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domingo, 1 de abril de 2012

SÓ A VOZ DO MAR!... E TÃO LONGE DA ALDEIA QUE ME VIU NASCER

Jorge Trabulo Marques - Jornalista e antigo navegador solitário






SÓ A VOZ DO MAR!...


Levanta-se o dia. O Sol resplandece!...
O azul do espaço toca o infinito!...
Os meus pensamentos bóiam à flor das águas...
vagos, indefiníveis, indistintos!...
Beleza vã e enganadora!...



Ó  saudosa e branca aldeia!
É domingo. É o sagrado dia do descanso!
Repicam os sinos! - Não os ouço!...Imagino-os!
Aqui só se ouve a voz do mar!...- Do seu dorso
apenas me separa a grossura de uma frágil  tábua!... 
Que, todavia, é um madeiro escavado - Este é o meu soalho!...
 Mas eu sei que lá longe o dia é uma promessa!...
É a  hora de todos os fiéis devotos se dirigirem à igreja!...
 – De irem à santa missa! Entoarem os seus cânticos
 e   consagrarem as suas orações ao Altíssimo!...
 - Um gesto humilde e  piedoso, em torno  da liturgia cristã,
onde cada um vai buscar  o reconforto,
 que o  fará ao mesmo tempo retemperar
 das rudes agruras e  fadigas da vida! - Oh! ares límpidos!
Puríssimos espaços azuis! Quantos sacrifícios e fadigas
Quanto suor já testemunhaste através dos olhos 
devorados pelo sol dos esplendores deslumbrados
na imensidade ardente e calma dos largos espaços!

 
Cedo perdi os fervores religiosos que me foram imprimidos 
na Escola Primária e na catequese - Cultivei outros
Os caminhos de chegar a Deus ou descobrir o sentido da vida
são inúmeros - Não existe uma verdade absoluta
 - Tudo se transforma. Tudo tem um principio, 
um meio e um fim.  E o que agora é uma realidade,
amanhã, poderá ser outra completamente oposta.
Não há credos  falsos nem credos inteiramente verdadeiros.
Deus deu-nos a liberdade de cada um poder interpretar 
o mundo à sua maneira e de seguir o seu próprio caminho.
Se assim, não fosse -  ter-me-ia aconselhado a não enfrentar 
os  perigosos caminhos do mar - Mas não se importou.
Não lhe ouvi sequer uma palavra, de prudente aviso, 
que  me dissesse - Jorge! Não Vás!...
 E a que eu pudesse contrapor: Oh! Mas eu vou!


No entanto, quando me encontrei por lá sozinho e perdido, face
a tão vasta solidão e a tão profundos silêncios, onde se gritasse 
ninguém  escutaria os meus gritos, ninguém me poderia valer,  
tenho ainda hoje a impressão, que naqueles momentos terríveis
ouvi, dentro de mim, uma qualquer misteriosa   voz que me disse:
Jorge! Não desanimes!... Luta e não desistas!..

Seja como for, com ou sem quaisquer avisos divinos ,
o certo e que, daqueles meus verdes tempos de criança, 
ficou-me um lastro  indefinido e imperecível, 
mesclado de várias divinizações  - Que no mar 
andaram comigo sempre à solta - Pobre do náufrago!
Vale-se de tudo. Tudo o assombra ou ilumina.
Triste de quem enfrenta o abandono e a solidão.
A fé e a confiança o salva! O desespero e a descrença,
é meio caminho andado à perdição, à morte e à sepultura.
No entanto, mesmo o náufrago, é incapaz de traduzir por palavras 
os múltiplos sentimentos  e estados de alma,
que sobre o seu corpo e espírito se abatem.

