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segunda-feira, 15 de outubro de 2012

28º Dia - Grandes vagas alterosas entravam dentro da minha canoa!... Um tubarão grande, daqueles perigosos, rodeava-me de um lado para o outro!... Foi para mim uma tarde angustiante e aflitiva!...Sem comer!... Aqui ando não sei para onde!...


Algures no Golfo da Guiné, 17 de Novembro de 1975

Diário de Bordo  - 5 "Não sei onde me encontro...Não sei para onde vou!... Mas tenho ainda uma réstia de esperança... Tenho fé em Deus! Que realmente chegue a terra!... É o que posso dizer neste princípio de noite..." 

Diário de Bordo  - 7  Sinceramente!... Vou-me deitar!... Vou ver se descanso qualquer coisa, daqui a bocado...Mas, sem comer nada?!...Com estômago completamente vazio... (..) Ah, mas eu quero é viver! É viver! E mais nada!... Eu quero viver!... A vida é tão bela!... A vida... ai... (não resisto que as lágrimas me corram pela face) Só no meio das dificuldades é que uma pessoa, realmente, avalia o que é a vida!...
 ..


(foto do autor deste site, algures nos mares Golfo)


Diário de Bordo  - 1  Deve ser uma da manhã do 28ª dia. É noite e está luar!...Até agora o tempo tem estado bom. Mas o  mar está muito agitado,  com uma  uma calema muito forte! E eu ainda  nem me deitei nem cruzei os braços, vou a velejar. O que me obrigo a uma atenção redobrada. A canoa balanceia bastante! E eu já ergui  a vela mais pequena para dar outro equilíbrio à canoa.

  Há umas formações de nuvens lá ao largo...Esperemos que entretanto não chova 

Em meu redor é o mar! E é noite de luar!... No alto do cósmico arco, e já muito acima do ponto onde se ergueu do fundo das águas,  brilha um impressionante disco lunar, cuja claridade se espalha por uma imensa superfície espelhada de infindos brilhos de prata e por infindas pregas de enrugada extensão, ora  cintilando, ora desmaiando, mas cá em baixo o seu brilho vem somente tornar ainda mais visível  a face conturbada da infinita solidão que me submerge. Pois, de tão longínquo, não desfaz por completo as negras nuvens que pairam em torno do obscuro horizonte  que me envolve, que continuam  a revelar-se, como olhos de assombrosa   e velada ameaça!..
 . 


Sim, alta vai a noite e alta brilha a lua e eu não durmo! -  Ondulam nervosas águas e, por tão agitadas, adio o meu repouso;  nem tão pouco posso dormir nem descansar. No entanto, completamente alheia à minha incerteza,  a canoa lá vai subindo e descendo a cova e a dobra  de cada onda do imenso manto tumultuante. Sei a direção que toma mas não faço a mínima ideia onde estou nem para onde vou.


Sozinho, apreensivo e triste, lá vou   balanceado pela noite afora, velejando ansioso, proa apontada ao desconhecido. Tosco pano içado em tosca vara de mato a desafiar os ares destes turbulentos mares. Atento e vigilante. Atormentado pela incerteza, pela fome e pela sede- sim, a água que recolhi das chuvas, é pobre. Sem comer e sem poder dormir,  lá vou velejando,  impossibilitado, mais das vezes, de o fazer. Derivando, indo arrastado, ignorando o destino para onde me conduz o movimento incessante deste ondulante e lívido manto líquido.

(pescador de São Tomé - foto do autor deste site)

Mas, oh Deus, a lua, descoberta ou encoberta, lá segue imperturbável o seu percurso -   Jamais força alguma a desviará a impedirá  de mostrar à Humanidade e a toda a Criação,  as várias faces do seu rosto. Mas, o meu destino, como será?!... Sozinho e abandonado,  debaixo da sua luz,  ao sabor dos caprichos do mar e do vento, para onde me levará a noite?!... Qual o  meu  caminho?!... .. Quem me responde?!... 

