço apenas o bater da água do mar nas paredes da minha canoa!...Sinto-me só!...Tenho aqui ao meu lado o meu pequeno rádio, com o qual posso ouvir várias estações e entre elas a Rádio Nacional de São Tomé e Príncipe
(ligo o rádio)

Diário de Bordo 20 - Neste momento está a dar notícias!... (sobre a guerra no Vietname) Não me interessam as notícias! Estou arredado disso tudo!... Gosto de ouvir música, mais nada... Nem sempre... Às vezes quero ficar indiferente a tudo. Alheio completamente a tudo!... Só o mar!...O mar que me atrai...Não sei porquê!...Não sei porquê!...
Eu algum dia haveria de pensar que me encontrava assim...nesta escuridão! Neste abandono!... Aqui metido!... Num tronco de árvore escavado!... Sozinho!...Entregue a mim  próprio!... mais nada!...
(Após uma pausa, ligo de novo o pequeno transístor, mas simultaneamente dou-me conta que o tempo está a mudar)
Está a começar a  fazer mau tempo!... O vento está a soprar forte!!... O vento está a soprar forte!...Vou ver o que se passa....Noite medonha!...Escura!... Fria!...O mar
 está a ficar agitado!... Estou debaixo de nuvens escuras! Vai chover, com certeza!... O vento começa a soprar mais forte! – (e no gravador ouve-se perfeitamente a ventania)





Não choveu mas a noite foi muito ventosa  e horrível!... No horizonte negro, os relâmpagos rasgavam constantemente a escuridão. O tornado não me atingiu, senão o efeito da ondulação e da ventania.  E eu até desejava que chovesse alguma coisa para recolher água das chuvas, pois a reservas de água doce, estavam praticamente esgotadas. Não tive um minuto de descanso – Foi mais uma longa e exaustiva vigília – No dia seguinte, o meu diário de bordo, seria muito breve - Por esse facto, aproveito para aqui o transcrever – Tendo apenas feito o primeiro registo a meio da tarde – De referir que não tinha relógio; as horas eram calculadas pelo curso aparente do sol ou do passar do tempo ou quando ouvia o rádio - Mas depois até isso me faltou, quando as pilhas se esgotaram.
16º DIA

 
 Já são dezasseis dias passados que me encontro numa canoa, em pleno Golfo da Guiné. Devem ser três horas da tarde. Sinceramente, encontro-me muito desiludido! Muito desanimado!..Cheio de sede!... Não tenho praticamente água!...


Ontem, de facto, estive próximo da Ilha do Príncipe. Mais propriamente, do Ilhéu das Tinhosas. Afastei-me... agora ando para aqui!... Não há vento. Há uma calmaria!...Longe de terra, com falta de água!...

Encontro-me  muito desanimado!... Não perdi ainda a esperança de que hei-de chegar a terra... Hei-de me salvar!...Mas, sinceramente, sinto-me muito saturado, muito saturado!... A situação é extremamente difícil!... Ponho a vela e canoa não obedece... Não há vento!...Por outro lado, a falta do leme (que lhe adaptei e a perda do remo) é que provocou isto tudo!... É uma situação delicada! Bastante, mesmo!...Perdi até o apetite de comer!... Aliás, eu tenho muita sede! Imensa sede!.. Oxalá que chova!

Fim de tarde do 16º dia. Um dia bastante aborrecido!... Há bocadinho, houve um tubarão que investiu contra a minha canoa! Andou aqui em volta dela, dando-lhe rabanadas violentas e só consegui afugentá-lo com o auxílio do machim!... Estava a ver que me queria virar a canoa... Realmente foi uma situação bastante desesperada.

Mais tarde, voltaria a ser atacado por um outro tubarão enorme e da mesma espécie. Mas só daria duas voltas; à segunda, esperei-o.num dos bordos e deferi-lhe um golpe com o machim, tendo-o afastado - Desesperado, propriamente, nunca estive. Nem com ataques de tubarões, nem com tempestades. Mas também não vejo outras palavras para descrever, certas situações dramáticas.