  

Oh, não estou desesperado mas vejo que nem sempre  
posso dar o rumo  que quero à minha piroga:
a tempestade levou-em quase tudo - Por isso,
face a tantos perigos e ameaças,  afloram-me à  mente, 
pensamentos desencontrados, as mais díspares emoções 
-  Umas vezes de fé e de esperança, outras 
de dúvida ou descrença ! - Oh, quanto  não daria 
para celebrar, com os meus, 
a tranquilidade e a paz de um santo domingo!... - Num ímpeto de alma 
e de intimidade,  percorrer distâncias,  fundir-me 
nos  horizontes que me cercam, 
desde os próximos aos mais longínquos e transladar-me, 
fisicamente, espiritualmente, a esses amáveis lugares 
da minha infância e adolescência - Apesar  de saber 
que a vida, ali, é  bem  madrasta!... Amarga e difícil!
Por isso, muitos vão procurar o seu ganha pão
em paragens longínquas do Brasil, em França, em África!
– Foi assim, em busca de melhor vida,  que um dia parti
em demanda de uma ilha nestes mares, em cujos águas 
me encontro  agora à deriva!....Desconhecendo, a que praia,
a que desconhecido lugar poderei aportar -  Por isso,
vogando que vou nesta incerteza, nesta contínua errância,
quanto não daria para agora poder contemplar
a beleza incomparável da linda Ilha, donde parti
ou poder regressar à liberdade dos tempos
dos meus humildes dias de criança.


Sim, relembro a alegria das airosas 
manhãs  primaveris da minha criação  
e tenho ainda bem presente o  adro ao domingo....
Vejo a igreja, o campanário e o velho negrilho
no centro do adro - E revejo-me à sombra dele
naqueles lânguidos e  quentes dias de Verão.
Ou nas tradicionais Festas de Nossa Senhora de Assumpção! 
Todo ele  enfeitado no centro do coreto! - Que dias maravilhosos!  
Com os foguetes a estralejar e a filarmónica  
acompanhando a procissão - Ou já a despedir-se
 e a dar a volta ao povo, parando e tocando 
junto à casa de cada novo mordomo.



Oh, quem  não se lembra de 15 e  16 de Agosto?!
Quem é que, ali, não teve desses dias as melhores recordações?!.. 
Dias alegres e felizes,  de convívio e de reencontro:  dos que emigram
e  ali voltam a matar saudades! -  Dias banhados de sol 
e de longos crepúsculos!  - Tão diferentes dos dias incertos
em que agora vogo e me encontro perdido- As noites são sempre iguais:
 o dia despede-se rápido e a noite cerrada avança para a claridade  do dia, 
quase sem me aperceber, sem se dar por isso, sem  alvorada. 
- Mal se põe o sol,  anoitece. Logo o mar e o céu se cobrem de penumbra 
 e, à minha volta, todo o horizonte  se  tolda e dilui-se em sombras e trevas. 



Novembro de 1975 -  Domingo 
O meu calendário no mar 
não é todavia o mesmo de quem pisa terra firme -
Conto os dias e gravo-os nos meu diário 
(sim, disponho de um modesto gravador que guardo 
num simples caixote de plástico, igual aos do lixo) 
mas não tenciono fazer o registo do dia da semana ou do mês. 
Não perdi o tino mas vivo num permanente mar de dúvidas e angústias:
 - pois não  tenho a certeza  se a minha piroga resistirá
às constantes investidas das vagas - E o que agora me interessa 
 é registar o tempo de vida em que assim vivo: 
Um violento tornado fez-me perder os remos e quase tudo 
- Fiquei  praticamente desprovido  de alimentos e de água potável. 
 Este suplicio vai durar quase 40 dias. Mas neste momento 
ignoro o meu destino, o longo e tormentoso calvário que me espera.

Sirvo-me apenas de uma modesta bússola - Não disponho
de quaisquer outros meios de navegação ou de comunicação.
Sei a direcção pela qual me arrastam as correntes e os ventos.
Por vezes navego, com um remo improvisado,
mas é um trabalho demasiado penoso e quase inglório.
Não  sei se estou muito longe, se muito afastado
 de  uma qualquer das luxuriantes ilhas  do Golfo 
ou de uma qualquer  misteriosa enseada  da costa africana.
O que eu sei é que este é o tempo dos tornados!
Das inesperadas e violentas tempestades  tropicais! 
Quantos tormentos, oh Deus!... Se o barco me largasse 
na corrente equatorial, não os enfrentava - azar meu!
Morto ou vivo seria arrastado para o outro lado do Atlântico -  
Mas pregou-me uma partida: queria   que abandonasse 
a canoa e ficasse  a bordo a trabalhar  
- Mas não era esse o meu objectivo.