A que  enseada de águas calmas, límpidas e profundas, a que  bom porto de abrigo ou praia de areia fina,  a minha  canoa, poderá tranquilamente acostar? Ou a que íngreme escarpa,  promontosa arriba, rochosa falésia, poderei vir a  ser  atirado e despedaçado?!... E, depois, o que poderá acontecer-me se pisar a  tão desejada floresta, luxuriante e fértil, carregada de frutos silvestres, chão viçoso e perfumado,  a  tão ansiada terra firme?!..  
  




(largada da Praia das Neves, em São Tomé - para o pesqueiro Hornet, afim de me deixar na corrente equatorial)



Como irei ser recebido?!...Apiedando-se de mim, deste miserável náufrago,  acolhendo-me, humanamente, ou intrigando-se com o  meu aspeto, magro, atormentado,  queimado e olheirento, de criatura vinda de outro mundo?!... 

. Recebendo-me com desumana desconfiança e hostilidade, como perigoso invasor e foragido?!.. Vendo em mim o ser pacífico, que ousou enfrentar sozinho as procelosas ondas dos tornados ou o vil estranho,  o  suspeito,    desembarcado de barco  espião ou pirata?!...

Dez dias depois, conheceria a resposta -  detido, algemado, encarcerado!... Mas, agora, era a noite, mais uma longa noite equatorial,  um longo e exaustivo desafio - E, cada noite, nestes mares, não é uma noite, como  outra qualquer, mas a  sombria eternidade, a sempre misteriosa e antiquíssima noite, que, a cada momento,  vai mostrando, aos meus olhos, ansiosos e perscrutadores, as mais diversas máscaras e fantasmas, com que se cobre ou revela.

 "Vem, Noite antiquíssima e idêntica. / Noite Rainha nascida destronada, /Noite igual por dentro ao silêncio, Noite /Com as estrelas lantejoulas rápidas /No teu vestido franjado de Infinito.

(...)Vem soleníssima,/ Soleníssima e cheia / De uma oculta vontade de soluçar, /Talvez porque a alma é grande e a vida pequena, /E todos os gestos não saem do nosso corpo, /E só alcançamos onde o nosso braço chega, /E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa, / Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos, /Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados. /Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes. 
  
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados. /Vem, lá do fundo / Do horizonte lívido, /Vem e arranca-me / Do solo de angústia e de inutilidade / Onde vicejo.
(...)  Alvaro de Campos (Fernando Pessoa)




 



CONTINUO SEM PESCAR E A GUARDAR O TUBARÃO, JÁ ESTRAGADO. - BASTANTE ME CUSTA  SACRIFICAR AS MINHAS ÚNICAS COMPANHEIRAS QUE VÊM PERNOITAR NA MINHA CANOA ...MAS, OH MALDITA  FOME! A QUE CRIME ME LEVASTE!..

Diário de Bordo  - 2 - Apanhei há bocadito uma ave...Uma avezita...Sinceramente, custa-me fazer isso...Até porque pousam aqui todas as noites...Mas a verdade é que a necessidade me obriga... Há fome!...Portanto, tenho que me valer destes recursos....

Diário de Bordo  - 3  Os trabalhos que acabei de executar, são trabalhos muito melindrosos... É preciso fazer umas ginásticas para se proceder a isto e evitar  que se caia ao mar...Realmente está uma calema bastante forte e a canoa balanceia muito!... Está sempre a ser vergastada e a balancear!... O vento não é muito mas o mar está muito cavado!...

Diário de Bordo  - 4 Devem ser aí 7 da manhã do 28ª dia. A situação é muito enervante!...O mar continua agitado!... Ao amanhecer surgiu uma trovoada violenta que deixou o mar muito cavado!... A canoa anda para aqui a balançar  de um lado para o outro e torna difícil o meu equilibro....O tubarão dá um pivete dos diabos!... Está a cheirar mal!... Tenho  tentado pescar e não consigo pescar nada!... Há aqui uma série de peixes parasitas que mal lanço a isca vão logo comê-la!... Simplesmente, não ficam lá presos, porque o anzol é demasiado grande.