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sexta-feira, 20 de julho de 2012

ANTIGO AERÓDROMO CIVIL DE SÃO TOMÉ – O DIA EM QUE O TIGER DO COMANDANTE GROMICHO AFOCINHOU NA PISTA E O FESTIVAL DO AEROCLUBE IA ACABANDO NUMA TRAGÉDIA

Jorge Trabulo Marques - Jornalista 

 

  











Foi em 1971, por ocasião de um festival aéreo organizado pelo Aeroclube, destinado a assinalar a entrega dos diplomas aos alunos do 2º  curso de  pilotos. Sim, que decorrera no então aeródromo de São Tomé e Príncipe, por essa altura, já tornado mundialmente famoso, devido à ponte aérea São Tomé-Biafra .
A avioneta afocinhou a uma vintena de metros à minha frente. A pessoa que se vê no primeiro plano da imagem à direita, sou eu a correr para junto da Tiger, mal acabava de afocinhar. Um  pouco mais à minha frente, correm dois funcionários do aeródromo, com os extintores, prontos para apagarem os primeiros sinais de fumo, que logo começaram a notar-se.

Encontrava-me no local a fazer a cobertura para uma reportagem da revista de Luanda, Semana Ilustrada, de que era seu delegado em São Tomé. Ainda hoje me interrogo, como foi possível, a frágil aeronave, ao embater com um  tal estrondo, com a hélice e o motor sobre o duro asfalto da pista, não ter sucedido  a quase inevitável explosão. Houve muita sorte.  Além do tripulante, teria havido ali uma tragédia, já que os estilhaços, teriam certamente atingido as pessoas que se encontravam junto à pista, eu teria sido uma delas – Felizmente, tudo não passou de um grande susto – O bastante, no entanto, para a última  parte do festival, a mais aguardada, ter sido abruptamente ensombrada e interrompida, não tendo permitido que fosse o corolário de um extraordinário espectáculo aéreo, tal como até àquele  momento,  estava a decorrer.

Findo o rali-aéreo, que tivera a participação dos novos pilotos, seguiram-se os  momentos mais aguardados do festival, com as várias acrobacias  dos pilotos veteranos:  Alfredo Trindade,  pilotando um Austim, o chefe da pequena esquadrilha; Comandante Gromicho, a asa direita, num Tiger e o Comandante Damião a asa esquerda, numa Piper Cub

E, na verdade,   mal os pequenos aparelhos se ergueram no espaço em voo rasante sobre o traço rectilíneo da pista, logo deixaram antever que o público ia assistir às mais inconcebíveis demonstrações de voo e de perícia. E, de facto,  assim sucedeu, nos voos em grupo, com os três experimentados e hábeis pilotos. Só que, quando chegou a altura dos voos isolados, de cada piloto demonstrar, individualmente, as suas habilidades, aconteceu o inesperado: o Tiger tripulado pelo Comandante Gromicho, que iniciava a fase apoteótica do festival, ao  fazer um voo de alto risco, picado e rasante,  afocinhou com a  frágil avioneta, embatendo impetuosamente com a fuselagem no solo, deixando-a totalmente amolgada e danificada, fumegante, em começo de incêndio, cujo alastramento foi impedido pela pronta intervenção dos extintores.

Houve algum pânico. E houve quem desatasse a escapar-se do local, mas também houve (os responsáveis pela segurança, pilotos, repórteres e outras entidades), sim, que acorreram  imediatamente em direcção à avioneta acidentada. Confesso que ainda hoje me interrogo, como, naquela tarde de um belo domingo equatorial,  o Comandante Gromicho (um dos pilotos que fazia regularmente as ligações, entre as Ilhas de São Tomé e Príncipe), logrou sair com vida do pequeno Tiger – Mas a explicação, em boa parte, ficou a dever-se à sua notável destreza e larga experiência, fechando acto contínuo a  bomba de gasolina, e, num ápice, abrindo a porta e desembaraçando-se da  modesta máquina voadora que tripulava, sofrendo apenas umas ligeiras escoriações.
 
Declarações (excertos)

Comandante Damião, instrutor

“É pena que não haja mais incentivo, mais vontade de ajudar, porque o aeroclube é um aeroclube pobre. E faz o máximo que pode e tem aqui instrutores bons,  verdadeiramente amigos do aeroclube – No tocante ao curso, não posso ter ficado mais satisfeito do que estou. Foram realmente extraordinários"

Capitão Teixeira da Silva – presidente interino da Comissão Administrativa do aeroclube e director técnico do curso de pilotos de 1971 salientou as provas do Viriato Moura e do jovem Vale – "O acidente que depois se passou no rali, são casos de quem tem o brevet."