 

Todavia, embora longe dos horizontes
da terra onde nasci, tenho bem presente 
na retina dos meus olhos, as ladeiras com os olivais, 
com as suas figueiras e amendoeiras floridas, o vale dos areais,
as fragas dos Tambores, cobertas de giestas em flor, a Cova da Moira, 
Pedra da Cabeleira de Nossa Senhora, o nosso Lavor do Ferro 
e o Vale Cardoso, o Cabeço D'oiro, a Serra,
o Vale das Boiças, o antigo solar 
do Vale Cheínho ou do Vale Cheiroso, 
que tão perfumado  é no tempo das maias.















Oh! e então a antiga Quinta de Santa Maria, 
no Côa, onde meu pai nasceu e onde íamos a crestar
as colmeias por altura da Primavera! - E a quinta do Muro,
alcandorada na encosta dos Areais, onde vivi
os melhores dois anos da minha adolescência,
subindo as encostas dos Tambores, a levar
a marmita ao pastor, que ali guardava o gado.
Debruçada sobre os choupos da ribeira, 
com as suas folhas  a desprenderem-se no seu constante rumorejar
à mistura com os sonoros  chilreios e estribilhos da passarada!
As vinhas, depois de vindimadas, colorindo-se 
de mil tons  e  amarelos brilhantes!  - Oh, 
mas  que bela e surpreendente aguarela!

Como agora o meu coração, se enche de lágrimas e se comove! 
ao sentir a ausência da saudosa aldeia  onde vim à luz do dia e cresci
 - Não tanto pela distância que dela o separa - bem longe!
Mas pela imensa e sofrida incerteza de  não saber
se a voltarei mais a ver.


Recordo a minha saudosa mãe 
a ir lavar a roupa à Ribeira dos Picos,
carregada com o cesto à cabeça - E depois 
vejo-a a subir aquela íngreme ladeira...
Mesmo cansada, ainda ir ter que fazer a comida!
 - Oh, tão sacrificada a sua vida foi - Já nos deixou 
E era ainda nova - Chorava por trás do postigo
quando se despediu de mim: "Filho!
Nunca mais te vejo! - E assim aconteceu.
Parece que avinhava - Eu tinha 18 anos e ela 52.

 O DIA EM QUE CAÍ A UM POÇO

Em casa, à mesa, juntávamo-nos seis.
Eu era o do meio. Quem havia de imaginar
que uns anos  mais tarde, e não tão tarde quanto isso,
pai e mãe, haveriam partir tão cedo para a eternidade...
E eu haveria de ser um dia o mais velho - Só ficaria
eu e o meu irmão mais novo - Que corajoso
não foi o Fernando, naquele dramático dia 
em que eu e a minha imã caímos a um poço!...
Eu estava uns metros abaixo do picanço
a desviar o caldeiro de uma pedra. A vara desprendeu-se 
e a minha irmã precipitou-se sobre mim 
e rolámos  os dois para o fundo - Eu tinha nove, 
ela treze, o Fernando sete anitos  - Vendo que faltava 
a água na regueira, correu em nosso auxílio.
Agarrou-se a uns juncos, estendeu uma cana 
à Conceição e depois foi ela que me salvou.
Gritava tanto!... Tanto!...Estranha coincidência...
Foi a  um domingo... A 13 de Maio. 
No dia de festa nas Tomadias.
Uma manhã tão alegre e tão bonita!....
A meio da tarde, tanta aflição!..
Tínhamos lá ido  à procissão.
E, como calhava no caminho, 
aproveitamos para ir ao nosso prédio da Serra.