Estou  realmente saturado!... A canoa deve ter andado bastante, devido à violência das vagas mas não vislumbro qualquer contorno de terra!...Isso é para mim bastante chato, porque já era altura de estar próximo de terra... Estou para aqui esfomeado!...Enfim!...

As correntes mudaram nitidamente. Estão-me a levar para norte, nordeste. O que vai atrasar a minha chegada a terra...Por este andamento, até é possível que já não chegue à Nigéria mas aos Camarões.

 
ASSOLADO POR UM VIOLENTO TORNADO DURANTE O DIA, ACABEI POR NÃO FAZER MAIS QUALQUER REGISTO NO PEQUENO GRAVADOR, QUE GUARDO  NO MEU BAÚ DE PLÁSTICO, UM VELHO CONTENTOR DO LIXO - AO TORMENTOSO DIA, VAI  AGORA SUCEDER A INCERTEZA DE UMA LONGA E TORMENTOSA NOITE DE VIGÍLIA

Diário de Bordo  - 5  Fim do 28º dia. É noite!... Meu coração está profundamente triste!...A manhã esteve realmente bonita mas a tarde foi tempestuosa!...Veio uma violenta tempestade que me pôs em sérios riscos a canoa!... Só não a virou talvez por milagre de Deus!... Só isso não aconteceu talvez por milagre de Deus!...

Grandes vagas  alterosas entravam dentro da minha canoa!... Um tubarão grande, daqueles perigosos, rodeava-me de um lado para o outro!... Foi para mim uma tarde angustiante e aflitiva!...Sem comer!... Aqui ando não sei para onde!...

Ao princípio da tarde avistei terra!...Avistei contornos da costa de África!... Mas o tornado surgiu!...Surgiu a tempestade!...Está a retardar com certeza a minha chegada a terra!.... Meu Deus!... Cada vez as dificuldades são maiores!... Mas a verdade é que tudo tem limites!.... Espero que a noite seja um bocadinho mais repousante!... O mar já está mais calmo!... Embora ainda cavado... A ressaca ainda se está a notar!


Diário de Bordo - A verdade é que eu não posso estar tranquilo!.. De maneira nenhuma... Todos os dias tempestades!...Todos os dias trovoadas!... Eu também não sei até que ponto a minha canoa resistirá.... a  estas condições todas... Não sei onde me encontro...Não sei para onde vou!... Mas tenho ainda uma réstia de esperança... Tenho fé em Deus! Que realmente chegue a terra!... É o que posso dizer neste princípio de noite... Noite escura!...Tão escura como foi a tarde... Enfim... seja o que Deus quiser..

Diário de Bordo  - 6  A canoa tem um grande defeito: está desequilibrada!.. E eu costumo...quando surge um tornado, fazer com que ela fique virada para o lado que está mais pesado. E desta vez havia todas as possibilidades  de a canoa se virar!.... Isso não aconteceu por muita sorte!...Só quase por milagre é que não aconteceu... Este quase mesmo a voltar-se.

Diário de Bordo  - 7  Eu acho que um homem nunca deve desesperar... Mesmo vendo a morte à frente dos olhos....Mas, sinceramente, já são 28  dias passados nestas condições...Tão difíceis!...Espero que a confiança não me falte.... E a calma para continuar a suportar tantas dificuldades e tantos perigos!...

 Sinceramente!... Vou-me deitar!... Vou ver se descanso qualquer coisa, daqui a bocado...Mas, sem comer nada?!...Com estômago completamente vazio... Pois não tive tempo de preparar qualquer coisa... Aliás, o que tenho aqui é unicamente um bocado de tubarão, mais nada!... (estragado)... Ah, mas eu quero é viver! É viver! E mais nada!... Eu quero viviver!... A vida é tão bela!... A vida... ai... (não resisto que as lágrimas me corram pela face) Só no meio das dificuldades é que uma pessoa, realmente, avalia o que é a vida!...

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.
Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!
 (..)
Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo.
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