IMAGENS: avião da famosa ponte aérea com o Biafra, levantando voo da pista do aeródromo civil de São Tomé, a outra é a de um artigo, igualmente de minha autoria, chamando atenção para o péssimo estado da aerogare - No primeiro plano, ao fundo do texto, o avião que fazia semanalmente  a ligação com Angola, uns metros à frente do velho hangar onde estavam estacionados dois caças do Biafra, sem as asas - Lá mais ao fundo, podem ver-se, também, os velhos constellations da ponte humanitária. A última imagem é a da Baía Ana de Chaves, com as suas canoas, numa passagem de ano. Foi desta Baía, que eu partira à meia-noite, numa frágil piroga, igual às que ali se vêem na fotografia, disfarçado de pescador, para efectuar a travessia até à Ilha do Príncipe, tendo depois sido preso pela PIDE. 

  
 - Este apontamento, ocorreu-me, aqui transcrever na sequência de uma amável mensagem que recebi de  António Amorim, cujo gesto muito sensibilizou e muito lhe agradeço; lembro-me do seu nome, mas já não consigo associar a sua imagem ao nome.

 
Olá Jorge
Certamente já nem se lembra de mim. Eu fui testemunha desses momentos da guerra do Biafra pois nessa altura  eu trabalhava nas comunicações aeronáuticas do aeroporto de S. Tomé. Foram dos momentos mais desgastantes e também os que mais me chocaram cada vez que os aviões chegavam carregados com  as chamadas "crianças do Biafra". Você deu um grande contributo para a memória desta guerra na qual S. Tomé teve um papel muito importante com as crianças que acolheu. Bom trabalho, parabéns.
Mais tarde encontrámo-nos na ilha do Príncipe, (24 DEZ 1974) chefiava eu o aeroporto, aquando da queda do avião Piper28 pilotado pelo comandante Teixeira da Silva. Tenho um registo fotográfico desse momento

Caro Amorim:

Lembro-me do seu nome mas não consigo associá-lo. Só com a fotografia ou falando pessoalmente consigo. 
 
Muito obrigado, pois, pela sua lembrança e pelas palavras tão amáveis. Vou tomar a liberdade de publicar a sua mensagem no meu site. Se estiver por Lisboa, ou passar por esta cidade, não deixe de me contactar. Creia que dar-me-ia muito prazer recordar aqueles  meus tempos, e seus, ali vividos,  nas maravilhosas Ilhas de São Tomé e Príncipe. Caso disponha de algumas imagens, teria muito gosto em editá-las no meu site

 De facto, a guerra do Biafra foi uma tragédia para alguns milhões de seres humanos, mulheres, homens e crianças - A ponte-aérea de São Tomé para aquele território rebelde da Nigéria, foi muito importante, todavia incipiente para tamanho desastre humanitário. Mas o que conta, são as boas intenções e os voo heróicos. Se bem que, por detrás de  muitas intenções, houvesse a corrida aos dólares e ao ouro negro. E quem sofre são sempre os que menos culpa têm, as crianças, as mulheres e os idosos, os mais vulneráveis. E foi isso que ali ambos pudemos testemunhar, com as crianças famélicas, que ali chegavam para serem carinhosamente assistidas.

Um grande abraço amigo

de Jorge Trabulo Marques

quinta-feira, 12 de julho de 2012

São Tomé e Príncipe, comemora hoje o seu Dia Nacional - 37º Aniversário - A Minha Saudação Amiga





 


São Tomé e Príncipe, comemora hoje o seu Dia Nacional





SAUDAÇÃO A SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE  


Sob os céus distantes do Equador, 
amanhece e desponta um novo dia!
Irrompe e acorda a resplandecente aurora, desprendem-se do ar
sons dedilhados de luz, erguem-se à superfície das águas
brumas transparentes, evoluem halos leves de claridade,
cintilam e vibram os vultos verdejantes e iluminados
de duas ilhas encantadas: São Tomé e Príncipe!

Ó ilhas formosas! Édens longínquos da minha memória!
Radiosa respiração dos astros!
Ressonância inacessível da minha saudade!
- Agora, que tão longe estais dos meus olhos, quanto peso vai no meu coração,
quanta recordação, quanto me lembrais!




Ó melodiosa harmonia celestial! - Meu paraíso  perdido!
Voz oculta do meu próprio destino!
Eco silencioso do meu pensamento nostálgico!
Via errante dos meus passos! - Onde poderei agora encontrar
o perfume inigualável  das vossas florestas,
o elixir com que alimentava a minha alma e os meus sentidos?!...
- Oh! aqueles aromas inebriantes que exalam
do fundo húmido dos vossos fecundos solos,
tornam ainda mais fresca e pujante a natureza!