Ela parecia mais aflita de que eu.. Chapinhava
desesperadamente e tentava agarrar-se à margem
Eu estava mais ou menos resignado... Já só via a morte...
Meus olhos turvos e embaciados, só faltavam cerrar-se...
Quando vinha à superfície, afrontado, tossia e soluçava...
E  depois fechava a boca para não engolir mais água...
Sentia que nada nos podia valer.... Arregalava os olhos...
Arregala-vos e via que a triste sorte parecia iminente....
Ela gatinhava na margem barrenta do poço. 
Mas em vão.... Arranhava a margem íngreme
e gritava por Nossa Senhora de Fátima...
Nossa Senhora de Fátima!!!..Parece
que ainda  a ouço gritar... Estávamos longe da aldeia. 
E ninguém mais ali nos podia acudir.
Ficou com os dedos todos esfolados.

Nesse dia o José não foi regar a horta.Ficou em casa.
Não sei como não ficámos lá todos!...Sorte a nossa... 
Vêm-me as lágrimas aos olhos só em pensar nisso...
Quando me vi livre do poço, nem queria acreditar que estava vivo... 
Cambaleava e vomitava água...Parecia um bêbado!..
Mas que ideia agora a minha!.. Porquê essa memória?!... 
 Não devia pensar  em tal episódio: - o afogamento é coisa horrível!
 - Voltei a ver essa mesma imagem, quando a canoa
se voltou na viagem de São Tomé ao Príncipe.



Era noite alta...  Solidão ameaçadora e escura!...
Adormeci rolando  com a minúscula piroga num estranho remoinho...
Tudo era negro... Negro, líquido e tumultuoso... 
Até o vento...Que parecia  empurrar-me,
envolver-me e confundir-me com as próprias trevas..
Acordei com a estranha sensação de asfixia!..
Água a entrar-me subitamente nos meus  ouvidos 
e pela boca adentro!..Foi horrível!... 
Autêntico milagre ter escapado.

Deveria ter juízo  mas o mar continua a chamar-me!...
Que hei-de eu fazer?!... - Talvez  não seja eu o culpado 
mas o mar que agora me arrasta...e não sei para onde...
Não sei para que ponto  do horizonte ele me leva...
Já me estou a desviar demais... Falava eu do Outono..
Sim,  parece-me que  ainda estou a ver o meu pai 
a lançar as sementes à terra e a lavrar 
as encostas da fraga alta,  pegando na rabiça do arado, 
indo atrás do macho,  encosta pejada de fragas,
por entre alguns carrascos e ladoeiros, terrenos agrestes 
que, na Primavera, farão despontar  as lindas verdes searas, 
polvilhadas de rubras papoilas, para que, depois no Estio 
se estendam como doiradas e ondulantes mares. 



 - Oh que dias de fadigas e canseiras! 
- Mas também de espanto e descoberta!
Hoje é domingo - Mas que nostálgico e solitário domingo!
Por lá, o Outono já vai adiantado e o Inverno está quase à porta.
- Os dias vão minguando, as noites, mais  frias, vão crescendo 
- Pelo que as chuvas já terão enlameado as ruas da aldeia, 
pois não estão calcetadas como as da cidade.
Usam-se os tamancos - é o calçado mais barato e dos pobres.
Não se atolam tão facilmente. Como é hora da missa, 
pressinto que devem estar  quase desertas, despovoadas
Ali, aos domingos, a igreja é sempre concorrida.


Porém, o silêncio  nunca é completo: os gatos miam
nos telhados, as galinhas  cacarejam e andam à vontade 
e há sempre um galo montês fora da capoeira
a ferir o espaço! - E um cão desatinado
que ladra ostensivamente aos ares
e desencadeia, em uníssono desafino, a ira de outros.
Um azino tresmalhado,  dentro  ou fora do palhal,
a quebrar o silêncio cósmico  - De um momento
para o outro desata a zurrar!...
As três badaladas do campanário já foram dadas...
sinal de que as pessoas já  entraram para a igreja
e que o senhor padre  já vestiu os paramentos,
deixou a sacristia e  se dirigiu para junto do altar.