Irrompem na sinfonia cromática do aveludado verde da folhagem,
reflectem-se através dos raios de luz que penetram
as próprias gotículas do orvalho, atravessam
os frondosos arvoredos, dissolvem-se
em misteriosos vapores e nevoeiros
até à alucinação, à clara saturação

que pousa sobre as  montanhas.  



Oh, sim, as fragrâncias e os perfumes
que saturam a atmosfera da  brenha densa vegetal
respiram-se por todo o lado, até na crista dos mais eriçados picos,
invadem a orla das douradas ou negras praias,
circulam por entre as cubatas das aldeias
- e até nas ruas e jardins da cidade, quando as acácias florescem - 
Espalham-se sobre as copas de todas as árvores, 
infiltram-se até às  raízes,  cheiros plenos de substâncias  aromáticas
sobem do fundo da vegetação rasteira e arbustiva,
impregnam a margem das estradas e dos caminhos.
São arrastados pelos ventos, lá dos pontos mais altos,
perseguem o leito dos rios e das ribeiras
até se dissolverem no sal-gema 
 das maresias e brisas marítimas 
ou do sopro violento  dos tornados.
 


Oh! o meu passado que não volta 
mas ressurge intacto na minha memória.
Aqueles dias de permanente descoberta nas Roças Uba-Budo,
Ribeira Peixe e Rio do Ouro - Eu pouco menos era de que outro escravo, 
todavia, a beleza do mato?!..  - Uma maravilha inigualável!...
Eu tinha 18 anos e partira da minha aldeia
 para  ali fazer um estágio como Agente Rural,
que frequentei na Escola Agrícola de Santo Tirso;
 tudo para mim era novo e me fascinava!...
Não havia uma encosta ou uma grota que fosse igual à outra!
Os cacauzais repletos de frutos de todas as cores, desde o tronco às pernadas
 e aquelas árvores exóticas enormes, que lhes serviam de sombra,
 que eu não descansei enquanto não lhe conheci 
todos os seus nomes - Depois havia ainda as matabalas 
e outras herbáceas com as folhas pintalgadas e até ananases bravios
que nasciam por entre o capim verde. De volta e meia dava duas machinadas
num cacho de bananeira e metia-o numa velha cova aberta de cacaueiro,
 dois dias depois, todas as bananas estavam maduras e amarelinhas, que consolo! 
- Reacendiam de aromas e de cheiro!


Postal Colonial
Os serviçais, ao terminarem as  empreitadas das capinas, 
da apanha ou quebra do cacau ou da sulfatagem, eram obrigados
apanhar  umas quantas ratazanas que tinham de apresentar antes de largarem  
- a maior praga do cacau - , mas, alguns,  à falta de proteínas, 
até as levavam para casa, como se fossem pequenos coelhos
- E só depois, os infelizes, eram autorizados a  voltar  à senzala 
- Mas, o  empregado de mato (sempre de machim na mão), lá ficava 
a vaguear por aqueles frondosos caminhos das plantações 
até quase ao pôr-do-sol. Só depois regressava
ao terreiro e ao chalé. Mata-bichava e almoçava da marmita
que o muleque lhe tinha ido levar,  confecionado
pela samú negra - A minha tinha o dobro da minha idade!
Na roça ninguém podia ficar sem "muala."
E depois (numa breve pausa) lá ia saborear a banana com peixe,
regada com azeite de palma ou um arrozito, 
 com a marmita entre as pernas, sentado 
num tronco tombado e apodrecido ou numa pedra 
e com nuvens de mosquitos a quererem devorar-me.
A ementa pouco ou nada variava e o melhor era a fruta.
Findos os trabalhos, ficava por lá  o santo dia inteiro, chovesse ou fizesse sol.
 Eu entretinha-me a cortar os rebentos dos cacaueiros e a contemplar cada recanto. 
Às tantas divertia-me a apanhar as amarelíssimas centopeias gigantes. 
Agarrava-as pela cabeça, cortava-lhe os dois ferrões e depois deixava-as
 passear pela camisa, até cairem ao chão. Incomodava-me era o cheiro pestilento.
Com as cobras rateiras (muito grossas e igualmente mal cheirosas),
 também cedo aprendi a enrolá-las no pulso - E, mais tarde, 
até enxames (barbas) de abelhas africanas,
cheguei a fazer pousar no queixo 


-
Mas, às cobras pretas e às tarântulas, eu nunca lhes tocava, 
sempre  tive algum cuidado e respeito pelo seu veneno - Seguia
os seus movimentos, como o pássaro encantado 
e nunca lhe virava as costas, sem me certificar para onde se dirigiam.
Que havia eu de fazer - o resto do dia - sozinho no mato?!..
Eu era um cafuso (este o nome que era dado na cidade aos empregados de mato);
mais instruído de que os analfabetos (mais deles mal sabiam escrever o nome), 
mas às tantas - como na roça o que contava era a grossaria e não as habilitações -
quase ia ficando, tão analfabeto como eles: à noite queria escrever uma carta 
e, tão confuso me sentia, que não sabia como. 
Estive vários meses sem mandar umas linhas aos meus pais.
  O que me distinguia deles  era a forma de lidar com os serviçais.
Nunca tratei um trabalhador por tu ou o castiguei. Mas sofri por isso.




Oh! tantas! tantas recordações! Algumas das quais 
bem dolorosas, é certo, mas a maravilhosa paisagem
está ainda muito nítida na retina dos meus olhos
ofusca todas as outras imagens, deslumbra-me 
e é a única tela que eu agora revejo.
Mesmo, quando o tornado - vindo do mar - assolava
a encosta e era preciso abrigar-me junto ao tronco de  uma jaqueira
-  a árvore de raízes fundas e resistente a todas as intempéries - 
para não levar com uma pernada nas costas ou um pau seco na cabeça.  
Ainda conheci vários empregados aleijados - Os trabalhadores.
esses, coitados, cabo-verdianos, moçambicanos, tongas  ou forros,
abrigavam-se como podiam, porém,  como as árvores resistentes,
não davam para todos,  já era a habitual algum partir as costas,
e servir de carne para canhão - Até o peixe seco,  já deteriorado 
fedorento e o feijão bichoso, vindos de Moçâmedes (guardado em armazéns húmidos),
lhes devia saber mais  a bichos, a bolores  azedos e a ranço que outra coisa. 
Oh, mas de que infâmia eu havia de me lembrar! 
- Agora não quero trazer ao presente  
esse comportamento esclavagista ou as chibatadas que eram dadas
pelo capataz aos mais renitentes, 
que muito me decepcionou e me entristicia-
Bem me bastou ver a miséria no local e os castigos que me foram aplicados
 (enviado pelo Administrador-geral a contar cacaueiros abandonados 
numa dependência da Roça Ribeira Peixe, ao Sul, infestada de cobras venenosas) 
 por me haver recusado a tratar os trabalhadores por tu e ao velho e infame estilo colonial:
prefiro agora dar largas a outras  belas memórias.

Ó prodigiosa graça iluminada! 
 Alucinante prodígio Equatorial!
Vinde  preencher a minha alma das alegrias (e até das tristezas) 
que me roubou a vossa longa ausência!
  Vinde colmatar o vazio que me criaste 
por nunca mais vos ter visto.
Oh, sim! onde irei eu agora apanhar as tão belas rosas de porcelana,
as orquídeas, as begónias que colhia nos vossos frondosos hortos?!
E aqueles ramos das tão delicadas flores, brancas e roxas do macá
e do pau lírio?!...- Oh, tantas flores selvagens de cores lindíssimas!
Tantas flores exóticas e bonitas, tão variadas! - Que florescem e rescendem

debaixo do quente e húmido manto arbóreo,
no qual se entrelaçam as lianas, o lemba-lemba, 
vegeta a corda-pimenta, a corda de água,
desprendem-se e soltam-se  os mais surpreendentes bálssamos 
na diversidade da profusa e maravilhosa cobertura vegetal! 


(Praia das Sete Ondas Postal Colonial)

 Ó divino e formoso sortilégio! - Minha linda Ilha de São Tomé!
-  Imagem ardente dos anos  da minha juventude mais ousados! 
Dada a impossibilidade de poder vislumbrar-vos,
pelo menos por agora  - será que terei eu de conformar-me, 
dando-vos  por definitivo o meu adeus para sempre!
Oh, não! não posso acreditar em tal fatalidade! - Ó plenitude  perdida dos meus olhos!
Imagino-vos bem longe de mim mas tenho-vos sempre no pensamento!...
Não estais esquecida!... Por ora, eu não  posso  ir  junto de vós, 
mas vinde então vós ao encontro do meu coração! 
Vinde numa manhã qualquer  e trazei-me 
a esperança de um espasmo alegre de frescura, 
a junção da terra  às palpitações do  meu peito!
Mesmo que seja a névoa saturada, o nevoeiro
que pousa no cimo dos florestados montes ou apenas um único raio de  luz do firmamento azul
que vos serve de arco - Vinde ter comigo,  abençoada dádiva! -  Generoso Éden terrestre!
Trazei-me as múltiplas sensações, que os anos e a distância  
já me roubaram,  os agradáveis momentos de adoração  dos verdes  coloridos,
 frescos e intensos das copadas árvores que formam os densos e misteriosos obós,
amálgamas de sinfonias de sons e de cores, povoadas por nervosas cascatas 
e  correntes de águas, impregnadas de substâncias  aromáticas  inesgotáveis,
frémitos do abandono, de silêncio  e  deslumbramento!