Cá fora, não há ninguém, o adro está deserto, 
do interior da igreja ressoa um religioso recolhimento.
Alguém tosse ou  uma ou outra criança, desata a chorar
no colo da mãe - Sim, ali não há damas a tomarem conta dos bebés,
nem creches nem biberões que substituam o apego e o leite maternal
- O campo absorve  quase todos os dias do ano e da  vida - Não se descansa.
Só o domingo é sagrado - Mas não inteiramente livre. Há quem trabalhe.
Cumpra as obrigações religiosas e vá regar a horta ou buscar água
no cântaro à cabeça ou nas aguadeiras à fonte .
Mas, antes disso, vai à missa -  Há por lá quem pratique
o paganismo às ocultas  - Mesmo assim,
para disfarçar a sua heresia, não deixe de mostrar 
que não é do rebanho a ovelha mais tresmalhada.  

Sim, é hora da missa e a igreja está completamente cheia, 
apinhada:  - Mas a distribuição  dos fiéis não é toda por igual: 
os homens e os mais novos,  envergando  as farpelas domingueiras, 
estão à frente,  de pé e próximos do altar.
As mulheres, lá mais atrás, cobertas com os seus xailes e lenços negros, 
são em maior número e vão até ao fundo da porta principal
 -- Entretanto, o celebrante  já ergueu os braços 
 e   deu início ao sagrado sacrifício da Eucaristia!...
- Há cheiros e fumos brancos de incenso -  Não se usam perfumes. 
As roupas têm o cheiro da naftalina  - As casas de banho, 
quem as tem?!... Vai-se atrás de uma parede.
E ainda bem que o incensório se agita e  fumega 
nas mãos do sacristão ou ou do senhor abade - Purifica,
diviniza e harmoniza o ambiente.

Ecoam os primeiros cânticos -  Paira no ar 
não apenas o cheiro do incenso 
mas  uma mística solenidade...
-  O sacerdote, concentrado no seu ofício,  
não tardará a fazer o ofertório e a  repartir 
a sagrada comunhão  a quem se aproximar 
da mesa de Cristo e dela se  ajoelhar...

A atmosfera é  pois de aparente e visível religiosidade...
Perpassa por todos os rostos  um silencioso recolhimento
Transparece, algo que os fará esquecer de uma semana de esforços 
e de labuta -  São ainda os tempos   
em que  a fé religiosa anda de mãos dadas
 com  o analfabetismo endémico e algumas trevas.

 O povo acorre porque é também esta a única via de ligar 
o homem à pedra e à terra, lhe minorar o  sofrimento,  
no elo comum   dos mistérios do divino, 
do absoluto e do Universo.

Momento de devoção, belo! Abençoado!...
Hora alta!  Etérea e solene!... – Um cântico 
comovente e devoto, volta a ecoar por todo o templo,
invade  os corações   avidos do sagrado
que os reconforte e os retempere
das longas jornadas da semana, 
dos dias que vão de sol a sol,
do acordar cedinho e do regressar
ao lusco-lusco-fusco, quase à noitinha.
 
Oh, sim,  é domingo...
 - Mas que domingo mais solitário e triste!...
Quem me dera viver este dia no coração
da minha aldeia - Chegar ao fim do dia
e, tal como em criança e à luz da candeia,
 sentar-me à mesa  da cozinha, 
ali junto à lareira, comendo o caldo verde
e as batatas, regadas com o azeite
das nossas oliveiras,  um pouco de fumeiro,
mais das vezes quase sem peguilho  
- A ementa era apetitosa mas não variava muito:
Raramente se ia à mercearia: era tudo colhido da horta;
havia dois fornos comunitários, a minha mãe amassava
a farinha do nosso trigo ou centeio
que os moleiros moíam nos moinhos 
da ribeira ou do Côa e depois levava
o pão a cozer no tabuleiro
Uma sardinha, coisa ali rara, 
por vezes, não era inteira, mas dividida.
O pior era a fumarada da fogueira: pois havia  
que aquecer a água da beberagem para o "vivo"
E o caldeiro ficava sobre a lareira e desviava 
o fumo da chaminé. - A vida da lavoura, 
dá tantos trabalhos, Deus meu!... E para nada... 
Vida dura!... Nunca tive um brinquedo 
de feira, senão aqueles  que eu próprio construía.
Os meus quatro irmãos, a  mesma sina!



Mesmo assim... que saudades!...
Quão longe estou  eu desses lugares!
Quão distantes me parecem agora esses tempos?!..
Que todavia não me saem da retina  dos meus olhos..
Tão perto os sinto do meu coração! - Oh ânsia!...
 Oh impossibilidade de transformar
os meus pensamentos num voo de pássaro,
capaz de me fazer vencer todas as barreiras e mares!
Para que  num único voo fosse capaz de lá chegar 
- Mas não posso!... 



O que os meus olhos, em verdade vêem, 
é um outro mundo... Outros horizontes, outros espaços!...
Uma  vasta superfície azul ondulada e deserta... - Tudo a unir-se
no mesmo azul esbranquiçado num imenso círculo
a perder-se-me de vista....Olhe para onde eu olhar,
 só vejo mar e o céu ! ... Seja para que ponte for que me voltar...
A mesma solidão infinda... O mesmo azul infindo do mar!... 
Que cenário este meu Meu Deus!... O pior é à noite...
Depois do sol se pôr... Escurece e a tristeza é ainda  maior.
E, então se chove ou se houver alguma trovada!...
Oh, nessas trevas soltas o que sou eu, afinal?!..Não sou nada!... 
Não sou nada!..Não tenho palavras...Não tenho palavras..
Quando não há luar fica tudo escuro como breu.
É o negro vazio... É a noite assolada!....A noite no mar!...
Metido neste casco de árvore..Por vezes sinto que não existo..
Mas a vida!... A vida!... Não há milagre maior que a vida!
Não me resigno!...Não me dou por vencido! 
Sozinho!... Lá vou sendo arrastado... Às vezes à vela ou a  remar. 
Não me rendo e não desisto de lutar... Não me rendo!
Oh, para onde me arrastarão estas águas?!.. A que ponto?!..
 Até quando esta incerteza!...Até quando?!..




 
Ó inclemente oceano! Ó mares largos! Ó impiedosos  céus!
Onde está o altivo campanário da  antiga igreja, o adro, o negrilho?!.
Oh que saudades dos ondulantes montes de centeio, 
dos rolheiros nas eiras e da azáfama das ceifas e das malhas!
O brilho das espigas de milho e o dourado mar 
das lindas searas de centeio e trigo.

A ribeira com o marulhar dos choupos, o cantar dos pardais
nas belas manhãs e tarde primaveris, de estio ou outonais.
As suaves  noites de Verão de luar prateado, 
banhando o planalto,  ladeiras e montes e o Vale dos Areais!...
Só o mar! O mar a bramar! A bramar!!.. 
O mar!...O mar!!... E eu perdido!..
Eu sozinho! O Céu e o Mar!..




Ó aldeia querida que me viu nascer!
Ó horizontes dos longos e verdes  dias triunfais!...
Quanto   vos recordo!... Quão longe da minha vista estais!...
Quanta tristeza vai no meu coração atribulado!...
 Em que  ermo ponto, deste imenso horizonte, agora estais?!.
Oh, quanto, em vão, eu agora vos evoco! 
Oh, quanto,em vão, agora me lembrais!...

Jorge Trabulo Marques 




Um comentário :

Anônimo disse...

Interessante a sua poesia e a descrição que faz da vida do mar; das aventuras e desventuras, são coisas que ficam e jamais desaparecerão.
Não sou homem dos mares, mas sou de um Portugal à beira mar plantado.
Um algarvio também gosta do mar mas num outro sentido, tal é o meu caso.
Um abraço