Oh , às os que procuram   ir ao encontro 
de novas  sensações e novidades  no devir!
Por mim, já me sentiria feliz se ao menos voltasse  
a viver um pouco das emoções  que vivi em São Tomé e Príncipe!
Sim, naqueles meus 12 anos, a vida não me foi fácil: desembarquei 
com dois tostões na algibeira 
e regressei à minha aldeia com os bolsos completamente vazios.
Mas que importância tem isso?! - Se eu também não parti à procura da riqueza!
Que importam as afrontas (não do amável e pacífico povo) quando me pus ao lado 
da sua independência!
Que importam os riscos, os muitos sustos que os tornados me pregaram,
os longos dias e noites de incertezas, longas vigílias e angústias
vividas nas frágeis canoas de ocá dos pescadores,
quando se persegue um ideal, desinteressado e por sincero amor!  
- Ó celestiais abóbadas! Ó cúpulas azuis ou brancas
que a luz satura e ofusca!- Etéreas transparências 
e afectuoso diálogo que se expande 
espontânea e livremente 
sob o copado verdejante do bosque luxuriante! - Ao menos voltasse
eu ao solitário ao mar ou ao seio ubérrimo da maternal  floresta!


Ó respiração perfumada e fértil da verde e tenra folhagem!
 Que gravitas  por ramos de poléns, de  pétalas e silabas,
transcendendo os sentidos das pessoas, das aves e animais e alastras 
por tudo  quanto se eleva acima das águas do oceano azul
Floresces ao longo das margens de  nervosos regatos e correntes cristalina,
competindo lado a lado com as palmas gigantes dos fetos,
vicejas à sombra do cacauzal perfumado das roças,
brotas em múltiplas formas  garridas e divinas, debaixo das frondosas eritrinas, 

cobres-te por  debaixo das palmas dos coqueiros e palmeiras, mangas, jacas!


Postal Colonial

Refulges e mistura-te com os tufos das bananeiras,
que escondem cachos e folhas laminadas de luz nas entranhas da mata

 ou em redor das enormes amoreiras bravas,
das figueiras loucas, dos mararapiões, coqueiros, coleiras e ocás!
Sim, é o ambiente de fornalha das gigantescas e ramalhudas árvores, 

as cores que vibram com lampejos de fogo e se misturam e confundem
com os cheiros característicos dos izaquenteiros,
safuzeiros, fruta-pão, árvore da canela, da quina,
o suave perfume da baunilha, o aroma leve dos mamoeiros
a floração adocicada dos cafezeiros! Massa selvagem viçosa e compacta,

fresca e verdejante que só o recorte da negra costa restringe e aplaca.
Ergue-se do seio exuberante da exótica capoeira,  engrinalda  
velhos muros e sebes e floresce até aos mais altos picos e serras
 - Seu reino é mesmo o do ventre cerrado e perfumado  do  òbó! 
- Fluída e refulgente exaltação verde e divinal!
 Pujante sagração vegetal que exala   baforadas de essências e de néctares
que atraem revoadas de insectos e até outras bênçãos sobrenaturais! 

Prodígios de sombras e de luz,  de cores e tons, de formas e sons, 
que invadem todos os recantos da floresta,  cobrindo toda a ilha (as Ilhas) 
num único manto. Vão  até onde o oceano tinge o verde de azul e o detém
 

Oh! não há outra dádiva mais pura e sagrada da natura  como esta!  
Prodigiosos jardins,  quão  belos e fantásticos! - Propiciadores
de bálssamos e de formas de vida, capazes de enfeitar a mais linda jarra
para depois  - sob o cântico  do verde e dourado ossobó -,
ao coro do chilrear melodioso da  multicolorida passarada, 
ser colocada aos pés do altar
do omnipotente Deus ou da Deusa mais sublime e venerada,
como saudação à iluminada palavra 


 INDEPENDÊNCIA - LIBERDADE!... 

 Jorge Trabulo Marques



Postal Colonial)